Adriana C. M. Marafon
Resumo
Procuramos analisar
as consequências, de um ponto de vista político/econômico,
do “fato” da sociedade considerar superior a prática matemática
exercida nas instituições de ensino. A proposta de D’Ambrosio
implica o questionamento da superioridade do conhecimento acadêmico
(transposto para escola), do privilégio das posições
investidas de valor, que circulam nas instituições onde as
práticas científica e pedagógica são exercidas.
Introdução
Tomando por base o programa de pesquisa Etnomatemática (D’Ambrosio,
1993), faz sentido distinguir a prática matemática não-pedagógica
e não-científica da pedagógica e da científica,
na medida em que as primeiras não são reconhecidas como parte
do processo de qualificação da força de trabalho no
nível de padronização que a matemática pedagógica
e a científica concretizam, de modo que aquelas são desprestigiadas
em relação às formais, isto é, as práticas
matemáticas pedagógica e científica.
São privilegiados os estudantes que participam de práticas
que, apesar do caráter informal, identificam-se com as formais,
não no sentido apriorístico, mas no sentido em que o texto
acadêmico pode fazer parte das suas práticas diárias
como, por exemplo, nos almoços dos domingos, nas festas, no café
da manhã, na leitura de que o pai parece gostar, nos nomes "importantes"
da História Ocidental, ou da Fisica, ou da Arte, que são
proclamados em casa ou ao redor dela.
Assim, o aparelho escolar permite que apenas alguns alunos acompanhem
o que é abordado (eles são, antes de mais nada, classificados
, em excelente, bom, satisfatório, sofrível). Alguns
deles até aprendem a estratégia do saber fazer (valor
de uso), mas o número de alunos é muito reduzido que, "coincidentemente"
participam das práticas informais (não-pedagógica
e não-científica) que são identificadas com as formais
(pedagógica ou científica).
Todavia, as práticas informais, assim chamadas por não
serem reconhecidas a partir do código de prestígio que as
torne valor de troca, não são temas discutidos dentro do
aparelho escolar. Mas, no momento, são temas que vêm ganhando
espaço dentro da Educação Matemática. D'Ambrosio
elabora o que vem a ser o calcanhar de Aquiles para a prática
matemática científica, isto é, o questionamento sobre
onde reside sua superioridade. Nesse sentido, Ubiratan D’Ambrosio exerce,
com seu discurso, uma postura de luta dentro do aparelho ideológico
acadêmico contra o domínio cultural da Matemática institucionalizada
Etnomatemática
Segundo D’Ambrosio a etnomatemática "...é arte ou técnica
(techné = tica) de explicar, de entender, de se desempenhar na realidade
(matema), dentro de um contexto cultural próprio (etno). (SBEM,
93, p.9). O termo “realidade” usado por D'Ambrósio não deve
ser analisado desconectado do contexto do parágrafo, pois o autor
faz menção ao seu significado em um contexto expresso pela
frase completa: a Etnomatemática como arte ou técnica de
explicar, de entender, de se desempenhar na realidade, dentro de um contexto
cultural próprio. Podemos pensar que o significado do termo realidade
esteja vinculado ao significado da oração contexto cultural
próprio, de modo que podemos interpretar “realidade” o crer-se inserido
em um contexto cultural próprio.
O autor situa diacrônica e sincronicamente o conceito de “etnomatemática”
e o estrutura sob a dialética . A partir da citação
de D'Ambrósio (1993, SBEM), "A dupla necessidade da espécie
homo sapiens de ter que lidar com situações que a realidade
propõe para sobreviver e ao mesmo tempo transcender a sua própria
existência através de explicações e criação,
está presente em todas as civilizações e sistemas
culturais através dos tempos"(p.9), podemos enquadrar este signo,
etnomatemática, sob as condições impostas, quanto
ao caráter de categoria. D'Ambrósio se baseia na relação
dialética sobrevivência/transcendência. Assim, o homem
atua sobre a natureza externa e a modifica, modificando, ao mesmo tempo,
sua própria natureza. A Etnomatemática, isto é, a
arte ou técnica de explicar, de entender, de se desempenhar na realidade,
dentro de um contexto cultural (D’Ambrosio, 1993), está presente
em todas as civilizações e sistemas culturais através
dos tempos; assim, consideramos que faz sentido falar desse termo quanto
ao caráter histórico (diacrônico) e abrangente (sincrônico).
