Alípio Casali
Programa de Pós-Graduação em Educação
/ Currículo Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo- Brasil
As etnometodologias têm provocado uma fecunda desinstalação
das ciências e das práticas pedagógicas. Produzem
questionamentos que abalam, de um lado, a pretensão cientificista
de impor um padrão único de racionalidade na compreensão
do real, e de outro lado, ainda mais, a pretensão pedagógica
de impor modelos padronizados de práticas de ensino-aprendizagem.
Proponho que abordemos esses abalos considerando a tensão entre
duas dimensões dos saberes escolares : a epistemológica e
a ética. A intenção é demonstrar a indissociabilidade
entre o singular, o particular, o universal (três âmbitos do
saber e do proceder) e apontar conseqüências dessa indissociabilidade
para as práticas pedagógicas. Na dimensão epistemológica,
deve-se considerar a pretensão de universalidade (leia-se: de validade
universal) dos saberes que circulam no interior da comunidade científica,
certo de que esses saberes cientificamente credenciados são vinculados
aos saberes culturais particulares que circulam no interior dos diversos
grupos culturais, incluída a escola, e com os saberes apropriados
pelos indivíduos. Na dimensão ética, deve-se considerar
a pretensão de universalidade (leia-se: de validade universal) dos
saberes que referenciam os princípios prescritos nas declarações
mais universais de direitos dos homens e das nações e que
se apresentam como padrão de validade para julgar as prescrições
de demais constituições, estatutos de grupos culturais, grupos
religiosos, partidos políticos, corporações profissionais,
etc, assim como especialmente os estatutos do magistério e regimentos
escolares, e as práticas pedagógicas de cada educador.
Por que tal abordagem? Porque entre essas duas dimensões há
analogias que, se esclarecidas, podem contribuir para uma ressignificação
do alcance das etnometodologias; e também porque, se há uma
ética implicada nos empreendimentos científicos e epistemológicos,
mais ainda há nos processos pedagógicos, e isto é
indispensável se ter em conta.
. . .
A educação não tem um território de referência
onde se instalar. Há razões para se defender que A) a universalidade
seja seu espaço de referência: a educação não
apenas é um fenômeno universal mas também ela é
uma ação referenciada pela universalidade dos saberes e dos
direitos. Há razões, igualmente, para se defender, no outro
extremo, que o âmbito das B) singularidades seja sua principal referência
(e não poucos empreendimentos científicos investiram nesse
objetivo): alega-se que sem a adequada formação do indivíduo
(cada um, em sua irredutível singularidade) nenhuma outra reforma
ou transformação coletiva acontece. E há razões,
da mesma forma, para se defender, parafraseando GEERTZ (1997:249), que,
assim como a navegação, a jardinagem, a poesia, o direito
e a etnografia, a educação é um artesanato local:
funciona à luz de saberes e interesses locais [diremos neste texto:
C) particularidades].
Não por acaso a educação tem sido, ao longo da
história, atraída por diversos campos teóricos e de
ação, às vezes incompatíveis. Toda a história
da pedagogia pode ser lida como a história dessa oscilação
condicionada por circunstâncias que, por sua vez, também são
universais (um acontecimento de âmbito e alcance universal, como
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela ONU), ou
particulares (uma experiência local de forte impacto histórico-cultural,
como a Revolução Francesa) ou singulares (um educador genial
que formula uma convincente teoria pedagógica, como Paulo Freire).
Vejamos cada um desses âmbitos de referência.
A) A afirmação da universalidade como principal
razão de ser da educação (sua origem e seu destino)
é, certamente, das três referências, a mais insistente
na história da pedagogia. É também a mais antiga.
