“Saberes escolares: o singular, o particular, o universal”


Alípio Casali



Programa de Pós-Graduação em Educação / Currículo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- Brasil
 

As etnometodologias têm provocado uma fecunda desinstalação das ciências e das práticas pedagógicas.  Produzem questionamentos que abalam, de um lado, a pretensão cientificista de impor um padrão único de racionalidade na compreensão do real, e de outro lado, ainda mais, a pretensão pedagógica de impor modelos padronizados de práticas de ensino-aprendizagem.
Proponho que abordemos esses abalos considerando a tensão entre duas dimensões dos saberes escolares : a epistemológica e a ética. A intenção é demonstrar a indissociabilidade entre o singular, o particular, o universal (três âmbitos do saber e do proceder) e apontar conseqüências dessa indissociabilidade para as práticas pedagógicas. Na dimensão epistemológica, deve-se considerar a pretensão de universalidade (leia-se: de validade universal) dos saberes que circulam no interior da comunidade científica, certo de que esses saberes cientificamente credenciados são vinculados aos saberes culturais particulares que circulam no interior dos diversos grupos culturais, incluída a escola, e com os saberes apropriados pelos indivíduos. Na dimensão ética, deve-se considerar a pretensão de universalidade (leia-se: de validade universal) dos saberes que referenciam os princípios prescritos nas declarações mais universais de direitos dos homens e das nações e que se apresentam como padrão de validade para julgar as prescrições de demais constituições, estatutos de grupos culturais, grupos religiosos, partidos políticos, corporações profissionais, etc, assim como especialmente os estatutos do magistério e regimentos escolares, e as práticas pedagógicas de cada educador.
Por que tal abordagem? Porque entre essas duas dimensões há analogias que, se esclarecidas, podem contribuir para uma ressignificação do alcance das etnometodologias; e também porque, se há uma ética implicada nos empreendimentos científicos e epistemológicos, mais ainda há nos processos pedagógicos, e isto é indispensável se ter em conta.
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A educação não tem um território de referência onde se instalar. Há razões para se defender que A) a universalidade seja seu espaço de referência: a educação não apenas é um fenômeno universal mas também ela é uma ação referenciada pela universalidade dos saberes e dos direitos. Há razões, igualmente, para se defender, no outro extremo, que o âmbito das B) singularidades seja sua principal referência (e não poucos empreendimentos científicos investiram nesse objetivo): alega-se que sem a adequada formação do indivíduo (cada um, em sua irredutível singularidade) nenhuma outra reforma ou transformação coletiva acontece. E há razões, da mesma forma, para se defender, parafraseando GEERTZ (1997:249), que, assim como a navegação, a jardinagem, a poesia, o direito e a etnografia, a educação é um artesanato local: funciona à luz de saberes e interesses locais [diremos neste texto: C) particularidades].
Não por acaso a educação tem sido, ao longo da história, atraída por diversos campos teóricos e de ação, às vezes incompatíveis. Toda a história da pedagogia pode ser lida como a história dessa oscilação condicionada por circunstâncias que, por sua vez, também são universais (um acontecimento de âmbito e alcance universal, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela ONU), ou particulares (uma experiência local de forte impacto histórico-cultural, como a Revolução Francesa) ou singulares (um educador genial que formula uma convincente teoria pedagógica, como Paulo Freire). Vejamos cada um desses âmbitos de referência.
A)  A afirmação da universalidade como principal razão de ser da educação (sua origem e seu destino) é, certamente, das três referências, a mais insistente na história da pedagogia. É também a mais antiga. No antigo Egito, na Grécia, em Roma, na Cristandade Medieval, na Modernidade Européia ou na presente era de Globalização do Mercado, tem sido sempre o horizonte da universalidade o que mais freqüentemente fundamenta os empreendimentos educacionais. Não obstante, no mais das vezes, tais empreendimentos são equívocos na prática, pois resultam defendendo interesses particulares, locais, como se fossem universais. Por exemplo, quando o grego pensa “o ser” ou “as virtudes humanas”, pensa o “ser grego” e as “virtudes gregas”. Não poderíamos repetir a ilusão e a ingenuidade que sustentava tais projetos particulares encobertos pela ilusão da universalidade. Essa máscara escondeu impérios, conquistas, colonizações, genocídios, violências institucionais...  sendo que nada disso aparece na formulação explícita dos elevados ideais pedagógicos.
