A GEOMETRIA NA CONSTRUÇÃO DA TAKÃRA
 Aldeia Indígena Tapirapé – Santa Terezinha – MT
Por Adailton Alves da Silva
Professor de Matemática - UNEMAT
Campus Universitário de Barra do Bugres - MT
RESUMO

Esta pesquisa busca conhecer a Matemática praticada e elaborada por um determinado grupo cultural e que está intimamente ligada ao meio sociocultural deste grupo, é denominada Etnomatemática. Neste trabalho, o grupo pesquisado é o da Aldeia Indígena Tapirapé que fica às margens do rio Tapirapé localizado ao longo do nono grau de latitude sul. Nesta comunidade, foi estudada a Matemática utilizada na construção da Takãra. Matemática esta que aparece em temas ligados à sua cultura.
Na construção da Takãra fazemos uma relação da Matemática utilizada pelo grupo com a Matemática acadêmica.
Desta forma, a pesquisa busca entender a realidade do grupo e transformar-se em proposta curricular de matemática.
 
Palavras chaves no texto:
Takãra – Tapirapé - Construção

 Introdução
Os Tapirapé são índios pertencentes à tribo Tupi que habitam às margens do rio Tapirapé. Sendo que o mesmo está localizado ao longo do nono grau de latitude sul.
Os Tapirapé, como também os Karajá, habitantes da mesma região têm nas suas respectivas aldeias a casa destinada às suas comemorações, festas, reuniões, etc. Para os Karajá é chamada de Casa de hetohoky e para os Tapirapé é chamada de Takãra. Essa última merece uma atenção especial no que diz respeito à sua arquitetura.
A palavra Takãra significa casa-dos-homens, esse nome é originado devido a sua função social ser restrita para os homens adultos e rapazes da aldeia, o que discutiremos mais adiante. O significado etimológico da palavra Takãra está relacionado com ocara, do tupi antigo, que significa terreiro, praça, rua e que por sua vez, está relacionado a oca, que significa casa.
Podemos dizer que a Takãra já foi uma casa comum para os Tapirapé. Isso é demonstrado quando Baldus (1970) nos coloca o processo de construção de uma das casas comum da aldeia em 1935 e a construção da Takãra da mesma época.

A Casa Comum

Na construção da referida casa comum, os homens, durante o dia, cortam na mata troncos grossos e finos, folhas de “banana brava” e folha de “macaba”, assim conhecidas pelos ribeirinhos do Araguaia. Esse é o material necessário para as vigas , varas e cobertura da casa. Nas últimas horas da tarde levam todo o material para o lugar da futura casa, evitando assim, que o calor do dia faça as folhas de “bananeiras” enrolarem-se durante o transporte e os carregadores cansarem-se mais que o necessário.
No final da tarde, aproximadamente entre 4 e 5 horas, começa a construção da casa. As traves   verticais que ficam sustentando as vigas, formam três filas paralelas, tendo as paralelas exteriores a mesma altura, e a central uma altura maior. Assim, na casa comum (fig. 01), as traves medem cerca de 1,60m e as interiores cerca de 3,80m, o que representa a média de todas as casas com exceção a Takãra. Na casa comum, as paralelas exteriores distam da central, cerca de 2,75m, tendo a distância entre as traves de cada paralela (assinalado por círculos na fig. 02) 1m, 3,40m, 3,90m, 3,25m, 3,50m, 1,30m e 2,50m. Como estas medidas são iguais nas três referidas paralelas, resultam 7 outras paralelas de traves que são perpendiculares com aquelas e dividem a casa em quadriláteros retangulares. Essa divisão, socialmente importante por corresponder à distribuição dos habitantes em casas e família-pequenas, é marcada ainda, pelas travessas que, na altura de 1,60m, formam os lados dos quadriláteros, estando amarradas com embira quando não repousam nas forquilhas das traves verticais exteriores (fig. 01).
Depois de assentar o vigamento, os índios fincam no solo varas agrupadas em linha reta entre as traves verticais exteriores. A    série dos úmeros 1, 7, 10, 11, 8, 3 e 4 na fig. 02 refere-se a estas varas que estão assinalada por pontos na planta baixa da casa comum. As varas são amarradas com embiras na cumeeira formada pelas travessas mais altas, e  nas travessas que ligam as traves exteriores.
Nasce assim uma abóbada  comprida na qual teto e parede constituem unidade homogênea em vez de duas peças distintas. Depois de firmar as varas fincadas, são amarradas nelas varetas horizontais (assinaladas por círculos na fig. 01), começando de baixo para cima até alcançar a cumeeira.