No antigo Egito, na Grécia, em Roma, na Cristandade Medieval, na
Modernidade Européia ou na presente era de Globalização
do Mercado, tem sido sempre o horizonte da universalidade o que mais freqüentemente
fundamenta os empreendimentos educacionais. Não obstante, no mais
das vezes, tais empreendimentos são equívocos na prática,
pois resultam defendendo interesses particulares, locais, como se fossem
universais. Por exemplo, quando o grego pensa “o ser” ou “as virtudes humanas”,
pensa o “ser grego” e as “virtudes gregas”. Não poderíamos
repetir a ilusão e a ingenuidade que sustentava tais projetos particulares
encobertos pela ilusão da universalidade. Essa máscara escondeu
impérios, conquistas, colonizações, genocídios,
violências institucionais... sendo que nada disso aparece na
formulação explícita dos elevados ideais pedagógicos.
Deve-se observar também que o fundamento de tais formulações
universais tem sido, no mais das vezes, uma disfarçada ou explícita
concepção essencialista de ser humano (SUCHODOLSKI, 1972).
Atribui-se à educação a função social
de realizar um certo ideal do que o homem deve ser. Supõe-se
uma essência humana e propõe-se a efetivá-la. Primeiro,
supõe-se que o homem a tenha e que ela seja imutável; segundo,
supõe-se que ela seja tal qual foi formulada por aquela cultura,
naquele tempo.
Desde suas primeiras formulações conceituais, a razão
moderna mostrou seu apetite pela universalidade e pela autonomia. Na verdade,
ela propriamente se define, enquanto moderna, como um projeto de realização
do desejo de autonomia do humano, com pretensão de universalidade,
em reação liberal às prescritividades particulares
da razão teológica medieval. Por isso mesmo, como numa repetição
dos atributos divinos às avessas, para superá-los ocupando
seu lugar, a razão moderna almejou a universalidade de um modo específico:
construindo modelos determinísticos. O desenvolvimento da matemática
e da física deram o substrato de apoio “científico” a tal
pretensão. Todos os fenômenos históricos particulares
e singulares se explicariam por sua subordinação a um “logos”
universal desvelado e construído pela razão.
A partir daí, os diversos universalismos pedagógicos,
por diversos modos e com diversos recursos, costumam proceder a:
uma identificação seletiva dos saberes considerados válidos
dentre os universalmente disponíveis (onde cabe a crítica
a essa primeira pretensão de universalidade: a validade é
definida invariavelmente a partir de interesses determinados, particulares,
locais, e não a partir da universalidade mesma, até porque
essa é uma tarefa impossível);
uma elaboração racionalizada de tais saberes (momento
em que se constroi a pertinência entre a pretendida universalidade
e as particularidades histórico-culturais da sociedade em questão);
uma provisão de metodologias de ensino-aprendizagem adequadas,
tendencialmente uniformes, em que se admitem no máximo “adaptações”
a linguagens locais (sempre com o objetivo de dar mais eficiência
ao processo de transmissão);
uma avaliação do processo e seus resultados conforme
os mesmos parâmetros (para realimentar o circuito pedagógico).
Essa posição universalista, sobretudo em suas formulações
mais contemporâneas, costuma justificar-se por uma pretensão
também ética de efetivação da universalidade
do direito. Toda a construção teórica e moral do liberalismo,
por exemplo, se fez sobre tal pretensão. Não por acaso sua
concepção de educação se justifica pela alegação
de que a educação seria o único meio de equalização
real das oportunidades, num ambiente de mercado competitivo e diferenciador
(LASKI, 1973:11). Mas, não raro, tal pretensão resulta num
dogmatismo que contraditoriamente nega tal direito. Assim é o “sonho
americano” ainda hoje, assim é a ilusão do mercado perfeito
globalizado, assim foi o “sonho socialista” de Hitler ou Stalin.
Mas não se pode desconsiderar que, efetivamente, a universalidade
tem sido e deve ser a meta do direito e uma referência para a educação.