Deve-se observar também que o fundamento de tais formulações universais tem sido, no mais das vezes, uma disfarçada ou explícita concepção essencialista de ser humano (SUCHODOLSKI, 1972). Atribui-se à educação a função social de realizar um certo ideal do que o homem deve ser.  Supõe-se uma essência humana e propõe-se a efetivá-la. Primeiro, supõe-se que o homem a tenha e que ela seja imutável; segundo, supõe-se que ela seja tal qual foi formulada por aquela cultura, naquele tempo.
Desde suas primeiras formulações conceituais, a razão moderna mostrou seu apetite pela universalidade e pela autonomia. Na verdade, ela propriamente se define, enquanto moderna, como um projeto de realização do desejo de autonomia do humano, com pretensão de universalidade, em reação liberal às prescritividades particulares da razão teológica medieval. Por isso mesmo, como numa repetição dos atributos divinos às avessas, para superá-los ocupando seu lugar, a razão moderna almejou a universalidade de um modo específico: construindo modelos determinísticos. O desenvolvimento da matemática e da física deram o substrato de apoio “científico” a tal pretensão. Todos os fenômenos históricos particulares e singulares se explicariam por sua subordinação a um “logos” universal desvelado e construído pela razão.
A partir daí, os diversos universalismos pedagógicos, por diversos modos e com diversos recursos, costumam proceder a:
uma identificação seletiva dos saberes considerados válidos dentre os universalmente disponíveis (onde cabe a crítica a essa primeira pretensão de universalidade: a validade é definida invariavelmente a partir de interesses determinados, particulares, locais, e não a partir da universalidade mesma, até porque essa é uma tarefa impossível);
uma elaboração racionalizada de tais saberes (momento em que se constroi a pertinência entre a pretendida universalidade e as particularidades histórico-culturais da sociedade em questão);
uma provisão de metodologias de ensino-aprendizagem adequadas, tendencialmente uniformes, em que se admitem no máximo “adaptações” a linguagens locais (sempre com o objetivo de dar mais eficiência ao processo de transmissão);
uma avaliação do processo e seus resultados conforme os mesmos parâmetros (para realimentar o circuito pedagógico).
Essa posição universalista, sobretudo em suas formulações mais contemporâneas, costuma justificar-se por uma pretensão também ética de efetivação da universalidade do direito. Toda a construção teórica e moral do liberalismo, por exemplo, se fez sobre tal pretensão. Não por acaso sua concepção de educação se justifica pela alegação de que a educação seria o único meio de equalização real das oportunidades, num ambiente de mercado competitivo e diferenciador (LASKI, 1973:11). Mas, não raro, tal pretensão resulta num dogmatismo que contraditoriamente nega tal direito. Assim é o “sonho americano” ainda hoje, assim é a ilusão do mercado perfeito globalizado, assim foi o “sonho socialista” de Hitler ou Stalin.
Mas não se pode desconsiderar que, efetivamente, a universalidade tem sido e deve ser a meta do direito e uma referência para a educação. Referimo-nos aqui a direito não como sinônimo de “sistema de leis” mas como sinônimo de “justiça”. As Revoluções inglesa (1689), norte-americana (1776) e francesa (1789), prepararam, acumulativamente, e tiveram seu acabamento histórico, na grande carta universal dos direitos humanos da ONU, em 1948. De fato, a meta política de todo direito é a universalização, no sentido de sua efetivação por todos. Por isso, a grande tarefa histórica é a de superar, num polo social os privilégios de poucos, no outro polo as carências de muitos, e instaurar o direito para todos.
B) Mas esse paradigma da universalidade vem sofrendo rupturas, paradoxalmente, com a própria Modernidade. O anti-dogmatismo imediatista (científico, religioso, estético, filosófico...) do projeto da Modernidade também fincou bandeira no campo da subjetividade como seu fundamento. Sendo que o ideal de autonomia do “espírito humano” (a princípio rebelado principalmente contra o “espírito divino” medieval) que estava por trás dessa subjetividade rapidamente converteu-se em ideal de autonomia do indivíduo. Autonomia no trabalho (“livre-iniciativa no mercado”) que estendeu-se ao ideal de autonomia cognitiva e moral de cada singularidade individual.
São complexas as condições que conduziram a razão moderna a essa quebra do grande consenso, essa ruptura da onipotência, esse deslocamento para o escorregadio campo do sujeito individual, campo do imprevisível e incontrolável. Houve razões teóricas e razões práticas que produziram essa mudança, que, além disso, não se processou subitamente, nem definitivamente. Ao contrário, trata-se de um processo que continua em andamento e é possível que jamais se esgote.