fig. 01-   corte transversal
               da casa comum

Feito isso, colocam numa distância de cerca de 1m uma da outra, varetas de cerca de 1m de comprimento verticalmente no lado de fora das vigas transversais que ligam as traves exteriores. Essas varetas são organizadas de tal forma que ficam embaixo e meio em cima das vigas transversais, ajustando-se a metade superior à curvatura a abóbada e destacando-se um pouco a metade inferior. A única finalidade das varetas é segurar, no meio da sua metade inferior e destacada, um cordel  torcido de embira que está amarrado em cada uma delas mediante um nó e continuando estendido ao longo da casa. O cordel serve para apoiar de baixo as folhas de “banana brava” colocadas com regularidade e cuidado sobre o gradeamento de vara e vigas. Por último dá-se uma ligeira curvatura para que se ajuste à abóbada
O trabalho de cobertura da casa comum é auxiliado por mulheres jovens e pelas meninas que lhes dão as folhas daquela helicônia  levantando-as. Estas folhas são colocadas de tal maneira que cobrem o gradeamento das vigas e varas. A cumeeira propriamente dita é também coberta de folhas de “banana brava” colocadas ao comprido sobre a viga horizontal mais alta. Sobre as folhas de “banana brava” põem-se folhas verdes de "macaba" deixando suas pontas sobressair à cumeeira para atá-la uma às outras. Isso devido a folha da palmeira ser bastante pesada, o que impede que as folhas daquela helicônia embaixo delas sejam derrubadas pelo vento e enroladas pelo sol.
A parte mais baixa dos lados longitudinais da casa comum é coberta atando-se de fora folhas de "macaba" no gradeamento, pondo-as uma ao lado da outra com os talos para cima e entrelaçando-as. Sobre elas são colocadas folhas de “banana brava” fixadas nas varas horizontais da mesma forma como aquelas que pendem das varas horizontais mais altas. Este modo de cobrir costuma ser aplicado inteiramente aos dois lados menores da casa, pois folhas postas com os talos fendidos num cordel cairiam por falta de apoio nessas paredes verticais e sem curvaturas. Casa esta que antigamente era feita todas as comemorações culturais da aldeia, o que mais tarde passou a ser realizado na Takãra.

A Takãra

Já a Takãra da mesma época (1935), exige uma menção especial, não só pela sua função, mas também pelo aspecto que a distingue de todas as outras construções da aldeia no que se refere ao tamanho e ao traçado da base.
Ao contrário da casa comum, a “técnica do cordel” não é usada na cobertura da Takãra, pois a parte inferior desta grande construção fica descoberta. A parte coberta de folhas está assinalada por chaves na figura 03, descendo a cobertura apenas até a altura em que um adulto possa penetrar no seu interior sem precisar curvar-se. A parte superior é coberta como a parte superior de outras casas e com tantas camadas quantas necessárias.
Outro aspecto que a Takãra diferencia da casa comum, é que as traves que apoiam as vigas horizontais mais baixa não são verticais, mas sim inclinadas e fincadas mais no interior da casa, formando um ângulo agudo com as traves verticais e seguram também as vigas horizontais saídas consideravelmente para fora da   cobertura  (fig.14) que atravessam a Takãra em 3,25m de altura, dividindo em 3 partes de 8m, 15m e 7,60m de comprimento (fig. 04).

O que também é diferente da casa comum é o seu traçado da base. Sendo que o traçado da Takãra é uma figura semelhante à uma elipse, e a casa comum é semelhante a uma figura quadrilátera retangular.

