Amaury Cesar Moraes
“A análise dos atos de construção que os agentes
realizam tanto em suas representações quanto em suas práticas
não adquire todo seu sentido senão quando ela se obriga a
recuperar também a gênese social das estruturas cognitivas
que eles aí aplicam.”(BOURDIEU, 1991: 114)
Desde cedo aprendemos no campo das ciências sociais que não
existe uma natureza humana. É estranho, mas bastante promissor,
que a oportunidade de uma reaproximação entre educação
e ciências sociais se faça pelas mãos da matemática.
Caberia investigar as razões, o que não farei senão
muito obliquamente, pois o tema de hoje me obriga a caminhar em outra direção.
Observe-se que não direi nada fruto de uma pesquisa exaustiva e
empírica dos fundamentos sócio-culturais do conhecimento
– ou da cognição, se preferirem. São questões
bastante polêmicas que venho recolhendo há algum tempo e junto
a outras que reuni nessas semanas que antecederam esses escritos e que
ora apresento. Talvez apresentem certa força indutiva das bases
empíricas trazidas pelos pesquisadores originais que me servem de
bibliografia. Mas é uma força relativa e não moverá
essa montanha contra a qual me debato. Falo da presença que parece
irresistível das pesquisas psicológicas sobre o conhecimento
humano, sobretudo hoje dominantes pela via da psicologia genética.
Atentem para que falo de psicologia e não psicanálise, que
para mim é antes de tudo uma crítica à própria
psicologia e deita suas raízes na filosofia e na cultura, no social,
portanto. (BATISTA, 1999: 107-116)
Pois bem, como disse é uma satisfação fazer uma
reaproximação entre as ciências sociais – antropologia
e sociologia – e as questões do conhecimento, quer as epistemológicas,
quer as didáticas, quer as metodológicas.
A etnomatemática, pelo pouco que conheço e pelo que posso
inferir do que sei, nos coloca diante de um fenômeno que está
no meio de uma linha e que a divide em dois segmentos: à direita
trilharemos o que há de comum nas culturas, à esquerda o
que há de diferente nelas. Esse radical grego etno pode ser traduzido
como cultura e abrange uma dimensão bem mais ampla do que a tradução
pode apresentar. Vou explorar essa densidade.
Num texto já clássico, Rui Coelho faz um amplo, embora
breve, sumário das relações entre antropologia e pesquisas
sobre cognição. O nome do artigo torna clara essa sua proposta:
“Planos da cognição e processos culturais” (COELHO, 1989:
81-104). Nele percebemos que os vários planos da cognição
se articulam a elementos sociais e culturais bem evidentes: a representação
perceptual, a linguagem, o simbólico, as práticas sociais,
as categorias e as formas superiores de saber. O pressuposto do autor é
que “existem várias formas de conhecimento, sistematizados em graus
diversos pela cultura” (p. 82-83) E sobretudo que “a antropologia cognitiva
não é um domínio especial da ciência antropológica,
mas constitui seu todo.” (p. 82) Nesse sentido, toda ciência preocupada
com pesquisar o homem pode ser entendida como uma ciência humana.
Assim são a etnomatemática e a sociologia, quer essa esteja
rotulada de sociologia da educação, quer sociologia do conhecimento,
quer mesmo a sociologia do poder. (BOURDIEU, 1991: 117)
À primeira vista, o estudo das relações sociais
nada tem a ver com as pesquisas sobre os processos de conhecimento, a não
ser os clichês presentes no discurso pedagógico - antinômico
por excelência -: “toda relação pedagógica é
uma relação de poder”, “a educação é
um processo de socialização”, “o ensino é uma prática
social” etc..
Para além desses lugares comuns, Bourdieu fala da necessidade
de pesquisar as estruturas cognitivas “que os agentes mobilizam em seu
conhecimento prático dos mundos sociais assim estruturados: existe
uma correspondência entre as estruturas sociais e as estruturas mentais,
entre as divisões objetivas do mundo social – principalmente entre
dominantes e dominados nos diferentes campos – e os princípios de
visão e divisão que os agentes lhes aplicam.” (p. 113)
Tendo em vista esses pressupostos, as ciências sociais obedecem
“`a sua vocação de desnaturalização e desfatalização”
dos processos educacionais, desvelando “os fundamentos históricos
e os determinantes sociais de princípios de hierarquização
e de avaliação” presentes nos universos escolares.