No plano teórico, cabe destacar a contribuição da psicanálise, da fenomenologia e da antropologia, para essa ruptura do universalismo. A psicanálise, por ter aberto espaço para a compreensão da dinâmica própria dos sujeitos singulares, ainda que, nesse movimento,  tenha deslocado certas determinações “universais” para o interior (o inconsciente) do indivíduo. A fenomenologia, por ter procurado compreender a existência humana, sempre em último caso a “minha”, como um processo de construção de significados resultante de um imprevisível jogo entre nossas determinações (biológicas e culturais) e nosso potencial de transcendência (liberdade) a essas determinações. A antropologia pós-estruturalista, por ter enfatizado a diferença como inerente ao sentido de cultura, e sua irredutibilidade à universalidade.
No plano prático, cabe registrar as desastrosas experiências dos totalitarismos políticos do século XX. O Estado imperial clássico ou, hoje, seu antagonista neoliberal (o todo-poderoso mercado globalizado que não tem rosto), devoram as especificidades das diferenças, remetendo-as a uma universalidade abstrata. Tão abstrata que, nelas, as individualidades só se reconhecem mediante fortes mecanismos repressivos, indutores de projeções ilusórias das identidades dos sujeitos. A universalidade, quando reduzida à globalidade de mercados, ou seja, quando não coincidente com a universalidade dos direitos, degenera seu sentido.
O “retorno ao sujeito” surge, então, como ressurgiu nas últimas décadas, como uma área de escape ao desejo de aventura da liberdade humana. Ou um recuo a uma interioridade que precederá novo movimento de exteriorização que talvez esteja por vir.
A pedagogia típica dessa posição inverte o sentido do que até então se propunha com o universalismo:  agora o indivíduo aparece como um conjunto de potencialidades singulares aptas a materializarem-se; e, ao invés dos conteúdos pré-fixados, são as possibilidades individuais que passam a determinar a direção dos resultados pedagógicos a serem alcançados. Não por acaso, o motor de tal ação são os interesses singulares de cada indivíduo. Não por acaso o Emílio de Rousseau é um órfão (de Pai Estado e de Mãe Cultura) e deve, segundo seu ritmo singular, cumprir seu currículo de estudos.
Não teria sido difícil prever a posição extrema de tal convicção: a crença na perfectibilidade moral an-árquica de cada indivíduo, que levaria cada um a prescindir de qualquer forma de regulação cultural, institucional. O indivíduo singular seria concebido como a partícula fundante, a unidade última e simples, constitutiva da gigantesca arquitetura humana. Mas a própria física, que fornecera esta metáfora para os fenômenos sociais, teve posteriormente que reconstruir seu modelo de representação do cosmos. A partícula deixou de ser um conceito-fundamento para surgir como um conceito-fronteira (MORIN, 1995:163). Já não nos remete mais para a idéia de uma substância elementar simples e sim aponta-nos para a fronteira do in-concebível, do in-compreensível: a complexa rede de outras partículas e outras unidades superiores de agregação das quais cada uma participa necessariamente. O solipsismo revela-se, então, como uma abstração no mundo físico e, com mais razão ainda, no mundo cultural.
C)  Num movimento análogo, a pedagogia também deslocou-se do polo do indivíduo (singularidade) para um espaço meso, onde as microestruturas e as macroestruturas se encontrariam para cimentar a realidade social. Um espaço intermediário (COULON, 1995:44), onde a individualidade e a universalidade supostamente se amalgamam: o âmbito da cultura, do institucional, com sua variedade de formas e composições; o âmbito das particularidades. Nem mais a abstração do universal, nem a abstração do indivíduo isolado: o lugar da educação seria o grupal, o setorial, o parcial, o segmento do todo, ali onde se constróem identidades com algum rosto coletivo. Além do individual, aquém do universal. Os temas, abundantemente, afloraram: classe, etnia, gênero, grupos de idade, grupos de opção sexual, grupos de condição física e/ou mental diferenciada, grupos de identidade estética, de identidade política, religiosa, etc.
