1.Título: Reflexões sobre Etnomatemática e a questão da significação na Educação Matemática de Jovens e Adultos
2.Tema: As relações da etnomatemática com a Educação de Jovens e Adultos
3. Autora: Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca

4. Resumo:
Neste trabalho, focalizamos a Abordagem Etnomatemática inserida nos esforços de resgate da questão da significação no ensino da Matemática para Jovens e Adultos,  entendidos como gestos de incluir no objeto da Educação Matemática o mundo, o sujeito e a história. A inclusão do mundo se identifica no modelamento e resolução de problemas do cotidiano; o sujeito se revela quando imprime ação e intenção  nos modos do fazer matemático; a consideração da historicidade nos processos de ensino e aprendizagem da Matemática demandará a identificação de seu aspecto interacional e interdiscursivo.
 
5. Palavras chaves: sentido – Educação de Jovens e Adultos – Educação Matemática

6. Introdução:
 Na Educação de Jovens e Adultos(EJA), os processos de ensino-aprendizagem da Matemática apresentam-se como espaços de negociação de sentidos e convocam os sujeitos envolvidos a assumirem posições marcadas pelos esforços de significação que determinam as relações com a Educação, a Escola,  a  Matemática. Ao discutir aqui a questão do sentido (e da significação) da Matemática – e de seu ensino na EJA – estamos, pois, considerando-a como um fenômeno humano, portanto histórico, e procurando romper com uma posição idealista que a toma como uma realidade preexistente, absolutamente independente dos objetos empíricos, “prescindindo de qualquer ato preliminar de construção” (Machado,1987, p.20). Tomamos a Matemática, como a Linguagem, representando “um acúmulo de trabalho intelectual” (Guimarães,1995,p.16), sendo construída pelo consentimento de muitas vontades, do acordo de muitas vontades, “umas presentes e atuantes, outras desfeitas e desaparecidas” (Bréal,1897,197).

7. Objetivos:
  Na reflexão que pretendemos tecer neste trabalho, queremos apontar como percebemos a Abordagem Etnomatemática inserida nos esforços de resgate da questão da significação no ensino da Matemática para Jovens e Adultos. Esses esforços são aqui entendidos, tal como no trabalho de Guimarães (1995) (sobre o resgate dessa mesma questão nos estudos lingüísticos), como gestos de incluir no objeto da Educação Matemática o mundo, o sujeito e a história.