Referimo-nos aqui a direito não como sinônimo de “sistema
de leis” mas como sinônimo de “justiça”. As Revoluções
inglesa (1689), norte-americana (1776) e francesa (1789), prepararam, acumulativamente,
e tiveram seu acabamento histórico, na grande carta universal dos
direitos humanos da ONU, em 1948. De fato, a meta política de todo
direito é a universalização, no sentido de sua efetivação
por todos. Por isso, a grande tarefa histórica é a de superar,
num polo social os privilégios de poucos, no outro polo as carências
de muitos, e instaurar o direito para todos.
B) Mas esse paradigma da universalidade vem sofrendo rupturas, paradoxalmente,
com a própria Modernidade. O anti-dogmatismo imediatista (científico,
religioso, estético, filosófico...) do projeto da Modernidade
também fincou bandeira no campo da subjetividade como seu fundamento.
Sendo que o ideal de autonomia do “espírito humano” (a princípio
rebelado principalmente contra o “espírito divino” medieval) que
estava por trás dessa subjetividade rapidamente converteu-se em
ideal de autonomia do indivíduo. Autonomia no trabalho (“livre-iniciativa
no mercado”) que estendeu-se ao ideal de autonomia cognitiva e moral de
cada singularidade individual.
São complexas as condições que conduziram a razão
moderna a essa quebra do grande consenso, essa ruptura da onipotência,
esse deslocamento para o escorregadio campo do sujeito individual, campo
do imprevisível e incontrolável. Houve razões teóricas
e razões práticas que produziram essa mudança, que,
além disso, não se processou subitamente, nem definitivamente.
Ao contrário, trata-se de um processo que continua em andamento
e é possível que jamais se esgote.
No plano teórico, cabe destacar a contribuição
da psicanálise, da fenomenologia e da antropologia, para essa ruptura
do universalismo. A psicanálise, por ter aberto espaço para
a compreensão da dinâmica própria dos sujeitos singulares,
ainda que, nesse movimento, tenha deslocado certas determinações
“universais” para o interior (o inconsciente) do indivíduo. A fenomenologia,
por ter procurado compreender a existência humana, sempre em último
caso a “minha”, como um processo de construção de significados
resultante de um imprevisível jogo entre nossas determinações
(biológicas e culturais) e nosso potencial de transcendência
(liberdade) a essas determinações. A antropologia pós-estruturalista,
por ter enfatizado a diferença como inerente ao sentido de cultura,
e sua irredutibilidade à universalidade.
No plano prático, cabe registrar as desastrosas experiências
dos totalitarismos políticos do século XX. O Estado imperial
clássico ou, hoje, seu antagonista neoliberal (o todo-poderoso mercado
globalizado que não tem rosto), devoram as especificidades das diferenças,
remetendo-as a uma universalidade abstrata. Tão abstrata que, nelas,
as individualidades só se reconhecem mediante fortes mecanismos
repressivos, indutores de projeções ilusórias das
identidades dos sujeitos. A universalidade, quando reduzida à globalidade
de mercados, ou seja, quando não coincidente com a universalidade
dos direitos, degenera seu sentido.
O “retorno ao sujeito” surge, então, como ressurgiu nas últimas
décadas, como uma área de escape ao desejo de aventura da
liberdade humana. Ou um recuo a uma interioridade que precederá
novo movimento de exteriorização que talvez esteja por vir.
A pedagogia típica dessa posição inverte o sentido
do que até então se propunha com o universalismo: agora
o indivíduo aparece como um conjunto de potencialidades singulares
aptas a materializarem-se; e, ao invés dos conteúdos pré-fixados,
são as possibilidades individuais que passam a determinar a direção
dos resultados pedagógicos a serem alcançados. Não
por acaso, o motor de tal ação são os interesses singulares
de cada indivíduo. Não por acaso o Emílio de Rousseau
é um órfão (de Pai Estado e de Mãe Cultura)
e deve, segundo seu ritmo singular, cumprir seu currículo de estudos.
