Bill David Barton
Tradução: Ana Maria Petraitis Liblik
De onde eu venho?
Auckland é chamada “a cidade dos veleiros”. Dizem que há
um barco para cada duas pessoas. Pode ser exagero, mas desfrutar o porto
e seus arredores é certamente um dos passatempos favoritos daqui.
Gostaria de contar um pouco mais sobre esse lugar porque é
onde eu moro, e meus pensamentos estão freqüentemente lá.
E isto tem se tornado uma metáfora em muitos dos meus pensamentos.
Moro em uma ilha, e vou para a cidade de Auckland todos os dias
em um ferry boat muito rápido. Esta experiência, apesar de
ser extremamente prazerosa, é apenas uma das diferentes experiências
que é possível ter nas brilhantes e azuis águas do
ancoradouro.
Velejar e pescar, por prazer, competições ou lucro,
torna o porto muito ativo. Você pode experimentar novas emoções
em jet skis, ou velhas, em viagens nos ferry boats. Eu me recordo
dessas viagens através do porto para visitar meus avós, espreitando
pela escotilha suados marinheiros jogando carvão com as pás,
numa fornalha ardente. Em nossos dias, kayakes no mar têm se
tornado populares, assim como velejar em veleiros restaurados. E isso não
é tudo: há surfistas, windsurfers, gin palaces (barcos luxuosos
antigos restaurados), navios da marinha, de carga e de passageiros, rebocadores
e embarcações de pesquisa, e, pessoas simplesmente nadando.
Onde está a metáfora aqui? Bom, isso pode esperar. Por
enquanto lembrem-se que aqueles que estão no porto não têm
as mesmas experiências. O que anda de jet ski e o que anda
de ferry têm realidades diferentes, com o suporte de diferentes
tecnologias. Mesmo que fosse possível mudar de posição
entre eles, se eles assim o fizerem, mudariam fundamentalmente o seu entendimento
destas águas azuis e furta-cores.
O desenvolvimento do vocabulário Maori.
O povo Polinésio chegou na Nova Zelândia (ou Aotearoa,
como a chamam), há mais de mil anos. A “viagem” provavelmente
começou no sul da Ásia, passou para o leste através
do Pacífico para o Tahiti, depois para o Hawaii e para o sul, chegando
na Nova Zelândia.
A imigração européia começou há
duzentos anos, e com ela, o sistema educacional britânico foi introduzido
inicialmente pelos missionários e usando a língua maori,
depois passou a ser apenas em inglês. Os maoris e os europeus se
integraram bem. Alguns dizem até se miscigenaram em todos os segmentos
da sociedade. Porém nos anos setenta, renasceu o interesse pela
língua maori e algumas escolas bilingües tornaram-se escolas
de imersão integral, visando o ensino de todas as disciplinas em
língua maori, incluindo a matemática.
Tive a sorte de estar envolvido com este projeto por 15 anos, enquanto
o discurso matemático em maori estava sendo desenvolvido. Isto incluía,
pesquisa de termos matemáticos em maori que estavam sendo usados
entre as várias tribos no país, participação
de encontros, trabalhos com colegas para desenvolver palavras para aqueles
termos que não tinham tradução, encontros com a Comissão
dos Linguistas Maori para discutir termos e gramática e testes com
o discurso nas salas de aulas. Logo depois, se retornava este discurso
para as pessoas que tinham nos ajudado, dos diferentes lugares do país,
para que opinassem sobre os termos escolhidos. Foi uma época estimulante
e desenvolvemos não apenas o vocabulário para ensinar/aprender
matemática até o final do Ensino Médio, mas também
o meta-vocabulário através do qual foi escrito o documento
curricular para a educação matemática em maori.