Eles fragmentam qualquer pretensão de unidade dos blocos identitários das culturas dominantes (MCLAREN, 1997). Torna-se inaceitável a pretensão de legitimidade totalitária das políticas públicas uniformizadoras. As dissimuladas intenções de se implantar uma política padronizada para a pesquisa e um currículo nacional são recusadas. A noção de identidade nacional deve ser revisada para que se elucide o espectro de diferenças que ela deve conter. Ademais, para que serviria a identidade num sujeito sem autonomia? Para que serve a identidade numa nação sem soberania? Por isso, só cabe projetar uma concepção e prática de políticas públicas para a educação que tenham como critério de validação a democracia, entendida como capacidade de realização de um projeto nacional socialmente includente, sem prejuízo de quaisquer diferenças reais e potenciais.
A riqueza de oportunidades pedagógicas, neste nível de referência, tem-se mostrado praticamente inesgotável. Impulsionada pelo extraordinário desenvolvimento das sociologias e das antropologias neste século, a pedagogia chegou até a crer que tivesse encontrado sua Terra Prometida.
Mas, como toda posição, a territorialização aparece como um risco inevitável; o reducionismo, uma tentação de difícil recusa. O perigo real é o da perda das contribuições acumuladas nas posições históricas anteriores. E, não raro, a insistência do olhar sobre essas particularidades instala um confortável mas indesejável conformismo com as condições exógenas (macroestruturais) que as determinam.
Por isso, cabe mais uma vez desinstalar a pedagogia, não dessa sua pretensão de síntese, mas de um certo modo de pretender a efetivação dessa síntese. Para tanto, se se quiser pensar por metáforas, seria conveniente pensar em redes e em redes de redes. Se se quiser considerar a questão do ponto de vista conceitual, seria oportuno recuperar a noção de “concreto” formulada pela tradição marxista. “O concreto é concreto porque é síntese de diversas determinações, isto é, unidade do diverso”, ouvimos de MARX ([1857] 1974:122). A propósito disto, comenta KOSIK (1976):

“na apropriação prático-espiritual do mundo, da qual e sobre o fundamento da qual derivam originariamente todos os outros modos de apropriação  - teórica, artística, etc.-  a realidade é concebida como um todo indivisível de entidades e significados...” (p.24).

Essa realidade é “uma rica totalidade de determinações e relações diversas” (MARX, Id. Ib.) e é disto que se trata quando se refere não apenas aos conteúdos da ação pedagógica mas também aos processos práticos que a efetivam.
A ação pedagógica é, com efeito, uma ação concreta, que se realiza em condições concretas, reconstruindo-as e reconstruindo-se nelas, para reconstruir toda a realidade num certo âmbito de alcance. Isto só é possível mediante uma permanente e crítica articulação de suas particularidades com as determinações individuais singulares que operam esta ação intersubjetiva, e com as determinações mais universais (macroestruturais) que aí também operam, ainda que de modo mais mediato.
De um ponto de vista epistemológico, estamos referindo-nos à dialética como um logos capaz de permitir a compreensão  de tal projeto, posto que permite a compreensão das ações e das potencialidades humanas, incluída a racionalidade e a ética como fundamentos do direito. O mesmo logos dialético permite a  compreensão e a construção da universalidade, das particularidades e das singularidades (por mediação recíproca entre umas e outras). Um método (caminho) capaz de incorporar macrodeterminações descendentes do Estado e microdeterminações ascendentes, originadas da praxis concreta de sujeitos históricos críticos institucionalmente situados (FOUCAULT, 1979).  É o único método que permite considerar cada Escola como legítimo lugar de produção de políticas públicas.
Esta seria a face mais propriamente gnoseológica e epistemológica da questão. Há outra dimensão, porém, a ser considerada: a ética, que lhe é intrínseca, e de que trataremos a seguir.
Cabem, porém, preliminarmente, alguns esclarecimentos. Inicialmente, uma necessária distinção entre moral e ética (CASALI, 2000:7-23)). Tanto “mos, moris” (do étimo latino) quanto “êthos” (étimo grego) referem-se igualmente a padrões de con-vivência humana numa determinada “morada” ou “habitação”. A morada do homem, como animal social, é alguma cultura particular, algum solo “pátrio”, alguma língua “mátria”. Consideraremos aqui esses padrões culturais particulares como correspondentes ao âmbito da moral. A moral, portanto, seria um fenômeno da ordem particular. É a regulação dos valores e comportamentos considerados legítimos por uma determinada sociedade, um povo, uma religião, uma ordem política, uma certa tradição cultural. Há morais específicas, também, em grupos sociais mais restritos: uma instituição, um partido político, um grupo de identidades estéticas, etc. Há, portanto, muitas e diversas morais. Cada sistema moral cria seus próprios mecanismos particulares de legitimação. A moral não tem compromisso com a universalidade. Exceto quando atacada, ocasião em que busca justificar-se construindo justificações com uma falsa pretensão (ideologia) de universalidade. Isto tem duas implicações. A primeira, de que até um certo ponto, dentro de uma certa margem, a diversidade moral deve ser reconhecida como legítima, dada a contingência de só haver vida humana concreta e materialmente dentro de certas fronteiras culturais. A segunda, de que impõe-se a necessidade de juízos críticos acerca das limitações da moral, sob pena de se porem em risco os legítimos ideais humanos de realização do direito universal.