(p. 118)
Mas essa questão que em Bourdieu aparece como “correspondência
entre estruturas, num outro autor, a respeito do surgimento da filosofia
entre os gregos, aparece como “solidariedade”. Assim se expressa Vernant:
“Advento da Pólis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens
de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para
que o pensamento racional não pareça, em suas origens, solidário
das estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega.” (VERNANT,
1984: 94). Esse exemplo parece fundamental: a filosofia não surge
por conta de um milagre, forma como uma tradição interpretava
a civilização grega, nem também é resultado
de uma natureza humana, fenômeno universal. Ao contrário,
a filosofia é solidária da pólis, “caracteriza uma
civilização que não deixou, enquanto permaneceu viva,
de considerar a vida pública como coroamento da atividade humana.”
(pp. 94-95)
Essa preocupação com o humano, entendida como uma preocupação
com o político, marca uma dupla ruptura operada pelos gregos: com
o divino e com o natural. Assim se refere Vernant: “O declínio do
mito data do dia em que os primeiros Sábios puseram em discussão
a ordem humana, procuraram defini-la em si mesma, traduzi-la em fórmulas
acessíveis à sua inteligência, aplicar-lhe a norma
do número e da medida” (p. 94) e “a razão grega não
é a razão experimental da ciência contemporânea,
orientada para a exploração do meio físico e cujos
métodos, instrumentos intelectuais e quadros mentais foram elaborados
no curso dos séculos, no esforço continuado para conhecer
e dominar a Natureza.” (p. 94) O principal elemento de realização
dessa civilização encontra-se na linguagem, que não
tem por fim nem o domínio da Natureza nem a interlocução
com os deuses, mas sim a ação sobre os homens: “É
a arte do político, do reitor, do professor.” (p. 95)
Ainda nesse contexto, quero falar de algo mais próximo do nosso
tema. Desde Aristóteles, passando pelos historiadores da filosofia
franceses Bréhier, Brun, Dumont e chegando a Marilena Chaui, para
sermos breves, o exemplo de Pitágoras e sua escola parece esclarecedor
e conveniente. Sabe-se do conhecimento entre egípcios e hindus das
relações entre a soma dos quadrados de medidas e o quadrado
de outra medida formando um triângulo – 32 + 42 = 52, entre os egípcios
ou 52 + 122 = 132, entre os hindus. Mas num caso e no outro, essa relação
era extremamente concreta, empírica, instrumental e singular. Para
Pitágoras, era exatamente o contrário: geral, “para todos
os triângulos retângulos possíveis” (DUMONT, 1986: 24),
definido por uma tríade que bem podemos representar assim: a2 +
b2 = c2, o que se constituiu, segundo a anedota corrente, causa de uma
crise entre os pitagóricos: o caso das grandezas incomensuráveis,
como a diagonal do quadrado. (ARISTÓTELES, 1979: 11-23; BRUN, s/d:
27-40; BRÉHIER, s/d: 46-49; DUMONT, 1986: 23-25; CHAUÍ, 1994:
60-66)
Esse exemplo mostra como propósitos diversos, calcados em sociedades
diversas, produzem relações com o conhecimento também
diversas. A filosofia grega nascente é também solidária
da geometria grega: eminentemente teoréticas, não aplicadas.
Vê-se que a apreensão do contexto histórico é
uma chave da compreensão das relações entre estruturas
sociais e estruturas cognitivas. Num certo sentido, em termos mais amplos,
contextos sócio-culturais diversos poderiam levar a contextos cognitivos
diversos. De modo que se entendemos como possíveis as relações
entre saberes e teorias, também entendemos como possíveis
as relações entre saberes e práticas (sem teorias),
sem propor hierarquias, nem querer universalidades (D’AMBRÓSIO,
BORBA e KNIJNIK apud FONSECA, 1999: 147-164), mas, e aqui se insere
uma certa discordância minha com algumas premissas construtivistas
que reconheço na etnomatemática, também sem propor
uma linhagem evolucionista entre saberes, uma concepção por
estágios. Apenas considero os elementos comuns ou diferentes – não
há valoração aqui.
É certo que as pesquisas assim concebidas podem produzir propostas
polêmicas porque extremadas. Lembro-me do caso de uma colega da ECA-USP
que defendeu a tese de que a língua portuguesa (norma culta)
era de tal modo “estranha” para as classes populares que deveria ser ensinada
como “língua estrangeira”. (BOCCHINI, ...)
