4. Resumo:
Neste trabalho, focalizamos a Abordagem Etnomatemática inserida
nos esforços de resgate da questão da significação
no ensino da Matemática para Jovens e Adultos, entendidos
como gestos de incluir no objeto da Educação Matemática
o mundo, o sujeito e a história. A inclusão do mundo se identifica
no modelamento e resolução de problemas do cotidiano; o sujeito
se revela quando imprime ação e intenção
nos modos do fazer matemático; a consideração da historicidade
nos processos de ensino e aprendizagem da Matemática demandará
a identificação de seu aspecto interacional e interdiscursivo.
5. Palavras chaves: sentido – Educação de Jovens
e Adultos – Educação Matemática
6. Introdução:
Na Educação de Jovens e Adultos(EJA), os processos
de ensino-aprendizagem da Matemática apresentam-se como espaços
de negociação de sentidos e convocam os sujeitos envolvidos
a assumirem posições marcadas pelos esforços de significação
que determinam as relações com a Educação,
a Escola, a Matemática. Ao discutir aqui a questão
do sentido (e da significação) da Matemática – e de
seu ensino na EJA – estamos, pois, considerando-a como um fenômeno
humano, portanto histórico, e procurando romper com uma posição
idealista que a toma como uma realidade preexistente, absolutamente independente
dos objetos empíricos, “prescindindo de qualquer ato preliminar
de construção” (Machado,1987, p.20). Tomamos a Matemática,
como a Linguagem, representando “um acúmulo de trabalho intelectual”
(Guimarães,1995,p.16), sendo construída pelo consentimento
de muitas vontades, do acordo de muitas vontades, “umas presentes e atuantes,
outras desfeitas e desaparecidas” (Bréal,1897,197).
7. Objetivos:
Na reflexão que pretendemos tecer neste trabalho, queremos
apontar como percebemos a Abordagem Etnomatemática inserida nos
esforços de resgate da questão da significação
no ensino da Matemática para Jovens e Adultos. Esses esforços
são aqui entendidos, tal como no trabalho de Guimarães (1995)
(sobre o resgate dessa mesma questão nos estudos lingüísticos),
como gestos de incluir no objeto da Educação Matemática
o mundo, o sujeito e a história.
8. Desenvolvimento do tema:
O sentido e o mundo: Se estabelecêssemos um paralelo entre
visões da Matemática e da Lingüística, diríamos
que o tratamento idealisticamente “asséptico”, que muitas propostas,
materiais e agentes do ensino têm legado à Matemática,
aproxima-a muito menos da abordagem semântica de Bréal do
que da concepção de língua tomada por Saussure. A
língua para Saussurre(1916), assim como a Matemática para
muitos matemáticos, educadores e usuários, “é constituída
de signos e estes se definem pelas relações que têm
entre si, sem recurso a nada que seja exterior”, destituída do que
é individual, subjetivo, de tudo o que “diz respeito à vontade
e à inteligência” (Guimarães,1995,p.19).
Entretanto, num movimento de re-estabelecimento da relação
entre a expressão matemática e o objeto (ou fenômeno)
do mundo que seria por ela expresso, o recurso à modelagem e à
resolução de problemas do cotidiano do aluno vem sendo freqüentemente
recomendado e adotado no ensino de Matemática, especialmente para
adultos, como alternativa que busca “tornar o ensino da Matemática
mais significativo para quem aprende, na medida em que parte do real-vivido
dos educandos para níveis mais formais e abstratos” (Monteiro,1991,p.110).
A Matemática assume relevância porque capaz de expressar (e
apresentar previsões ou soluções para) situações
reais ou realizáveis. Por isso, na sala de aula, a abordagem deverá
privilegiar teorias de aplicabilidade imediata e a verificação
das asserções será feita por meio de sua adequação
e abrangência ao descrever fenômenos e predizê-los.
Segundo Monteiro, para uma boa parte dos educadores matemáticos
que adotam a Modelagem como proposta de ensino, a realidade concreta “é
conceituada como sendo todos os fatos ou dados tomados em si mesmos, além
de toda a percepção que os indivíduos inseridos nesta
realidade têm destes fatos”(p.117). Podemos tomar essa concepção
dos “fatos ou dados tomados em si mesmos” como uma aproximação
do que Frege(1892) chamou de referente. Propostas mais estritas de modelagem
matemática restringirão as “percepções dos
indivíduos” àquelas que poderiam ter, de forma socialmente
reconhecida, uma contribuição relevante para a compreensão
do dado e, futuramente, na elaboração do modelo, ou seja,
associariam-nas à idéia freguiana de sentido. Há autores,
entretanto, que admitem o caráter subjetivo das “percepções”
(o que nos levaria a identificá-las com a representação
de Frege), abrindo assim um campo para a inclusão de um outro elemento,
até então excluído: o sujeito.