Este segundo aspecto leva-nos ao âmbito da ética, conceito este que convencionou-se tomar, com razoável consenso, como referenciador do âmbito da universalidade. A ética aparece, pois, como uma reflexão crítica sobre a moralidade. Mas ela não é puramente teoria. A ética é um conjunto de princípios e disposições voltados para a ação, historicamente produzidos, cujo objetivo é balizar as ações humanas, como uma referência para os seres humanos em sociedade, de modo tal que a sociedade possa se tornar cada vez mais “justa”.
A ética, portanto, pode e deve ser incorporada pelos indivíduos, sob a forma de uma atitude diante da vida cotidiana, capaz de julgar criticamente os apelos a-críticos da moral vigente. Mas a ética, tanto quanto a moral, não é um conjunto de verdades fixas, imutáveis. A ética se move, historicamente, se amplia e se adensa. Basta lembrar que, durante séculos, a escravidão foi considerada “natural”; que há 60 anos, no Brasil, as mulheres não tinham o direito político de votar; que há 13 anos os analfabetos também não, etc.
Entre a moral e a ética há uma tensão permanente:  a ação moral busca uma compreensão e uma justificação crítica universal, e a ética, por sua vez, exerce uma permanente vigilância crítica sobre a moral, para reforçá-la ou transformá-la.
A ética tem sido o principal regulador do desenvolvimento histórico-cultural da humanidade. Sem ética, ou seja, sem a referência a princípios humanitários fundamentais comuns a todos os povos, nações, religiões, etc, a humanidade contemporânea já poderia ter-se despedaçado até à auto-destruição. Mas também é verdade que a ética não garante o progresso moral da humanidade.
O fato de que os seres humanos são capazes de concordar minimamente entre si sobre princípios como justiça, igualdade de direitos, dignidade da pessoa humana, cidadania plena, solidariedade, etc., cria chances para que esses princípios possam vir a ser postos em prática, mas não garante o seu cumprimento.
Daí decorre que cada cidadão e cidadã deve incorporar esses princípios como uma atitude prática diante da vida cotidiana, de modo a pautar por eles seu comportamento. Isso traz uma conseqüência inevitável: freqüentemente o exercício pleno da cidadania (ética) entra em colisão  frontal com a moral vigente, sujeita à pressão dos interesses econômicos e de mercado.
Falar de ética é falar de con-vivência humana. Há necessidade de ética porque os seres humanos não vivem isolados; e os seres humanos convivem não por escolha mas por contingência, por sua constituição vital. Há necessidade de ética porque há o outro ser humano. Vale lembrar que o “outro”, literalmente, é o “êthnos” (em grego), o “outro cultural”, de onde as etnometodologias tiraram a densa referência a seu objeto.
Mas o outro, para a ética, não é apenas o outro imediato, próximo, com quem convivo, ou com quem casualmente me deparo. O outro está presente também no futuro (temporalidade) e está presente em qualquer lugar, mesmo que remoto (espacialidade).
De qualquer maneira, o princípio fundamental que constitui a ética é este: o outro é um sujeito de direitos e sua vida deve ser digna tanto quanto a minha deve ser. O fundamento dos direitos e da dignidade do outro é o seu direito à vida (a ser produzida, reproduzida e desenvolvida [DUSSEL, 2000:636) e o seu direito à liberdade (possibilidade) de viver plenamente a partir de suas pulsões. As obrigações éticas da convivência humana devem pautar-se não apenas por aquilo que já temos, já realizamos, já somos, mas também por tudo aquilo que poderemos vir a ter, a realizar, a ser. Não é o dever-ser que fundamenta o poder-ser, mas o contrário: o poder-ser é que é o fundamento último do dever. As nossas possibilidades (potencialidades) de ser são o horizonte último de nossos direitos e de nossos deveres. São parte da ética da convivência.