Entendemos, portanto, que o Programa Etnomatemática proposto
por D'Ambrosio tem como proposta para a pesquisa e ação pedagógica
contrapor-se ao padrão eurocêntrico e procurar entender, dentro
do contexto cultural do sujeito, seus processos de pensamento e seus modos
de explicar, de entender e de se desempenhar na realidade. Assim, a ação
pedagógica é, principalmente, questionar por que a prática
pedagógica é mais importante que as outras no sentido em
que é capaz de cunhar o código de superior, uma vez que vale
(valor-troca e/ou valor-de-uso).
D'Ambrosio tira dos guetos as práticas matemáticas (informais),
marginalizadas (não assumem valor de troca) e as considera como
formas culturais, com influência de fatores de origem lingüística,
religiosa, moral, naturalmente com esquemas lógicos distintos. A
matemática que conhecemos, tomando as palavras do autor, é
...uma forma cultural muito diferente que tem suas origens num modo
de trabalhar quantidades, medidas, formas e operações, características
de um modo de pensar, de raciocinar e de uma lógica localizada num
sistema de pensamento que identificamos como o pensamento ocidental. (1990,
p.17)
Considerando a prática matemática dessa forma, não
podemos ignorar sob que aparelhos ideológicos o aluno assume a escola,
já que as suas formas de matematizar estão vinculadas a sistemas
distintos vistos hierarquicamente.
O peso da família, primeira instituição de pertença
do sujeito, no caso brasileiro resultado de várias miscigenações
entre europeus, africanos e indígenas, que significam ora subordinação
(negros, índios), ora dominação (brancos) não
pode deixar de ser considerado diante da classificação praticada
pela escola, a matemática pedagógica prevalece enquanto uma
forma cultural “entendida” como superior. D'Ambrosio (1990) diz o
seguinte:
Naturalmente, manejar quantidades e, conseqüentemente, números,
formas e relações geométricas, medidas, classificações,
em resumo tudo o que é do domínio da matemática elementar,
obedece a direções muito diferentes, ligadas ao modelo cultural
ao qual pertence o aluno. Cada grupo cultural tem suas formas de matematizar.
Não há como ignorar isso e não respeitar essas particularidades
quando do ingresso da criança na escola. Nesse momento, todo o passado
cultural da criança deve ser respeitado. Isso não só
lhe dará confiança em seu próprio conhecimento, como
também lhe dará uma certa dignidade cultural ao ver suas
origens culturais sendo aceitas por seu mestre e desse o saber que esse
respeito se estende também à sua família e à
sua cultura. Além do mais, a utilização de conhecimentos
que ela e seus familiares manejam lhe dá segurança, e ela
reconhece que tem valor por si mesma e por suas decisões.
(p.17)
Assumindo essa postura, o autor está propondo um discurso
às avessas, uma vez que o respeito pelo discurso alheio ao padrão
vigente faria sentido fora de um jogo de interesses, o que não é
o caso das práticas escolares. Para tornar mais claro o dito da
frase anterior, podemos fazer o seguinte raciocínio: se o autor
falou em “respeito”, podemos pensar, também, em “desrespeito” e,
nesse caso, o que faz um desrespeitado? Ou assume uma postura de luta,
ou se sujeita. Em geral, essas são as opções oferecidas
pelas escolas, mas com predomínio da segunda; enquanto aparelho
ideológico a escola funciona em consonância com a ideologia
dominante (Althusser, 1980). O professor tem o poder legal sobre o prêmio
do jogo, isto é, a aprovação. Essa garantia diz quem
deve pronunciar-se e tomar como digno o passado cultural de certas classes
é aceitar a fala que não fala.
Aceitar a fala do aluno não é apenas respeitar seu passado
cultural, trata-se também de uma postura política em favor
de um trabalho contra-ideológico. Com o termo “contra-ideológico”
não estamos sugerindo a possibilidade de estarmos fora da ideologia,
não se trata de uma "desalienação", nem a discussão
da sua possibilidade. O que queremos com esse termo é evidenciar
a proposta da Etnomatemática como contraria à ideologia do
conhecimento matemático como superior, universal, concepções
que predominam no aparelho ideológico cultural e no escolar, os
quais convergem em favor da ideolgia dominante.