8. Desenvolvimento do tema:
O sentido e o mundo:  Se estabelecêssemos um paralelo entre visões da Matemática e da Lingüística, diríamos que o tratamento idealisticamente “asséptico”, que muitas propostas, materiais e agentes do ensino têm legado à Matemática, aproxima-a muito menos da abordagem semântica de Bréal do que da concepção de língua tomada por Saussure. A língua para Saussurre(1916), assim como a Matemática para muitos matemáticos, educadores e usuários, “é constituída de signos e estes se definem pelas relações que têm entre si, sem recurso a nada que seja exterior”, destituída do que é individual, subjetivo, de tudo o que “diz respeito à vontade e à inteligência” (Guimarães,1995,p.19).
Entretanto, num movimento de re-estabelecimento da relação entre a expressão matemática e o objeto (ou fenômeno) do mundo que seria por ela expresso, o recurso à modelagem e à resolução de problemas do cotidiano do aluno vem sendo freqüentemente recomendado e adotado no ensino de Matemática, especialmente para adultos, como alternativa que busca “tornar o ensino da Matemática mais significativo para quem aprende, na medida em que parte do real-vivido dos educandos para níveis mais formais e abstratos” (Monteiro,1991,p.110). A Matemática assume relevância porque capaz de expressar (e apresentar previsões ou soluções para) situações reais ou realizáveis. Por isso, na sala de aula, a abordagem deverá privilegiar teorias de aplicabilidade imediata e a verificação das asserções será feita por meio de sua adequação e abrangência ao descrever fenômenos e predizê-los.
Segundo Monteiro, para uma boa parte dos educadores matemáticos que adotam a Modelagem como proposta de ensino, a realidade concreta “é conceituada como sendo todos os fatos ou dados tomados em si mesmos, além de toda a percepção que os indivíduos inseridos nesta realidade têm destes fatos”(p.117). Podemos tomar essa concepção dos “fatos ou dados tomados em si mesmos” como uma aproximação do que Frege(1892) chamou de referente. Propostas mais estritas de modelagem matemática restringirão as “percepções dos indivíduos” àquelas que poderiam ter, de forma socialmente reconhecida, uma contribuição relevante para a compreensão do dado e, futuramente, na elaboração do modelo, ou seja, associariam-nas à idéia freguiana de sentido. Há autores, entretanto, que admitem o caráter subjetivo das “percepções” (o que nos levaria a identificá-las com a representação de Frege), abrindo assim um campo para a inclusão de um outro elemento, até então excluído: o sujeito.
O sentido e a ação do sujeito: Poderíamos aqui ensaiar uma aproximação com as abordagens da linha construtivista no ensino da Matemática tomando-as como um esforço de inclusão do sujeito, na produção dos sentidos do fazer e da aprendizagem da Matemática. Não é muito fácil caracterizar o que sejam abordagens construtivistas para o ensino da Matemática pois o “construtivismo” é sempre arrolado “em termos excessivamente genéricos e simplistas, o que permite apelidar quase todo mundo de ‘construtivista’”(David,1995,p.62). Por isso, em nossa interpretação, queremos enfatizar sua preocupação em oportunizar um acesso ao aprendizado numa ação não apenas ordenada por regras, mas constituída por elas, num percurso que vai “do uso à reflexão e da reflexão à busca da regularidade” (Parra & Saiz, 1996, p.116). É, pois, dessa regularidade (e da ação de identificá-la) – que é menos da natureza do objeto do que da interpretação que o sujeito, ao agir sobre ele, lhe confere – que emergem os sentidos da Matemática e do seu aprendizado.
Embora a literatura que discute e divulga propostas construtivistas para o ensino da Matemática dificilmente se refira a experiências de ensino-aprendizagem de alunos adultos da Escola Fundamental, princípios caros ao Construtivismo permeiam, no mínimo, o discurso da EJA e, em particular, do ensino de Matemática para Jovens e Adultos. De fato, a consideração do aprendiz como um “sujeito ativo”, capaz não só de identificar como de estabelecer relações entre objetos e fenômenos e a concepção de aprendizagem como a conquista de uma certa “autonomia” na construção e na utilização do conhecimento são pontos não raro arrolados – embora nem sempre operacionalizados – como pressupostos de muitas iniciativas da EJA, na medida em que  se coadunam ao pensamento de autores-referência nesse campo, em particular Paulo Freire, ainda que não necessariamente abarquem outras dimensões fundamentais de sua obra como a inserção cultural e a politização do ato de aprender.
O sentido e a intenção do sujeito:  No entanto, não é raro encontrarmos ainda entre os educadores matemáticos, mesmo entre os que trabalham na EJA, aqueles para quem a “independência do mundo empírico” e a “obediência exclusiva a suas leis próprias” são vistas como “características” da Matemática que supostamente garantiriam sua pretensa “pureza”. Tanto menor será, nesse caso, o espaço aberto para a intervenção de um sujeito consciente de suas intenções e que quisesse e fosse capaz de expressá-las no seu fazer matemático, já que isso poderia “contaminar” com as peculiaridades de sua personalidade e intencionalidade a produção matemática.
Fica assim difícil admitir que na Matemática se possa ter um sentido não natural, instituído por uma intenção tal que se dá a conhecer por si mesma. Isso nos levaria a estabelecer uma “pragmática” da Matemática que colocasse em pauta a relação do aprendiz, do usuário ou do produtor de Matemática com a própria Matemática. É nessa relação que se constituiria o sentido do fazer matemático, colocando para dentro das preocupações sobre a significação a situação em que esse fazer se configura e trazendo à cena “um sujeito individual que fala em situações particulares”(Guimarães, 1995, p.33).
Muitos estudos que se vêm desenvolvendo considerando a influência das intenções (e das características) do sujeito ou da comunidade na expressão e mesmo nos resultados da produção matemática procuram compreender a lógica própria dos procedimentos matemáticos, adotados por um indivíduo ou uma comunidade,  enquanto manifestação de suas preocupações, que se revelam nas ênfases e nas omissões, no estabelecimento de critérios, procedimentos e notações, na admissão ou seleção dos conceitos básicos ou no desenho da malha de suas derivações.