Por sua vez, toda educação é uma ação interativa: se faz mediante informações, comunicação, diálogo, trocas entre seres humanos. Em toda educação há um outro em relação. Em toda educação, por tudo isso, a ética está implicada. Uma educação pode ser eficiente enquanto processo formativo e ao mesmo tempo eticamente má, como foi a educação nazista, por exemplo. Pode ser boa (válida) do ponto de vista da moral vigente e má (inválida) do ponto de vista ético.
Ora, a educação é também reprodução, por transmissão, dos padrões validados respectivamente em cada cultura (uma certa moral).  A educação reproduz a cultura  enquanto produz novos indivíduos daquela cultura.  Sendo que, em tempos atuais, nos quais não há mais lugar fora da rede de relações inter-nacionais e inter-culturais, e não há mais lugar fora da rede de compromissos supranacionais de defesa de princípios éticos universais, a educação simplesmente não tem como ignorar, muito menos evitar, as determinações mais universais decorrentes da totalidade de relações humanas. Ao mesmo tempo, a educação é o lugar de se re-pensar criticamente esse próprio padrão cultural, as formas de produção dos indivíduos e as formas das determinações macroestruturais da economia, da política e da cultura mundiais. Portanto a educação é moral (particular) e é ética (universal), na medida em que é uma possibilidade e um impulso à transformação: desenvolvimento das potencialidades dos educandos, cada um em sua irredutível singularidade, em tensão dialética com as potencialidades coletivas de seu grupo (particularidades) e de toda a humanidade (universalidade).
Ora, a escola é um componente da cultura, uma instituição do saber que reproduz e recria significados e poderes (CED, 2000). É, no dizer de GEERTZ (1997:272),

uma estrutura de significado em cujos termos indivíduos e grupos de indivíduos vivem suas vidas, e, mais especificamente, (...) um sistema de símbolos através dos quais essas estruturas são elaboradas, comunicadas, impostas, compartilhadas, modificadas e reproduzidas...
A escola é uma instituição que, pelo fato de ter como principal tarefa promover uma adequada apropriação do mundo pelos educandos, deve ser capaz de deliberadamente apropriar-se de sua própria construção. Trata-se de um anti-fetichismo radical que se impõe.
Determinações epistemológicas e éticas (universalidade), por um lado, determinações culturais e morais (particularidade), por outro, e determinações individuais (singularidade) dos sujeitos envolvidos na produção do currículo, comandam a seleção dos saberes e das disposições que comporão o currículo escolar. De nossa parte, com WILLIAMS (apud FORQUIN, 1993:42) pensamos que as mediações culturais (particularidades) têm sido as predominantemente utilizadas pela escola (pelo currículo) para cumprir sua função social.
Nisto consiste o fecundo e vital enraizamento do currículo na cultura. Nisto reside, igualmente, seu permanente risco de reduzir suas potencialidades a determinações menores, particulares, morais e, no limite, moralistas. Não se desconsidera que o âmbito da cultura contém mecanismos capazes de produzir juízos críticos acerca do currículo. Mas se considera que tais mecanismos têm alcance limitado. Por isso, é indispensável que se criem oportunidades e mecanismos sistemáticos para que o dinamismo instituinte proveniente das im-pre-visíveis pulsões e convicções dos sujeitos individuais possa manifestar-se, para criticar e infundir novas demandas e projetos no sistema instituído. Por outro lado, é igualmente indispensável submeter permanentemente o projeto particular do projeto educacional ao crivo crítico das determinações e potencialidades universais (nos âmbitos epistemológico e ético). Nessa condição, o currículo poderá realizar-se efetivamente como um concreto histórico: “síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso (MARX [1857], 1974:122) e, apenas assim, um pro-jeto aberto a uma construção institucional cotidiana deliberada (COULON, 1995:113). Um pro-jeto de apropriação do mundo concreto que se vive e se constrói.
Um pro-jeto aberto à realização de im-pre-visíveis demandas singulares, particulares e universais. Um desafio às etnometodologias.

Referências bibliográficas

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DUSSEL, Enrique.  Ética da Libertação na idade da globalização e da
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   conhecimento escolar.  Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.
FOUCAULT, Michel.  Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
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MARX, Karl. “Para a crítica da economia política” [1857]. São Paulo,
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SUCHODOLSKI, Bogdan.  A Pedagogia e as grandes correntes filosóficas.
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