Matemática Cientifica/Não-Científica
A prática matemática científica e a pedagógica
com o intuito de produzir pesquisa (texto que a escola deverá
adotar - transposição didática ) e de qualificar a
força de trabalho se justificam como instância própria
da produção de mercadorias: força de trabalho qualificada
(ensino fundamental e médio, técnico, graduação,
mestrados etc), que assume valor de troca. Enquanto a prática matemática
não-científica e não-pedagógica, apesar de
serem consideradas sócio-histórico-culturais, não
assumem valor de troca, não são investidas de valor.
Ao se matricular na escola, a criança já tem um nome,
já é conhecida como filho de "tal" pessoa e como aluna, vai
ter um desempenho que é avaliado em função daquilo
que é aceito como matemática pedagógica. As crianças
que atinam para textos coincidentes com o da escola, naturalmente obtêm
maior avaliação sem, necessariamente, um grande esforço.
O esforço acontece, quando precisamos aprender aquilo, cujo
objetivo tem como pressuposto a probabilidade do diploma e cujo assunto
pode causar estranheza. D'Ambrosio diz que o conhecimento faz sentido se
compreendido como cultural. Ora; nesse sentido conhecimento é colocado
num plano anterior ao econômico e jurídico, num lugar onde
os planos econômicos e jurídicos ficam suspensos. Assim, não
há razão para crer no conhecimento matemático institucionalizado
como superior (universal). Entretanto, a sociedade na qual vivemos, não
é livre do âmbito econômico/jurídico. Há
uma ordem que define superior/inferior, operação que cria
a hierarquia (lógica da diferença – Baudrillard, 1972).
D'Ambrosio (1986) relata que ainda há matemáticos e até
educadores matemáticos que assumem a Matemática como uma
forma privilegiada de conhecimento a que apenas um número muito
reduzido pode ter acesso, e é sob o referencial dessas mentes dotadas
de "algo" especial que a Matemática se estrutura.
Essa crença sustenta o "assujeitamento" (Althusser, 1980) às
normas dos aparelhos ideológicos escolar e cultural. D'Ambrosio
(1986) considera insustentável o argumento de que a Matemática:
"...deve ser construída como um edifício lógico em
que se superpõem conceitos, em que se superpõem resultados,
e que a sofisticação atingida depende realmente de quão
alto se vai nessa superposição de tijolos para construir
o edifício."(p.21) Contudo, ele acrescenta que assumir essa postura
não significa desconsiderar como essencial o uso de técnicas
sofisticadas na solução de problemas. Entretanto, tal "utilidade"
só tem razão de ser em relação aos problemas
que são nossos, que não dizem respeito a todos. O autor lembra
bem o fato do não-sentido que é a escola para a maioria dos
alunos, uma vez que ela se estrutura segundo uma metodologia curricular
fundada nos modelos americanos e europeus. Esse autor considera que a escola
estaria fazendo muito mais se usasse esse período para a resolução
de problemas concernentes à comunidade. Tomando suas palavras:
...muito mais relevante do que estudar detalhes do currículo
ou de metodologia dentro de uma filosofia de ensino da matemática,
abstrata e ditada por tradições culturais distantes. Parece
que o problema de examinar fundo questões tão elementares
como: por que estudar matemática, por que ensinar matemática
e como fazer com que essa matemática que ensinamos às crianças
de 6 ou 7 anos de idade, às poucas crianças dessa idade
que têm a felicidade, na América Latina de encontrar uma escola,
tenha uma influência mais direta na melhoria de qualidade de vida
dos seus irmãos. (1986, p.21)
Todos sabemos, até mesmo as crianças, que é a
nota o que interessa. Mas sabemos também que esse prêmio nem
todos ganham. Cabral (1993) explica muito bem como a escola é pensada:
...como um jogo onde a escolha da regra (de passar/aprovar) livra os
parceiros da lei (de aprender/ensinar). Mas por que pensar a escola como
um jogo? Chevallard nos diz o seguinte: "Em certas famílias pertencentes
principalmente a certas frações do proletariado ou do lumpemproletariado,
de fato, a escola aparece como um modo estrangeiro onde a aprovação
parece depender menos do indivíduo que da instituição,
que é vivida como uma loteria com regras impenetráveis. (p13-18)
D'Ambrosio (1986) defende uma mudança na estrutura de todo o
ensino de Matemática, em que a ênfase no conteúdo e
na quantidade de conhecimento que a criança adquire deve ser substituída
por uma metodologia que
...desenvolva atitude, que desenvolva a capacidade de matematizar situações
reais, que desenvolva a capacidade de criar teorias adequadas para
as situações mais diversas, e uma metodologia que permita
identificar o tipo de informação adequada para uma certa
situação e condições para que sejam encontrados,
em qualquer nível, os conteúdos e métodos adequados.