O processo de construção, quer o da Takãra, quer da casa comum, são praticamente iguais, o que diferencia é basicamente o traçado da base, a cobertura e a inclinação como referimos anteriormente.
Depois do contato dos Tapirapé com os brancos, tanto a Takãra como a casa comum sofreram modificações. Sendo que a casa comum durante todo o processo foi a que mais perdeu sua identidade.
Em 1955, segundo o Padre Francisco, os Tapirapé já tinham copiado os padrões das casas dos vizinhos sertanejos, no que diz respeito a arquitetura, planta baixa e telhados. O que permanece, porém, nestas habitações, é o costume de vários famílias pequenas coabitarem uma mesma casa, e a inexistência de paredes divisórias ou janelas, sendo que esses aspectos são conservados até os dias atuais.
 Ainda na mesma época, a Takãra era, na nova aldeia Tapirapé, a única construção feita nos padrões tradicionais, tanto em relação à forma como o material. Isso é devido o mesmo só ser encontrado muito longe, não sendo utilizado para as demais construções. Digno do seu lugar de construção desde os primeiros registros sobre os Tapirapé, como nos coloca Baldus (1970), a Takãra ainda hoje é construída no centro da aldeia, onde as casas comuns são construídas num "círculo" em volta da Takãra.
 

Demonstração da Construção da Takãra
A Takãra, como já colocamos anteriormente, pouco sofreu modificações nos padrões tradicionais, a construção permanece no centro da aldeia com as casas  residenciais distribuídas ao seu redor. Como também, todo o trabalho - desde a coleta do material até às reuniões - tem uma organização, sendo que a mesma parte da iniciativa do cacique e depois os chefes de grupos de trabalho. Os chefes acima referidos sempre é uma pessoa mais velha. Isso é devido este ter mais experiência, mais costumes e o respeito por parte dos demais moradores da aldeia.
Para demonstrar todo o processo de construção da casa-dos-homens vamos colocar passo a passo como é feita a demarcação da planta baixa, as medidas, as inclinações das traves e toda sua arquitetura, o que nos facilitará o entendimento da construção, assim como a análise das figuras geométricas, o que será feita mais adiante.
Na construção da Takãra a unidade de medida usada pelos Tapirapé é o passo. Para que possamos ter um entendimento melhor, faz-se necessário que façamos a conversão dessa unidade de medida para a unidade de medida universal, o metro.
Sabe-se que 1000 passos duplos são equivalentes a uma milha terrestre o que corresponde 1609 metros. Então 1 passo duplo eqüivale a 1,60m, o que nos leva a conclusão que um passo comum eqüivale a 0,80m.
Vejamos então, como é feita a demarcação da base da Takãra, nas ilustrações 08, 09, 10 e 11.
 
 

 
 
 
Nas figuras 08, 09, 10 e 11 representamos os quatros estágios da demarcação da área da Takãra. No primeiro momento mede-se 10 passos (8m) de comprimento e coloca-se 02 traves, que estão assinaladas por bolinhas, de cerca de 8 passos (6,40m) de altura tornando-se as traves centrais; no segundo momento mede-se 2,5 passos (2m) de cada lado no sentido perpendicular à primeira linha (linha central), tornando-se as traves dos extremos; no terceiro momento, é colocado uma trave de cada lado externo das duas traves centrais numa distância de cerca de 6 passos (4,80m), formando assim a figura l0, ou melhor, uma figura triangular; no quarto momento é feita, a olho nu, a aproximação da figura até então formada à uma figura semelhante à “elipse”.
Depois de fazer toda demarcação da construção da casa-dos-homens, o próximo trabalho a ser encaminhado é fazer toda armação da casa, o que mostraremos nas ilustrações a seguir.
No armamento da Takãra o primeiro passo é colocar as traves centrais (fig. 08), as dos extremos de 5 passos (4m) de comprimento (fig. 09) e a travessa da cumeeira com 10 passos (8m) de comprimento, como também, colocar as vigas de 3,5 passos (2,80m) de comprimento que ficam inclinadas (ver fig. 03)  e formando um ângulo agudo com as varas de 20 passos (16m) de comprimento(fig.03).

