ETNOMATMÁTICA E COOPERATIVISMO

John A. Fossa, Ph.D.
João Ferreira dos Santos


 


Resumo

Descrevemos um projeto de pesquisa/extensão que visa o fortalecimento do embasamento teórico subjacente à formação de uma cooperativa numa comunidade no interior do Estado do Rio Grande do Norte.  A parte do projeto que pode ser caraterizada como pesquisa visa a descrição e análise dos conceitos éticos, lógicos e matemáticos da população estudada.  Em contraste, a parte que pode ser caraterizada como extensão consiste de um curso que aborda os três conceitos supramencionados como instrumentos de análise e de resolução de problemas no contexto quotidiano da comunidade.

Palavras Chaves: matemática financeira; lógica informal; cooperativismo.

Introdução

    No presente trabalho, apresentaremos um projeto, intitulado “Etnomatemática e Cooperativismo: Uma Via Ética para a Cidadania” cujo objetivo geral é proporcionar às pessoas da Baixinha dos Franças, comunidade no interior da Cidade de São Miguel do Gostoso, no Estado do Rio Grande do Norte, o conhecimento necessário para que possam estabelecer uma associação ou cooperativa onde seja possível vivenciar as perspequitivas que a Etnomatemática, agora associada ao Cooperativismo, vislumbra.  Desta forma, o projeto tem caraterísticas de pesquisa, pois pretende investigar os conceitos prima facie não acadêmicos da referida comunidade.  Mas, também tem caraterísticas de extensão, um vez que pretende devolver algo à comunidade na forma de uma reflexão crítica destes conceitos a ser feita no mencionado curso.  Esperamos que este “algo” seja bastante duradouro, ajudando a comunidade a estabelecer uma cooperativa – meta que não foi imposta pelos pesquisadores, mas que corresponde às ansiedades da própria comunidade.
    O curso que está sendo realizado como parte do projeto contempla uma metodologia de ensino que premia a participação ativa dos inscritos.  Quando o tempo permite, a aula é feita ao ar livre, debaixo de um frondoso umbuzeiro (imbuzeiro) para minimizar quaisquer inibições dos participantes.  Para alcançar a nossa meta, rejeitamos explicitamente o dogma antropológico de que o investigador deve procurar limitar-se à coleta de informação, sem provocar mudanças na cultura estudada.  De fato, para construir os alicerces de uma cooperativa sólida e duradoura, faz-se necessário significativas mudanças de atitudes e valores, bem como o desenvolvimento de certas habilidades raciocinativas relacionadas com o processo da tomada de decisões.  Em particular, a interação de conceitos filosóficos, lógicos e matemáticos dão ao curso uma forte coloração de interdisciplinaridade.  O desenvolvimento da discussão na “sala de aula”, porém, ocorre dentro do contexto do quotidiano dos participantes.  Conseqüentemente, as delimitações artificiais entre as várias “disciplinas” se dissolvem, resultando em uma verdadeira transdisciplinaridade.

Objetivos

1. Descrever a etnomatemática usada pelos moradores da citada região nas suas relações econômicas e sociais.
2. Analisar a referida etnomatemática do ponto de vista da matemática acadêmica e do ponto de vista do seu papel como uma instituição social.
3. Descrever as crenças filosóficas dos moradores da citada região referente a liberdade e cidadania.
4. Promover um curso de extensão que abordará os princípios filosóficos norteadores do cooperativismo bem como noções da matemática financeira que embasam esta modalidade de organização.
5. Buscar a participação do serviço social para analisar e discutir, a elaboração de documentos visando a criação de associação ou cooperativa que possibilite aos participantes por em prática os pressupostos teóricos idealizados pela Etnomatemática e pelo Cooperativismo.
6. Instituir procedimentos de orientação, apoio e acompanhamento de administração da entidade associativa ou cooperativa visando avaliar a eficiência do projeto objetivando sua implantação em outras áreas.