Caberiam aqui duas observações quanto às relações
entre etnomatemática e etnologia (ou antropologia). Primeira: Lévi-Strauss
lembra que as pesquisas estruturalistas se encontram diante de um dilema:
“estudar casos numerosos, de um modo superficial e sem grande resultado”-
não se podendo falar detalhadamente de elementos particulares, como
é o caso dos culturais; ou “limitar-se resolutamente à análise
aprofundada de um pequeno número de casos e provar assim que, afinal
de contas, uma experiência bem feita vale por uma demonstração”
– mas sem poder generalizar, porque o conhecimento sobre as culturas são
bastante descritivos e não explicativos. (LÉVI-STRAUSS, 1976a:
20-21)
Segunda: analisando a “interpretação da cultura como
texto”, Freitas e Batitucci contestam “a raiz weberiana do Projeto Interpretativo”
de Geertz, pois aduzem que Weber não se arriscaria a dizer nada
sobre o significado que os balineses dão à briga de galos
sem fazer uma comparação sistemática entre a sociedade
balinesa e outras sociedades: “Ele procuraria descobrir sociedades muito
diferentes da balinesa onde a briga de galos exerce semelhante fascínio
ou sociedades semelhantes à balinesa onde não se dá
a menor importância para as brigas de galos. Em síntese, ele
viraria o mundo de cabeça para baixo atrás de semelhanças
e diferenças.”( FREITAS e BATITUCCI, 1997: 273)
Para concluir, eu gostaria de reapresentar uma questão que fiz
quando, há mais ou menos uno, conversei com um grupo de estudos
de etnomatemática coordenado pela Profa. Dra. Maria do Carmo Domite
na FEUSP. Qual é o objetivo das pesquisas de etnomatemática:
didático-epistemológico, político-ideológico
ou “para o enriquecimento do espírito humano”?
Creio que direta ou indiretamente essa questão está sendo
respondida por esse Congresso. Mas pergunto isso porque tenho uma preocupação
a que me referi “en passant”. Sinto que existe uma certa relação
entre uma perspectiva etnomatemática e a teoria da filogênese/ontogênese,
segundo a qual, por exemplo, a física aristotélica corresponderia
à infância da física moderna e contemporânea,
tal como aparece nessa proposta construtivista: “Pretendíamos, com
o auxílio da história das ciências, fazer com que os
alunos percebessem que os raciocínios que apareciam na discussão
das situações problemáticas introduzidas pelo professor,
já tinham aparecido na comunidade científica e que para a
superação deste conflito foi necessário a criação
de um novo conceito...” (CARVALHO et alii, 1993: 247)
Frente a isso, temos que recorrer a Lévi-Strauss: “Para considerar
determinadas sociedades como ‘etapas’ do desenvolvimento de outras, seria
preciso admitir que, enquanto com estas últimas se passava qualquer
coisa, com aquelas não acontecia nada, ou muito poucas coisas. (...)
Na verdade, não existem povos crianças, todos são
adultos, mesmo aqueles que não tiveram diário de infância
e de adolescência.” (1976b: 65)
Bibliografia
ARISTÓTELES (1979) Metafísica (Livro A, Cap. I, II e V),
São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores)
BATISTA (1999) “Educação, psicanálise e sociedade:
possibilidades de uma relação crítica”, Educação
e Pesquisa, v. 25, n. 1, São Paulo, FEUSP.
BOURDIEU (1991) “Estruturas sociais e estruturas mentais”, Teoria e
Educação, n. 3, Porto Alegre, Pannônica.
BRÉHIER (s/d) História da Filosofia (tomo primeiro: A
Antigüidade e a Idade Média), São Paulo, Mestre Jou.
BRUN (s/d) Os Pré-socráticos, Lisboa, Edições
70.
CARVALHO et alii (1993) “A História da Ciência, a psicogênese
e a resolução de problemas na construção
do conhecimento em sala de aula”, Rev. Fac. Educ., v. 19, n. 2 (jul-dez),
São Paulo, FEUSP.
CHAUÍ (1994) Introdução à História
da Filosofia (vol. 1: Dos Pré-socráticos a Aristóteles),
São Paulo, Brasiliense.
COELHO (1989) “Planos de cognição e processos culturais”,
Tempo Social, v. 1, n. 1, 1. semestre, São Paulo, DS/FFLCHUSP.
DUMONT (1986) A filosofia antiga, Lisboa, Edições 70.
FONSECA (1999) “Os limites do sentido no ensino da matemática”,
Educação e Pesquisa, v. 25, n. 1, São Paulo, FEUSP.
FREITAS e BATITUCCI (1997) “A falácia da interpretação
da cultura como texto”, Lua Nova, n. 40/41, São Paulo, CEDEC.
LÉVI-STRAUSS (1976a) A noção de estrutura em etnologia,
São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores).
______________(1976b) Raça e história, São Paulo,
Abril Cultural (Col. Os Pensadores).
VERNANT (1984) As origens do pensamento grego, São Paulo, Difel.