Não teria sido difícil prever a posição
extrema de tal convicção: a crença na perfectibilidade
moral an-árquica de cada indivíduo, que levaria cada um a
prescindir de qualquer forma de regulação cultural, institucional.
O indivíduo singular seria concebido como a partícula fundante,
a unidade última e simples, constitutiva da gigantesca arquitetura
humana. Mas a própria física, que fornecera esta metáfora
para os fenômenos sociais, teve posteriormente que reconstruir seu
modelo de representação do cosmos. A partícula deixou
de ser um conceito-fundamento para surgir como um conceito-fronteira (MORIN,
1995:163). Já não nos remete mais para a idéia de
uma substância elementar simples e sim aponta-nos para a fronteira
do in-concebível, do in-compreensível: a complexa rede de
outras partículas e outras unidades superiores de agregação
das quais cada uma participa necessariamente. O solipsismo revela-se, então,
como uma abstração no mundo físico e, com mais razão
ainda, no mundo cultural.
C) Num movimento análogo, a pedagogia também deslocou-se
do polo do indivíduo (singularidade) para um espaço meso,
onde as microestruturas e as macroestruturas se encontrariam para cimentar
a realidade social. Um espaço intermediário (COULON, 1995:44),
onde a individualidade e a universalidade supostamente se amalgamam: o
âmbito da cultura, do institucional, com sua variedade de formas
e composições; o âmbito das particularidades. Nem mais
a abstração do universal, nem a abstração do
indivíduo isolado: o lugar da educação seria o grupal,
o setorial, o parcial, o segmento do todo, ali onde se constróem
identidades com algum rosto coletivo. Além do individual, aquém
do universal. Os temas, abundantemente, afloraram: classe, etnia, gênero,
grupos de idade, grupos de opção sexual, grupos de condição
física e/ou mental diferenciada, grupos de identidade estética,
de identidade política, religiosa, etc.
Eles fragmentam qualquer pretensão de unidade dos blocos identitários
das culturas dominantes (MCLAREN, 1997). Torna-se inaceitável a
pretensão de legitimidade totalitária das políticas
públicas uniformizadoras. As dissimuladas intenções
de se implantar uma política padronizada para a pesquisa e um currículo
nacional são recusadas. A noção de identidade nacional
deve ser revisada para que se elucide o espectro de diferenças que
ela deve conter. Ademais, para que serviria a identidade num sujeito sem
autonomia? Para que serve a identidade numa nação sem soberania?
Por isso, só cabe projetar uma concepção e prática
de políticas públicas para a educação que tenham
como critério de validação a democracia, entendida
como capacidade de realização de um projeto nacional socialmente
includente, sem prejuízo de quaisquer diferenças reais e
potenciais.
A riqueza de oportunidades pedagógicas, neste nível de
referência, tem-se mostrado praticamente inesgotável. Impulsionada
pelo extraordinário desenvolvimento das sociologias e das antropologias
neste século, a pedagogia chegou até a crer que tivesse encontrado
sua Terra Prometida.
Mas, como toda posição, a territorialização
aparece como um risco inevitável; o reducionismo, uma tentação
de difícil recusa. O perigo real é o da perda das contribuições
acumuladas nas posições históricas anteriores. E,
não raro, a insistência do olhar sobre essas particularidades
instala um confortável mas indesejável conformismo com as
condições exógenas (macroestruturais) que as determinam.
Por isso, cabe mais uma vez desinstalar a pedagogia, não dessa
sua pretensão de síntese, mas de um certo modo de pretender
a efetivação dessa síntese. Para tanto, se se quiser
pensar por metáforas, seria conveniente pensar em redes e em redes
de redes. Se se quiser considerar a questão do ponto de vista conceitual,
seria oportuno recuperar a noção de “concreto” formulada
pela tradição marxista. “O concreto é concreto porque
é síntese de diversas determinações, isto é,
unidade do diverso”, ouvimos de MARX ([1857] 1974:122). A propósito
disto, comenta KOSIK (1976):
“na apropriação prático-espiritual do mundo, da qual e sobre o fundamento da qual derivam originariamente todos os outros modos de apropriação - teórica, artística, etc.- a realidade é concebida como um todo indivisível de entidades e significados...” (p.24).
