CO 4: Etnomatemática e Formação de professores: desafios e perspectivas na construção de uma Etnopedagogia.
Jane Bittencourt

 


Proposta do tema escolhido
Inserido no eixo temático “aspectos teóricos”, este trabalho procura discutir a relevância e o papel da abordagem Etnomatemática no que diz respeito aos processos de formação inicial de professores de Matemática e suas implicações no ensino de matemática nas escolas,  campo de atuação dos futuros professores.

Resumo
Este trabalho resulta da experiência desenvolvida na disciplina de Didática no curso de licenciatura plena em Matemática na UFSC. Procura refletir acerca da relevância da abordagem Etnomatemática na formação do futuro professor a partir da consideração de aspectos metodológicos, epistemológicos e didáticos. Conclui em torno do papel da Etnomatemática tendo em vista a elaboração de uma perspectiva antropológica de educação matemática e, de modo geral, de educação, no sentido da Etnopedagogia.

Palavras Chaves: formação de professores; educação matemática; transdisciplinaridade

Introdução

“Professora, nós não queremos ler textos...Por que a senhora acha que                                                                              escolhemos Matemática???”  Fala   de   uma   aluna  do curso  de  licenciatura  em Matemática, na disciplina de Didática Geral, 5ª fase.

 Os avanços nas pesquisas em Educação Matemática na última década têm se refletido nos cursos de formação de professores principalmente através do surgimento de novas disciplinas, onde se inclui a Didática da Matemática, ou ainda na tentativa de  contextualização do conhecimento matemático nas diversas disciplinas específicas. De modo geral, o modelo tradicional de ensino de matemática tem sido criticado, em  prol das diferentes abordagens construtivistas. Geralmente, estas mudanças, assim  como suas repercussões nas práticas pedagógicas escolares, têm incidido mais sobre questões metodológicas do que propriamente epistemológicas e didáticas.
 No caso estudado, o curso de licenciatura plena da UFSC, uma análise curricular permite-nos destacar o esforço em valorizar a formação de professores através de novas disciplinas pedagógicas que tratam de temas contemporâneos como é o caso das novas tecnologias e o ensino de matemática, ou ainda nas adequações curriculares tendo em vista seguir as diretrizes para cursos de formações de professores.
 De fato, este modelo de formação que separa teoria e prática tem sido questionado nos últimos anos, com a contribuição inclusive de diversos pesquisadores em Educação Matemática  ( Bicudo, 1999; Geraldi, Firentini, Pereira, 1998). A partir de diferentes fóruns de discussão, particularmente os Fóruns das Licenciaturas, tem-se procurado ultrapassar  esta desarticulação, o que resultou, no âmbito da UFSC, na aprovação de diretrizes para os cursos de formação de professores( Resolução Cun/2000) com indicação de aproximar o licenciando do contexto escolar desde a fase inicial do curso.
 Portanto, se por um lado evidenciamos um movimento de mudanças, notamos também permanências. As mudanças têm sido emergenciais, buscando atender as demandas internas da área, como é o caso da historicização do conhecimento matemático, ou externas, como é o caso da introdução de atividades de prática de ensino em diversas disciplinas.
 De modo geral, estas mudanças, pelo seu caráter emergencial, revelam-se bastante superficiais seja devido à desarticulação entre as diferentes disciplinas que compõem a grade curricular das licenciaturas, ou ainda devido à dificuldade em romper-se com uma grande permanência, comum à matemática enquanto campo de conhecimento e enquanto disciplina escolar: o conjunto universalidade/neutralidade/racionalidade”, um núcleo epistemológico – e didático – bastante marcante na configuração da identidade disciplinar da Maemática e o principal alvo da crítica do programa Etnomatemática.
 Evidenciamos portanto, nesta breve contextualização, dois problemas fundamentais relativos aos cursos de formação de professores de matemática:
Primeiro, uma concepção de conhecimento matemático que permanece inalterada, apesar de pequenas tentativas, isoladas, de considerar a matemática enquanto construção histórica e social. E, relacionada a esta primeira , a estrutura estritamente disciplinar ainda presente na maioria dos cursos de formação de professores.

Objetivos

 Este trabalho procura, a partir desta problematização, discutir como a abordagem Etnomatemática poderia vir a provocar rupturas neste modelo de formação, para além das modificações curriculares.