Embora este desenvolvimento do vocabulário esteja registrado
em outros textos, vale a pena notar alguns aspectos lingüísticos
deste processo. No início, a política lingüística
maori, determinou que não haveria empréstimo de palavras
nem transliteração. Portanto, seno e coseno, por serem
originárias do latim, ou álgebra com sua origem árabe,
tiveram que ser traduzidas em equivalentes maoris. A razão era,
que assim o discurso matemático permaneceria “puro” maori – à
luz dos acontecimentos subseqüentes, isto é de certo modo irônico.
Porém essas limitações não pareceram ser
complicadas. Maori é uma língua viva com suficientes imagens
para permitir criar este vocabulário e seus próprios meios
de nomear, etc. Assim, as palavras usadas para descrever correntezas de
rios tranqüilos (rere) e quedas d’água saltitantes (arawhata)
foram adaptadas para descrever dados estatísticos discretos e contínuos.
Naturalmente havia discussões e desacordos, mas foi surpreendente
como as discussões quase sempre levavam à unanimidade. (A
propósito, é interessante notar como matematicamente foram
benéficas tais discussões para todos os interessados: matemáticos,
anciãos maoris e lingüistas). Além do mais, este
processo foi descrito como enriquecedor da língua maori: por exemplo,
a oportunidade de retomar o uso de algumas velhas palavras, para serem
usadas de uma forma tecnológica nova.
Mas, alguns de nós que estavam envolvidos de perto no
projeto, foram se sentindo pouco confortáveis. Sim, a língua
maori era agora usada com sucesso nas salas de aula até o final
da Escola Média. Sim, o vocabulário e a gramática
do discurso foram geralmente aceitos nos círculos de autoridade
lingüistica. Sim, dicionários e glossários foram impressos
pelo governo. Mas não, não parecia certo. Parecia como se
tivéssemos criado um cavalo de Tróia que permitiu que concepções
inglesas se infiltrassem na língua maori – mas sem percebermos como
isto aconteceu.
Olhando para a Língua Maori
Na Primeira Conferência Internacional de Etnomatemática
em Granada (Espanha), expliquei como primeiro descobrimos como a língua
maori pré européia tinha concepções muito diferentes.
Percebemos que eles tratavam números como ações. Palavras
para números eram ações – não adjetivos/ numerais
como o são em inglês, espanhol ou português, nem substantivos
como o são na matemática.
O que quer dizer isto? Por exemplo: dizemos que há quatro
cadeiras nesta sala, como dizemos que há cadeiras verdes nesta sala.
Números são considerados como adjetivos/numerais. Agora vamos
dizer que as cadeiras estão quadrando, cincando na sala. Números
percebidos e expressos como ações.
Sei agora que a maioria das línguas da Polinésia
são assim, também algumas das primeiras línguas nativas
dos Estados Unidos, e algumas línguas africanas. E em algumas
línguas o mesmo se aplica às formas. Um círculo
não é uma “coisa”, é uma ação.
O que aconteceu com a língua dos maoris é que
ela se tornou escrita apenas com a chegada dos europeus. Os ingleses
não podiam conceber números como ações, e então
inconscientemente mudaram a linguagem de tal forma que os números
foram escritos/representados como eles eram entendidos por quem os escreveu/representou.
Há outras evidências de concepções
matemáticas que nos parecem ser muito estranhas, por utilizarmos
línguas indo - européias. Eis um exemplo sobre espaço.
Em inglês (ou português) é normal dar
uma posição referindo-se a partir de um ponto, normalmente
o do falante. “Está lá, à minha direita”. “É
em direção ao norte”. Nas línguas da região
da Polinésia é normal dar uma posição,
a partir de dois pontos de referência: o falante e o ouvinte.
“Está lá, além de nós dois”. “Está lá,
entre nós dois”. Só que cada uma destas posições
é indicada com apenas uma palavra ou um termo.
Outro exemplo de discussão interessante, ou de relações
entre idéias: na tradição indo - européia,
argumentos/discussões são geralmente lineares: “Dada uma
idéia X, e se uma idéia Y, então temos uma idéia
Z”. Nos discursos maori as argumentações são
geralmente genealógicos, como famílias: ”a idéia Z
vem da junção da idéia X e da idéia Y” (Literalmente
“os pais da idéia Z são a idéia X e a idéia
Y”).