A proliferação de investigações sobre a produção dos alunos; a flexibilização das cobranças em relação a uma forma de expressão padronizada dos procedimentos matemáticos na realização de atividades escolares pelos alunos; o incentivo à apresentação de registros mais personalizados das estratégias por eles adotadas; enfim, a maior relevância atribuída ao processo do que ao produto nessas atividades: são marcas de que  há, na Educação Matemática, no mínimo,  um clima de maior boa vontade na consideração da intenção  do sujeito no fazer matemático.
Iniciativas no campo da EJA, entretanto, precisam reconhecer o aluno não apenas como sujeito psicológico, mas como sujeito cultural,  já que a condição de membros de determinados grupos culturais é, ao lado das condições de não-crianças e de excluídos da escola,  aspecto definidor do lugar social que caracteriza  o público da EJA (Oliveira,1999,p.60). Não é, pois, por acaso que muitas propostas para o ensino de Matemática para Jovens e Adultos têm procurado pautar-se em princípios e procedimentos da abordagem etnomatemática.
Com efeito, na perspectiva adotada por Knijnik(1996), essa abordagem pode ser vista como uma proposta para o ensino da Matemática que procura resgatar a intencionalidade do sujeito manifesta em seu fazer matemático, ao se preocupar com que a motivação para o aprendizado seja gerada por uma situação problema por ele selecionada, com a valorização e o encorajamento às manifestações das idéias e opiniões de todos e com o questionamento da visão um tanto “maniqueísta” do certo/errado na Matemática (escolar).
Outros trabalhos na Etnomatemática, desenvolvidos para estudar os “processos de geração, organização e transmissão de conhecimento (matemático) em diversos sistemas culturais e as forças interativas que agem entre os três processos”(D’Ambrosio,1990,p.7), focalizarão e/ou tomarão como hipótese a relação do sujeito ou da comunidade com a Matemática, que fazem ou usam, como definidora de sua forma, bem como de seu objeto. Esses estudos investigam tais processos em “grupos culturais identificáveis como, por exemplo, sociedades nacionais-tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa etária, etc”, e incluem “memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até maneiras específicas de raciocinar e inferir” (D’Ambrósio,1993,p.9). Colocando no centro da discussão aspectos culturais, as pesquisas e propostas pedagógicas nessa linha relativizam as pretensas universalidade e neutralidade da Matemática, e exibem sua intencionalidade e susceptibilidade às influências das circunstâncias e das características dos sujeitos que a produzem ou dela fazem uso. Nessa perspectiva, mesmo a Matemática chamada acadêmica é vista como “justamente uma entre outras matemáticas. A matemática produzida na academia é também ‘etno’ porque é também produzida em um contexto – a academia – com seus próprios valores, rituais e códigos especiais que também possuem as outras (etno)matemáticas” (Borba,1992,p.135)
Ao se propor uma abordagem etnomatemática para o ensino da Matemática na EJA, é preciso, porém, levar em conta que os alunos esperam apropriar-se dos conceitos ou procedimentos desta Matemática Acadêmica, tradicionalmente tomados como objetivos dos processos de ensino escolares, por sua utilidade e/ou valorização social. O processo pedagógico deve, pois, ser “orientado em um duplo sentido”: por um lado, há indubitavelmente “o  propósito de ensinar a matemática acadêmica, socialmente legitimada, cujo domínio os próprios grupos subordinados colocam como condição para que possam participar da vida social, cultural e econômica de modo menos desvantajoso”. Por outro lado, a Matemática popular não será considerada “meramente como folclore, algo que merece ser resgatado para que ‘o povo se sinta valorizado’”, embora esta operação possa produzir tal efeito. As práticas matemáticas populares são  interpretadas e decodificadas, tendo em vista a apreensão de sua coerência interna e de sua estreita conexão com o mundo prático, o que as habilita a continuarem sendo utilizadas em situações que o aluno adulto saberá julgar adequadas. (cf. Knijnik,1996, p.62)
Haveria, porém, ainda, um ponto crucial (como bem o destaca Knijnik) dos processos pedagógicos balizados pela Etnomatemática: os saberes acadêmicos e populares não devem ser tratados de modo dicotômico. Suas relações devem ser permanentemente examinadas, tendo como parâmetro de análise as relações de poder envolvidas no uso de cada um desses saberes. Essa questão nos remete à inclusão na abordagem da Matemática escolar de mais um dos elementos dela tradicionalmente excluídos: a história.
O sentido e a história: Quando admitimos que a significação – pensada aqui nos contextos de ensino-aprendizagem da Matemática, em particular, na EJA– é histórica, não nos referimos ao sentido temporal, historiográfico. Queremos, isto sim, reconhecer a significação como determinada pelas condições sociais de sua existência: “Sua materialidade é esta historicidade” (Guimarães, 1995,p.66). Essa concepção de significação nos leva a mobilizar conceitos, como discurso, enunciação, sujeito e posição do sujeito, na construção da noção de sentido, “tratado como discursivo e definido a partir do acontecimento enunciativo”(idem), na medida em que o ensino e a aprendizagem da Matemática, escolar, num Projeto de EJA, se realizam num contexto de interação verbal, onde língua e ideologia em contato produzem efeitos de sentido entre locutores (Orlandi,1992,p.20).

9. Conclusão:
 Por isso, numa abordagem que pretenda a inclusão da história na construção de sentidos do ensinar e aprender Matemática e da Matemática que é aprendida, será preciso considerar seu aspecto interacional (do ensino-aprendizagem e da Matemática) e também seu aspecto interdiscursivo. O interdiscurso é a relação de um discurso com outros discursos. Esta relação não se dá a partir de discursos empiricamente particularizados, mas são as próprias relações entre discursos que dão a particularidade que constitui cada discurso. Nesses discursos explicitam-se modos de se relacionarem conhecimento, ambiente, sujeitos e lugar histórico que se materializam nas escolhas e omissões, nas formas de expressão e de supressão, na identificação, atendimento, preocupação ou arquivamento das necessidades e na mobilização e alargamento das possibilidades que serão objeto e justificativa da interação constituída nos, e constituinte dos, processos de ensino-aprendizagem da Matemática, particularmente se esse processo se dá no contexto escolar, e de Educação de Jovens e Adultos.
 

10. Bibliografia :
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