Desenvolvimento do tema

 D’Ambrosio(1990) já destacava, desde as proposta iniciais do Programa Etnomatemática, a caracterização da Matemática enquanto campo de conhecimento marcado pelos ideais de universalidade, neutralidade e racionalidade, tão característicos da modernidade, e enraizados na cultura ocidental, européia.
 No contexto escolar, a disciplina de Matemática prolonga esta marca e legitima uma identidade que se traduz na organização do trabalho pedagógico, nos seus objetivos e métodos. A própria história da disciplina escolar no Brasil mostra, como  pesquisou Silva (1994), suas articulações com os ideais positivistas, conferindo-lhe uma herança particularmente conservadora no que diz respeito às abordagens, metodologias e conteúdos.
 Portanto, historicamente e culturalmente relacionada com o pensamento lógico em detrimento do espiríto crítico, ou ainda o exercício da abstração simbólica, em detrimento da análise da realidade social e cultural, poderíamos dizer que a marca principal do conhecimento matemático, expressa claramente na fala da aluna acima citada, é a cisão entre a razão e a criticidade, entre técnica e cultura.
 Mas, futura professora, querida ex-aluna, que matemática desejamos ensinar e aprender?
 A primeira contribuição da abordagem Etnomatemática seria, portanto, desmistificar esta concepção de conhecimento, introduzir no ensino-aprendizagem da Matemática, a dimensão histórica, mas numa perspectiva intercultural, primeira ruptura.
 Além disso, a dimensão política do conhecimento matemático se refere diretamente, como sugere D’Ambrosio (1999) à sua conexão com o desenvolvimento tecnológico e científico, no sentido de que conhecimento sempre foi compromisso.
 Por isso mesmo, os rumos que seguirão a  humanidade também dizem respeito ao compromisso político em redimensionar este núcleo  universalidade / neutralidade/racionalidade no conhecimento científico de modo geral, e marcadamente, no que diz respeito ao conhecimento matemático. Precisamos, para isso, de uma antro-ética na educação: segunda ruptura.
 Isto porque, o contexto – econômico, social político e cultural – comtemporâneo exige repostas a questões aparentemente contraditórias como os processos de globalização e a emergência de identidades locais; a objetividade  e a subjetividade, ou ainda a busca da humanização do ensino e a inserção de novas tecnologias. Se, como suger Sacristán (1999), a escola moderna está em questão, assim como os ideais da modernidade, o caráter contraditório das práticas escolares parecem se acirrar diante da complecidade da nossa existência contemporânea.
 Este  contexto evidencia a insuficiência da abordagem disciplinar e a necessidade de transceder fronteiras – epistemológicas e políticas – entre diferentes campos de saberes e de práticas sociais. Por isso a necessidade de abordagens cruzadas, transdisciplinares, que nos possibilitem transitar entre diferenças, é claro, mas também entre semelhanças: terceira ruptura.
 Do ponto de vista didático, uma Etnopedagogia sugere a consideração da complexidade do fenômeno “ensino” em suas diferentes faces, como uma grande trama de interrelações que     se    manisfesta em   diversos    processos de   construção /  interpretação, que têm um caráter dinâmico sempre movido por intencionalidades.
 A abordagem transdisciplinar sugere portanto a consideração dos processos educativos, geralmente dicotomizados – ensino-aprendizagem; teoria-prática; conteúdo-forma; processo-produto – como práticas sociais de conhecimento/ação/comunicação, ancoradas em um projeto emancipatório.
 O ensino de Matemática tem, nesta perspectiva, um grande papel a cumprir: criar novas alianças entre diferentes saberes e culturas, já que a Matemática, do ponto de vista antropológico, constitui um saber tipicamente humano, que sempre transcendeu as disciplinas.

Conclusão

 Procurei até agora identificar algumas rupturas que a abordagem Etnomatemática e uma  Etnopedagogia trazem para a educação e para o ensino de Matemática, tanto quanto à concepção de conhecimento matemático quanto às formas de organizar o currículo.
 No que diz respeito à formação de professores, estas rupturas exigem mudanças estruturais e conceituais, muito além de propostas metodológicas. Para que a Etnomatemática não seja mais disciplina na formação de professores, mas que possa permear, com sua proposta epistemológica, ética e pedagógica, o conjunto de saberes e práticas vivenciadas durante o processo – ininterrupto – de formação. Tais rupturas exigem, portanto, resignificações no campo da matemática, isto é,  novos agenciamentos nas relações entre saber e poder, para que este mude de identidade. Tarefa árdua, tendo em vista as condições de trabalho  dos docentes no ensino público ...
 E exigem, quanto aos educadores de futuros educadores, uma crença no potencial de transformação das práticas educativas, através da invenção de ações coletivas e solidárias desenvolvidas nos contextos de formação inicial e continuada.
Para além do modelo disciplinar, é cada vez mais urgente modificar o habitus disciplinar, descompartimentar os currículos (Bernstein, 1996) e colocar em ação nas instituições educativas o Restrepo (1995) denomina muito apropriadamente “el derecho a la ternura”.
 Em resumo, a motivação principal deste trabalho foi mostrar que a perspectiva  Etnomatemática é uma resposta ao estranhamento da aluna,  do por quê da necessidade da leitura em matemática. Para que, a longo prazo,  os licenciandos, assim como os alunos nas escolas, incorporem a idéia de que precisamos sim, ler em matemática, assim como fazer arte, dança, poesia ...

Bibliografia

BERNSTEIN,B. A estrutura do discurso pedagógico: Classe, códigos e controle. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
Bicudo,M.A.V.Pesquisa em Educação Matemática: Concepções e Perspectivas. São Paulo. Ed. UNESP 1999.
D’Ambrosio, U. Etnomatemática: arte de explicar e conhecer. São Paulo: Ática, 1990.
D’Ambrosio,  U. Las ideas fundamentales de soporte al programa de etnomatemática: em la natureza de matemática y las metas de la educación.
Disponível na internet < http:// sites.oul.com.br/vello/bolivia.htm>
Geraldi,C.M., FIORENTINI, D., PEREIRA, E.M. de (orgs.). Cartografias do trabalho docente / professor(a) –pesquisador(a). Campinas, SP: Mercado das Letras/Associação de Leitura do Brasil –ALB,1998.
RESTREPO,L.C. El derecho a la ternura. Bogotá.: Arango,1995
SACRISTÁN, J.G. Poderes instáveis em educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,1999.
SILVA,C.P.A ideologia positivista versus direcionamento da matemática no Brasil: século XIX e início do século XX. Temas e Debates. SBEM, Ano VII($): 28-30,1994.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA> RESOLUÇÃO N° 001/Cun/200, de 29 de fevereiro de 2000.