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Algumas Análises/Considerações

Nesse trabalho mostramos alguns processos matemáticos utilizados pelos Tapirapé, tais como: construção de figuras geométricas e noção intuitiva de força mostrando e analisando a relação que a Matemática informal tem com a matemática formal, explorando o campo geométrico.
A Takãra é semelhante ao formato de uma “elipse”. Para construir essa figura os Tapirapé passam por um processo de composição de figuras geométricas que das quais demonstram ter mais domínio. O ponto de partida é uma reta com dois pontos distintos nos extremos. Para que a reta adquira a semelhança de um retângulo, mede-se 2m, sendo em cada extremo da reta, no sentido perpendicular e aí temos então uma segunda reta, e do outro lado da primeira reta é feito o mesmo processo, formando assim um retângulo (fig. 09).
O que podemos analisar é que para construir um retângulo existem várias maneiras. Por exemplo, os Tapirapé para construir um retângulo apropriaram-se de um axioma conhecido, na matemática acadêmica, de paralelismo . Podemos dizer que mesmo sem o domínio da Matemática acadêmica, os Tapirapé utilizaram esse pressuposto axiomático do paralelismo para construir o retângulo inscrito  na Takãra. Isso fica demonstrado no momento em que eles medem 2m que distam da primeira reta, e que em qualquer lugar da reta esta distância será mantida.
Já no que se refere à área da Takãra, os Tapirapé não demonstram processo algum para calcular a área da mesma. O tamanho da casa-dos-homens é determinado conforme a quantidade de pessoas que freqüentam a mesma no dia-a-dia da aldeia. Mas, mesmo não nos demonstrando processo algum, os Tapirapé nos deixam claro que a noção de espaço ocupado por pessoa é do domínio da comunidade. Isso é comprovado quando um integrante da tribo nos coloca que “antigamente a Takãra era bem maior e hoje a Takãra é pequena”, o que  também é colocado por Baldus (1970) que no início do século na aldeia tinha em torno de 1500 índios. Esse aspecto é devido o número de pessoas que outrora também era maior.
Outro aspecto que é analisado no presente trabalho é a “noção de força” que os Tapirapé nos demonstraram na construção  da casa-dos-homens no que diz respeito à arquitetura da mesma.
Para que a Takãra tenha uma abóbada sobre a sua metade inferior perfeitamente segura, é colocado, verticalmente, traves finas e compridas em volta de toda a casa, e depois são amarradas na cumeeira (travessa central - ver figuras 12 e 13). Lembramos ainda que as mesmas são forçadas a encostar à cumeeira. Mas para que esse trabalho fique perfeito e duradouro, é colocado em volta de toda a casa traves mais grossas e mais baixas, e sobre estas, colocado vigas, sendo que as traves são colocadas de forma organizadas meio que inclinadas para fora (fig.03) com o objetivo de sustentar as traves que formam a abóbada, fazendo assim, a anulação da força exercida por estas, essa noção de força utilizada pelos Tapirapé, empiricamente .
Partindo desse conhecimento vamos nos delimitar em uma pequena parte de “força”. Como as traves menores estão colocadas de uma maneira inclinadas para fora, as mesmas têm a finalidade de uma “escora” e exerce uma força contrária aplicada pelas traves maiores. A essa força, trocada entre as traves maiores e as traves inclinadas menores, dá-se o nome de força de atrito (Fat). Como as traves permanecem em equilíbrio, podemos afirmar que a força de atrito tem mesmo módulo que a força aplicada. O que é denominado de atrito-estático .
As situações reais tomadas no presente trabalho foram propícias para análise dos modelos utilizados através da comparação com o modelos escolares. Neste caso, poder-se-ia tomar tais situações como ponto de partida para construção de conceitos e de modelos matemáticos requeridos na escola.
Na base destas argumentações está o reconhecimento de que cultura e pedagogia não podem ser interpretadas de forma abstrata, imunes às relações de poder que permeiam no espaço de social. Mais ainda, exatamente por estarem intrinsecamente conectadas com a luta por legitimação e dominação. Sua relação é continuamente tensa e muitas vezes contraditória. É neste quadro que pode ser pensados alternativas curriculares onde a cultura dos grupos subordinados esteja centralmente presente .