Essa realidade é “uma rica totalidade de determinações
e relações diversas” (MARX, Id. Ib.) e é disto que
se trata quando se refere não apenas aos conteúdos da ação
pedagógica mas também aos processos práticos que a
efetivam.
A ação pedagógica é, com efeito, uma ação
concreta, que se realiza em condições concretas, reconstruindo-as
e reconstruindo-se nelas, para reconstruir toda a realidade num certo âmbito
de alcance. Isto só é possível mediante uma permanente
e crítica articulação de suas particularidades com
as determinações individuais singulares que operam esta ação
intersubjetiva, e com as determinações mais universais (macroestruturais)
que aí também operam, ainda que de modo mais mediato.
De um ponto de vista epistemológico, estamos referindo-nos à
dialética como um logos capaz de permitir a compreensão
de tal projeto, posto que permite a compreensão das ações
e das potencialidades humanas, incluída a racionalidade e a ética
como fundamentos do direito. O mesmo logos dialético permite a
compreensão e a construção da universalidade, das
particularidades e das singularidades (por mediação recíproca
entre umas e outras). Um método (caminho) capaz de incorporar macrodeterminações
descendentes do Estado e microdeterminações ascendentes,
originadas da praxis concreta de sujeitos históricos críticos
institucionalmente situados (FOUCAULT, 1979). É o único
método que permite considerar cada Escola como legítimo lugar
de produção de políticas públicas.
Esta seria a face mais propriamente gnoseológica e epistemológica
da questão. Há outra dimensão, porém, a ser
considerada: a ética, que lhe é intrínseca, e de que
trataremos a seguir.
Cabem, porém, preliminarmente, alguns esclarecimentos. Inicialmente,
uma necessária distinção entre moral e ética
(CASALI, 2000:7-23)). Tanto “mos, moris” (do étimo latino) quanto
“êthos” (étimo grego) referem-se igualmente a padrões
de con-vivência humana numa determinada “morada” ou “habitação”.
A morada do homem, como animal social, é alguma cultura particular,
algum solo “pátrio”, alguma língua “mátria”. Consideraremos
aqui esses padrões culturais particulares como correspondentes ao
âmbito da moral. A moral, portanto, seria um fenômeno da ordem
particular. É a regulação dos valores e comportamentos
considerados legítimos por uma determinada sociedade, um povo, uma
religião, uma ordem política, uma certa tradição
cultural. Há morais específicas, também, em grupos
sociais mais restritos: uma instituição, um partido político,
um grupo de identidades estéticas, etc. Há, portanto, muitas
e diversas morais. Cada sistema moral cria seus próprios mecanismos
particulares de legitimação. A moral não tem compromisso
com a universalidade. Exceto quando atacada, ocasião em que busca
justificar-se construindo justificações com uma falsa pretensão
(ideologia) de universalidade. Isto tem duas implicações.
A primeira, de que até um certo ponto, dentro de uma certa margem,
a diversidade moral deve ser reconhecida como legítima, dada a contingência
de só haver vida humana concreta e materialmente dentro de certas
fronteiras culturais. A segunda, de que impõe-se a necessidade de
juízos críticos acerca das limitações da moral,
sob pena de se porem em risco os legítimos ideais humanos de realização
do direito universal.
Este segundo aspecto leva-nos ao âmbito da ética, conceito
este que convencionou-se tomar, com razoável consenso, como referenciador
do âmbito da universalidade. A ética aparece, pois, como uma
reflexão crítica sobre a moralidade. Mas ela não é
puramente teoria. A ética é um conjunto de princípios
e disposições voltados para a ação, historicamente
produzidos, cujo objetivo é balizar as ações humanas,
como uma referência para os seres humanos em sociedade, de modo tal
que a sociedade possa se tornar cada vez mais “justa”.