O Projeto

    Para facilitar a análise dos dados etnomatemáticos coletados e inseri-los no contexto cultural apropriado, estamos fazendo um thick description da comunidade de Baixinha dos Franças e as circunvizinhanças onde os participantes vivam e trabalham.   Aproveitamo-nos não somente de documentos oficiais, mas também, entre outras técnicas, de visitas aos vários locais, entrevistas quase clínicas e a história falada.  Temos interesse especial na concepção da própria comunidade sobre si mesma, sua história e sua cultura.  Além de tudo, teremos interesse em documentar quaisquer mudanças que porventura tiveram lugar como resultado da nossa interação com a comunidade.  Desta forma, esperamos alcançar uma compreensão holística da comunidade estudada que nos permitirá avaliar com precisão o papel da etnomatemática da mesma dentro das suas atividades quotidianas.
    A “etnia” que está sendo estudada no presente projeto consiste primordialmente da parte da população de Baixinha dos Franças que possa se integrar a uma futura associação ou cooperativa, bem como os professores das escolas da comunidade.      Os professores foram incluídos no estudo porque servem como um elo histórico, ajudando a garantir a continuidade das instituições sociais, incluindo uma possível cooperativa, da comunidade.
    Os conceitos matemáticos desta etnia mais importantes para o estudo classificam-se em duas grandes categorias: a matemática financeira e a lógica informal.  A relevância da matemática financeira ao estabelecimento e manutenção de uma cooperativa é óbvia.  A inclusão da lógica informal no estudo visa a identificação de padrões de inferência usadas na comunidade, pois as mesmas podem ser determinantes quando faz-se necessário tomar uma decisão baseada, como quase sempre é na vida quotidiana, em evidência parcial e com referência a metas mutuamente conflitantes.
    A análise dos dados colhidos levará em consideração dois tipos de condicionantes.  Em primeiro lugar, faz-se necessário confrontar os conceitos etnomatemáticos da comunidade estudada com os conceitos etnomatemáticos da matemática acadêmica.  Por um lado, a matemática, como um corpo de conhecimento estudado e estruturado através dos tempos na academia, goza de um nível de consistência e completude que as etnomatemáticas não acadêmicos geralmente não alcançam.  Isto ocorre porque na academia a matemática é um objeto de estudo consciente, crítico e intensivo, o que geralmente não é o caso em contextos não acadêmicos.  Desta forma, a matemática acadêmica freqüentemente pode servir como um guia na refomulação e desenvolvimento da matemática não acadêmica.  Por outro lado, a matemática acadêmica tem uma forte tendência de codificar processos que vê como os mais eficientes para os seus propósitos e desprezar processos equivalentes.   Assim, a grande variedade de possibilidades dentro da própria matemática é artificialmente truncada, resultando em uma teoria menos completa.  O estudo da etnomatemática poderá ajudar a combater esta tendência perniciosa.
    O segundo condicionante referente à análise dos dados colhidos tem a ver com o papel da etnomatemática como uma instituição social dentro da comunidade.  Como tal, a etnomatemática é um instrumento para, entre outras coisas, resolver problemas práticos do quotidiano, disciplinar a interação das pessoas de várias formas, bem como definir e alcançar metas da comunidade.  Assim, faz-se necessário avaliar a maneira em que a etnomatemática da comunidade desempenha seu papel social e refletir sobre como a mesma contribui para a definição das próprias metas comunitárias.
    Um outro grupo de conceitos, de cunho filosófico, centrado na noção de justiça social é essencial ao bom funcionamento de uma associação ou cooperativa.  Estes conceitos ajudam a determinar os objetivos do grupo e reger o comportamento dos seus membros em uma forma muito mais explícita do que os conceitos matemáticos.  Assim sendo, estamos também investigando o que poderia ser chamado, por analogia, a “etnofilosofia” da comunidade.  A analogia, portanto, é apenas parcial porque o desenvolvimento destes conceitos proto-filosóficos é sujeito a uma interferência enorme, embora não sistemática e não crítica, através de várias influências, onde destaca-se a mídia.
    O curso, atualmente em andamento, aborda os três conjuntos de conceitos supracitados – matemáticos, lógicos e filosóficos – que servirão como embasamento para a organização da cooperativa proposta pela comunidade.  Não pretende transmitir conhecimento e/ou técnicas da academia à comunidade.  De fato, pretende assegurar um espaço em que os participantes possam investigar seus próprios conceitos criticamente, compará-los com os dos outros participantes e, possivelmente, chegar a um consenso comprometido sobre e para a comunidade.  Para tanto, é necessário que estes conceitos tornam-se um objeto de estudo consciente, que novas idéias venham a se contrastar ou complementar os conceitos dos participantes, e que as implicações dos vários conceitos sejam explicitadas.  O “professor” do curso (o segundo autor) age como facilitador deste processo.
    Finalmente, notamos que o nosso comprometimento com a comunidade não se exaure com o curso e a investigação descritos acima.  Pretendemos continuar a servir a comunidade na forma de consultores no acompanhamento do processo iniciado com as presentes ações, principalmente com o propósito de continuar a incentivar e apoiar os participantes e, acima de tudo, de validar sua confiança na sua própria capacidade.  Nestas fases posteriores, podemos convidar especialistas de outras áreas a contribuir para o melhoramento do projeto.

Conclusão

    Embora o projeto ainda se encontra nas suas fases iniciais, os primeiros resultados já se fazem aparentes.  Em contraste à apatia generalizada, caraterística de áreas expoliadas pela paternalização governamental, a nossa presença tem contribuído para grandes mudanças de atitudes entre os participantes.  O fato de que estão fazendo um curso promovido pela Universidade (UFRN), resultando no recebimento de um certificado, tem servido para promover nos participantes e seus vizinhos um senso de empowerment sobre seu próprio destino.  Isto pode ser exemplificado pelo seguinte acontecimento.  Um encontro contou com a presença do Prof. Daniel Orey da Universidade de California em Sacramento que estava em visita ao nosso grupo de pesquisa na UFRN.  Depois dos benvindos, como sempre sinceros e calorosos, um dos participantes ponderou

vamos aprender muito com vocês, mas vocês também têm muito à aprender conosco.

    Tal afirmação não teria sido concebível há apenas alguns meses, no início do curso.
    Além disto, o interesse que os pesquisadores mostraram na comunidade tem provocado uma revalorização da cultura local por parte dos participantes.  Já desenvolveram um projeto destinado a resgatar a história de Baixinha dos Franças e outra para registrar a linguagem usada no dia a dia pelos moradores mais antigos da comunidade.  Tudo isto tem contribuído para a construção, da parte dos participantes, da sua própria identidade como pessoas valorizadas.  Finalmente, notamos que há também indícios de que as pessoas que moram na comunidade, mas que não participam do curso, mesmo assim estão acompanhando os participantes nestas mudanças de atitudes.
 
 
 

Bibliografia

1. D’Ambrosio, Ubiratan. 1990. Etnomatemática. São Paulo, Editora Ática.
2. Ferreira, Eduardo Sebastiani. 1997. Etnomatemática: Uma Proposta Metodológica. Rio de Janeiro, MEM/USU.
3. Fossa, John A. 1990. Técnicas de Demonstração em Matemática. Natal, Editora Clima.
4. Powell, Arthur B. e Marilyn Frankenstein (org.). 1997. Ethnomathematics: Challenging Eurocentrism in Mathematics Education. Albany, N.Y., State University of New York Press.