(p.14-15)
Diante dos modos de produção capitalista, torna-se complicado
fazer com que o objetivo de todos mude de foco, uma vez que o que se produz
na escola é mercadoria com graus de qualificação,
com valores (preços) distintos. Por isso, propor uma alteração
na ordem vigente é lutar por uma estrutura político-econômica
que não é essa.
Legitimação da Matemática Não-Científica
Ninguém negará que se pratica Matemática
fora do contexto matemático institucional; contudo, esse aspecto
é absolutamente indiferente à prática matemática
pedagógica ou científica. Levantar esse fato curioso e questionar
o estatuto de superioridade da matemática institucional foi o que
o programa Etnomatemática se propôs.
D’Ambrosio (1989) diz que o "...conhecimento gerado pelo povo (...)
passa por um processo de estruturação e codificação,
após expropriado por grupos de poder", de modo que esse conhecimento
gerado pelo próprio povo retornará a ele somente de uma forma
estruturada e codificada. O autor continua:
...na maioria das vezes sujeito à mistificação
que resulta de processos institucionais de devolução, tais
como escolas, profissões, graus acadêmicos e toda uma série
de mecanismos de habilitação. (...) Os executores da devolução
ao povo desses diversos corpos de conhecimento devem ser credenciados pela
própria estrutura de poder, de maneira a assegurar seu compromisso
ideológico. Esse credenciamento se dá através de um
sistema de "filtros" destinados a identificar aqueles confiáveis
para agir nessas funções, tais como diplomas, exames, habilitações
profissionais, títulos acadêmicos, certificados e outros semelhantes.
Na superação dessa escala de filtros, o indivíduo
normalmente perde a visão do processo pelo qual ele está
sendo cooptado e que vai do místico, normalmente presente na origem
do conhecimento, ao mistificado, que é como esse mesmo conhecimento
se apresenta ao se vestir de um sistema de códigos. Em conseqüência,
cria-se uma espécie de barreira entre o que deve entregar o conhecimento
e aquele que vai receber o conhecimento, em primeira instância por
ele mesmo gerado. Esta é a principal motivação para
propor um enfoque histórico-epistemológico; portanto, político,
e cobrindo a geração, transmissão e difusão
do conhecimento. Este é o objetivo do programa que é denominado
Etnomatemática."(p. 505-506)
Conclusão
Em um sistema no qual a força de trabalho é forma-mercadoria,
a prática social da qual o sujeito participa pode significar código
de prestígio. Julgar o aluno, para abstrair alguma “unidade” identificada
a uma classificação é papel conferível em qualquer
escola. No entanto, colar a identificação a alguma essência
é absurdo. Não há como executar esta operação,
uma vez que não estamos distantes das práticas sociais, não
temos como sair de nós mesmos para falar sobre a prática
A, a prática B, que se refere ao sujeito x, uma vez que estamos
sempre/já na enunciação, e faremos sempre um
redução do discurso do julgado para o enunciado. Assim, não
há qualquer propriedade de julgamento. Legalmente, se o aluno mostra
que sabe fazer (resolver os exercícios propostos pela professora),
ninguém discutirá as condições histórico-culturais
em que encontra-se, propondo, entre linhas, que há alunos que dispõem
do dom e outros não, ou que há alunos geneticamante inferiores
(basta ver o livro Curva do Sino - 1994) ou que há alunos nascidos
sob sortes distintas (ricos e pobres).
Normalmente, saber fazer, no contexto da prática pedagógica,
basta para justificar a aprovação. Essa prática tem
um referencial histórico-cultural muito bem definido, isto é,
o corpo de conhecimento construído pela cultura ocidental. Assim,
a prática pedagógica incluiu o ritual de julgamento; afinal,
o papel da escola num sistema capitalista é, antes de mais
nada, a hierarquização.
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