A ética, portanto, pode e deve ser incorporada pelos indivíduos,
sob a forma de uma atitude diante da vida cotidiana, capaz de julgar criticamente
os apelos a-críticos da moral vigente. Mas a ética, tanto
quanto a moral, não é um conjunto de verdades fixas, imutáveis.
A ética se move, historicamente, se amplia e se adensa. Basta lembrar
que, durante séculos, a escravidão foi considerada “natural”;
que há 60 anos, no Brasil, as mulheres não tinham o direito
político de votar; que há 13 anos os analfabetos também
não, etc.
Entre a moral e a ética há uma tensão permanente:
a ação moral busca uma compreensão e uma justificação
crítica universal, e a ética, por sua vez, exerce uma permanente
vigilância crítica sobre a moral, para reforçá-la
ou transformá-la.
A ética tem sido o principal regulador do desenvolvimento histórico-cultural
da humanidade. Sem ética, ou seja, sem a referência a princípios
humanitários fundamentais comuns a todos os povos, nações,
religiões, etc, a humanidade contemporânea já poderia
ter-se despedaçado até à auto-destruição.
Mas também é verdade que a ética não garante
o progresso moral da humanidade.
O fato de que os seres humanos são capazes de concordar minimamente
entre si sobre princípios como justiça, igualdade de direitos,
dignidade da pessoa humana, cidadania plena, solidariedade, etc., cria
chances para que esses princípios possam vir a ser postos em prática,
mas não garante o seu cumprimento.
Daí decorre que cada cidadão e cidadã deve incorporar
esses princípios como uma atitude prática diante da vida
cotidiana, de modo a pautar por eles seu comportamento. Isso traz uma conseqüência
inevitável: freqüentemente o exercício pleno da cidadania
(ética) entra em colisão frontal com a moral vigente,
sujeita à pressão dos interesses econômicos e de mercado.
Falar de ética é falar de con-vivência humana.
Há necessidade de ética porque os seres humanos não
vivem isolados; e os seres humanos convivem não por escolha mas
por contingência, por sua constituição vital. Há
necessidade de ética porque há o outro ser humano. Vale lembrar
que o “outro”, literalmente, é o “êthnos” (em grego), o “outro
cultural”, de onde as etnometodologias tiraram a densa referência
a seu objeto.
Mas o outro, para a ética, não é apenas o outro
imediato, próximo, com quem convivo, ou com quem casualmente me
deparo. O outro está presente também no futuro (temporalidade)
e está presente em qualquer lugar, mesmo que remoto (espacialidade).
De qualquer maneira, o princípio fundamental que constitui a
ética é este: o outro é um sujeito de direitos e sua
vida deve ser digna tanto quanto a minha deve ser. O fundamento dos direitos
e da dignidade do outro é o seu direito à vida (a ser produzida,
reproduzida e desenvolvida [DUSSEL, 2000:636) e o seu direito à
liberdade (possibilidade) de viver plenamente a partir de suas pulsões.
As obrigações éticas da convivência humana devem
pautar-se não apenas por aquilo que já temos, já realizamos,
já somos, mas também por tudo aquilo que poderemos vir a
ter, a realizar, a ser. Não é o dever-ser que fundamenta
o poder-ser, mas o contrário: o poder-ser é que é
o fundamento último do dever. As nossas possibilidades (potencialidades)
de ser são o horizonte último de nossos direitos e de nossos
deveres. São parte da ética da convivência.
Por sua vez, toda educação é uma ação
interativa: se faz mediante informações, comunicação,
diálogo, trocas entre seres humanos. Em toda educação
há um outro em relação. Em toda educação,
por tudo isso, a ética está implicada. Uma educação
pode ser eficiente enquanto processo formativo e ao mesmo tempo eticamente
má, como foi a educação nazista, por exemplo. Pode
ser boa (válida) do ponto de vista da moral vigente e má
(inválida) do ponto de vista ético.