Gostaria de enfatizar que a linguagem não é estável.
Todas elas podem usar maneiras diferentes de se expressar, mas uma destas
formas pode ser a mais comum ou mais fácil. A matemática
acadêmica tem crescido na tendência indo - européia:
números e formas são objetos, o espaço tem uma origem
única, as provas são lineares. Percebam que tudo isso
dá a impressão de objetividade: se um número é
um objeto, é muito difícil negar sua existência; se
posição é referenciada a partir de um único
ponto, então ele deve estar apenas nessa posição;
se uma prova é linear, então qualquer coisa que esteja no
final da linha, do pensamento, deve ser verdadeira.
Por analogia, as outras concepções dão a
impressão de relatividade: se um número é uma ação,
então seu status depende do ator; se a posição é
multi referenciada então ela depende de com quem você está
falando; se um argumento é genealogicamente construído, então
outras conclusões podem ser resultantes de casamentos de idéias
alternativas.
Em outras palavras, estou afirmando que a matemática parece
absoluta/objetiva apenas como resultado da maneira com que nós falamos.
Se ela tivesse sido desenvolvida usando outras maneiras de falar então
poderia parecer “óbvio” que fosse relativa.
Convergente ou divergente?
Gostaria de falar agora, sobre um aspecto da Etnomatemática
– esse é o caminho que forma a base para o desenvolvimento formal
da matemática.
Através da longa história da matemática como disciplina
acadêmica, foi desenvolvido um jeito de falar matematicamente. Este
caminho pode trazer idéias de outros contextos, mas, durante o processo,
as transforma em formatos padronizados. A crença por trás
desse caminhar é que nós podemos descrever quantidades, espaços
ou relações diferentemente, e que podemos usar essas idéias
de diferentes maneiras ou escrevê-las usando símbolos diferentes,
mas o que nós temos falado ultimamente é único, e
sempre a mesma coisa. No final, a matemática é universal.
Eu chamo isso de Pré-Suposição Convergente / crenças
de diferentes expressões .
Eu acredito que o oposto seja o caso. Vejamos novamente
as evidências.
A evidência etnomatemática de origens divergentes
para matemáticos nos é familiar: a estrutura e a lógica
do parentesco das relações; os sistemas espaciais de tecer
e de desenhar indígenas, o sistema perdido de navegação
dos Polinésios, os quipu Incas, e os antigos monumentos astronômicos
e templos, as abstrações e simbolizações dos
traçados na areia Lusonas, a matemática Maia, e o wasan.
Estas contribuições para a matemática podem estar
perdidas, ou rejeitadas, ou transformadas em matemática, mas as
diferentes origens são inegáveis.
Há mais evidências na história da matemática,
que não mostram um único fluxo de desenvolvimento convergente.
Por exemplo, ainda há ramos divergentes não resolvidos: análise
padronizada e não padronizada, Probabilidade Bayesiana ou Freqüêntista,
a base da Teoria dos Conjuntos e a Teoria das Categorias.
É também interessante perceber outros aspectos
do esforço humano, ao tentar entender o sentido de nosso mundo:
linguagens, música, arte. A tentativa de mostrar uma gramática
universal humana está tendo dificuldades, assim como teve, antes
disso, a procura por uma linguagem universal. E nunca ninguém ousou
sugerir que toda a música ou toda a arte sejam de apenas um tipo,
ou que basicamente provenham de uma mesma fonte. Por analogia, por
que a matemática deveria ser universal?
Porém, eu acho que a evidência lingüistica
é a mais persuasiva – e a mais surpreendente. Fiquei perplexo em
saber que algumas pessoas estão trabalhando nas unidades básicas
matemáticas através das quais toda matemática da web
será feita. Será que elas não vêem que estão
limitando a matemática através deste processo, cortando os
diferentes caminhos potenciais de conceituação matemática?