Ora, a educação é também reprodução,
por transmissão, dos padrões validados respectivamente em
cada cultura (uma certa moral). A educação reproduz
a cultura enquanto produz novos indivíduos daquela cultura.
Sendo que, em tempos atuais, nos quais não há mais lugar
fora da rede de relações inter-nacionais e inter-culturais,
e não há mais lugar fora da rede de compromissos supranacionais
de defesa de princípios éticos universais, a educação
simplesmente não tem como ignorar, muito menos evitar, as determinações
mais universais decorrentes da totalidade de relações humanas.
Ao mesmo tempo, a educação é o lugar de se re-pensar
criticamente esse próprio padrão cultural, as formas de produção
dos indivíduos e as formas das determinações macroestruturais
da economia, da política e da cultura mundiais. Portanto a educação
é moral (particular) e é ética (universal), na medida
em que é uma possibilidade e um impulso à transformação:
desenvolvimento das potencialidades dos educandos, cada um em sua irredutível
singularidade, em tensão dialética com as potencialidades
coletivas de seu grupo (particularidades) e de toda a humanidade (universalidade).
Ora, a escola é um componente da cultura, uma instituição
do saber que reproduz e recria significados e poderes (CED, 2000). É,
no dizer de GEERTZ (1997:272),
uma estrutura de significado em cujos termos indivíduos e grupos
de indivíduos vivem suas vidas, e, mais especificamente, (...) um
sistema de símbolos através dos quais essas estruturas são
elaboradas, comunicadas, impostas, compartilhadas, modificadas e reproduzidas...
A escola é uma instituição que, pelo fato de ter
como principal tarefa promover uma adequada apropriação do
mundo pelos educandos, deve ser capaz de deliberadamente apropriar-se de
sua própria construção. Trata-se de um anti-fetichismo
radical que se impõe.
Determinações epistemológicas e éticas
(universalidade), por um lado, determinações culturais e
morais (particularidade), por outro, e determinações individuais
(singularidade) dos sujeitos envolvidos na produção do currículo,
comandam a seleção dos saberes e das disposições
que comporão o currículo escolar. De nossa parte, com WILLIAMS
(apud FORQUIN, 1993:42) pensamos que as mediações culturais
(particularidades) têm sido as predominantemente utilizadas pela
escola (pelo currículo) para cumprir sua função social.
Nisto consiste o fecundo e vital enraizamento do currículo na
cultura. Nisto reside, igualmente, seu permanente risco de reduzir suas
potencialidades a determinações menores, particulares, morais
e, no limite, moralistas. Não se desconsidera que o âmbito
da cultura contém mecanismos capazes de produzir juízos críticos
acerca do currículo. Mas se considera que tais mecanismos têm
alcance limitado. Por isso, é indispensável que se criem
oportunidades e mecanismos sistemáticos para que o dinamismo instituinte
proveniente das im-pre-visíveis pulsões e convicções
dos sujeitos individuais possa manifestar-se, para criticar e infundir
novas demandas e projetos no sistema instituído. Por outro lado,
é igualmente indispensável submeter permanentemente o projeto
particular do projeto educacional ao crivo crítico das determinações
e potencialidades universais (nos âmbitos epistemológico e
ético). Nessa condição, o currículo poderá
realizar-se efetivamente como um concreto histórico: “síntese
de muitas determinações, isto é, unidade do diverso
(MARX [1857], 1974:122) e, apenas assim, um pro-jeto aberto a uma construção
institucional cotidiana deliberada (COULON, 1995:113). Um pro-jeto de apropriação
do mundo concreto que se vive e se constrói.
Um pro-jeto aberto à realização de im-pre-visíveis
demandas singulares, particulares e universais. Um desafio às etnometodologias.
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