Então acredito que a matemática tem uma diversidade de
origens e conserva múltiplas potencialidades. Porém, forças
de comunicação, socialização, políticas
e históricas tornam tanto o desenvolvimento, quanto sua expressão,
convergentes. Apenas uma destas potencialidades tem se desenvolvido. E
o que é pior, estamos perdendo as outras potencialidades através
do uso crescente de apenas duas ou três linguagens nos meios de pesquisa
matemática. Eu chamo isso de Pré-Suposição
Divergente/ expressão de crenças convergentes.
Então a matemática tem origens diversas e está
convergindo, ainda que haja novos campos de pesquisa, mais doutores, mais
livros, mais aplicações. A matemática pode estar
crescendo, mas é como o crescimento de uma árvore. As raízes
convergem para um tronco que apenas produz mais ramos, da mesma madeira,
ou possivelmente, flores, e produz sementes que essencialmente porém,
serão as mesmas árvores.
Uma boa metáfora para como eu vejo a matemática
de uma maneira mais ampla, é representada pelos barcos no porto.
Cada tipo de barco (cada matemática) dá ao marinheiro um
tipo diferente de experiência de mundo do lugar. Um pescador em um
barco de pesca vê o porto como uma trama de posições,
lugares onde é bom conseguir certos tipos de peixes. Um passageiro
nos ferry boats pode cruzar o porto através de uma rede de percursos
possíveis, de passeios que podem ser feitos. O ferry boat pode navegar
no porto sob condições muito árduas do que para o
barco de pesca. O barco de pesca pode ir para lugares com rochas onde o
ferry não pode navegar. É o mesmo mundo, mas há diferentes
entendimentos. Nenhum deles é a verdade.
D’Ambrosio, naturalmente, tem chamado a atenção para
diferentes epistemologias, já há muito tempo (1987, p.74):
“...enfrentamos uma necessidade de epistemologias se queremos explicar
formas alternativas do conhecimento. Embora derivadas da mesma realidade
natural, estes conhecimentos são estruturados diferentemente”.
Simplesmente porque um sistema de conhecimento tem absorvido
partes de outros e tem tido uma enorme quantidade de tempo e de energia
colocados em seu desenvolvimento, isto não torna esse conhecimento
único nem corretamente estruturado. Podemos reconhecer seu poder,
sua beleza, e sua aparente generalidade. Mas devemos também reconhecer
sua possível destruição (de nosso mundo e de outros
conhecimentos), suas inconsistências, suas lacunas e sua falta de
penetração nos diferentes meios, tanto acadêmicos como
não acadêmicos. Outras possibilidades de fazer matemática
foram – e provavelmente ainda são – possíveis. Por exemplo,
que tipo de sistema geométrico teria evoluído da descrição
do espaço com múltiplas origens?
Deixem-me dar mais uma metáfora para as Pré-Suposições
diversas/ crença de expressões convergentes: esta litografia
de M.C. Escher. Os dois pássaros diferentes representam dois “espaços”
matemáticos. Na maior parte das áreas, os dois pássaros
definem um ao outro: fica claro que estamos descrevendo o mesmo “espaço”,
mas de duas formas diferentes. Mas há algumas partes no mundo em
que só é possível definir o espaço e os pássaros
através do pássaro claro, e outras partes em que só
se pode ter esta definição, usando o pássaro escuro.
Não nos preocupa se um dos pássaros está
mais detalhado do que o outro. Os avanços na matemática
acadêmica podem ser vistos como traçando mais e mais detalhes
no pássaro claro. Não importa o quanto nós fazemos
isto, nunca teremos este sentido no espaço definido pelo pássaro
escuro. Eu fico preocupado que, se perdemos a habilidade de entender as
concepções por trás das linguagens/línguas
indígenas, então perderemos para sempre a possibilidade.