O sentido e a ação do sujeito: Poderíamos aqui
ensaiar uma aproximação com as abordagens da linha construtivista
no ensino da Matemática tomando-as como um esforço de inclusão
do sujeito, na produção dos sentidos do fazer e da aprendizagem
da Matemática. Não é muito fácil caracterizar
o que sejam abordagens construtivistas para o ensino da Matemática
pois o “construtivismo” é sempre arrolado “em termos excessivamente
genéricos e simplistas, o que permite apelidar quase todo mundo
de ‘construtivista’”(David,1995,p.62). Por isso, em nossa interpretação,
queremos enfatizar sua preocupação em oportunizar um acesso
ao aprendizado numa ação não apenas ordenada por regras,
mas constituída por elas, num percurso que vai “do uso à
reflexão e da reflexão à busca da regularidade” (Parra
& Saiz, 1996, p.116). É, pois, dessa regularidade (e da ação
de identificá-la) – que é menos da natureza do objeto do
que da interpretação que o sujeito, ao agir sobre ele, lhe
confere – que emergem os sentidos da Matemática e do seu aprendizado.
Embora a literatura que discute e divulga propostas construtivistas
para o ensino da Matemática dificilmente se refira a experiências
de ensino-aprendizagem de alunos adultos da Escola Fundamental, princípios
caros ao Construtivismo permeiam, no mínimo, o discurso da EJA e,
em particular, do ensino de Matemática para Jovens e Adultos. De
fato, a consideração do aprendiz como um “sujeito ativo”,
capaz não só de identificar como de estabelecer relações
entre objetos e fenômenos e a concepção de aprendizagem
como a conquista de uma certa “autonomia” na construção e
na utilização do conhecimento são pontos não
raro arrolados – embora nem sempre operacionalizados – como pressupostos
de muitas iniciativas da EJA, na medida em que se coadunam ao pensamento
de autores-referência nesse campo, em particular Paulo Freire, ainda
que não necessariamente abarquem outras dimensões fundamentais
de sua obra como a inserção cultural e a politização
do ato de aprender.
O sentido e a intenção do sujeito: No entanto,
não é raro encontrarmos ainda entre os educadores matemáticos,
mesmo entre os que trabalham na EJA, aqueles para quem a “independência
do mundo empírico” e a “obediência exclusiva a suas leis próprias”
são vistas como “características” da Matemática que
supostamente garantiriam sua pretensa “pureza”. Tanto menor será,
nesse caso, o espaço aberto para a intervenção de
um sujeito consciente de suas intenções e que quisesse e
fosse capaz de expressá-las no seu fazer matemático, já
que isso poderia “contaminar” com as peculiaridades de sua personalidade
e intencionalidade a produção matemática.
Fica assim difícil admitir que na Matemática se possa
ter um sentido não natural, instituído por uma intenção
tal que se dá a conhecer por si mesma. Isso nos levaria a estabelecer
uma “pragmática” da Matemática que colocasse em pauta a relação
do aprendiz, do usuário ou do produtor de Matemática com
a própria Matemática. É nessa relação
que se constituiria o sentido do fazer matemático, colocando para
dentro das preocupações sobre a significação
a situação em que esse fazer se configura e trazendo à
cena “um sujeito individual que fala em situações particulares”(Guimarães,
1995, p.33).
Muitos estudos que se vêm desenvolvendo considerando a influência
das intenções (e das características) do sujeito ou
da comunidade na expressão e mesmo nos resultados da produção
matemática procuram compreender a lógica própria dos
procedimentos matemáticos, adotados por um indivíduo ou uma
comunidade, enquanto manifestação de suas preocupações,
que se revelam nas ênfases e nas omissões, no estabelecimento
de critérios, procedimentos e notações, na admissão
ou seleção dos conceitos básicos ou no desenho da
malha de suas derivações.
A proliferação de investigações sobre a
produção dos alunos; a flexibilização das cobranças
em relação a uma forma de expressão padronizada dos
procedimentos matemáticos na realização de atividades
escolares pelos alunos; o incentivo à apresentação
de registros mais personalizados das estratégias por eles adotadas;
enfim, a maior relevância atribuída ao processo do que ao
produto nessas atividades: são marcas de que há, na
Educação Matemática, no mínimo, um clima
de maior boa vontade na consideração da intenção
do sujeito no fazer matemático.
Iniciativas no campo da EJA, entretanto, precisam reconhecer o aluno
não apenas como sujeito psicológico, mas como sujeito cultural,
já que a condição de membros de determinados grupos
culturais é, ao lado das condições de não-crianças
e de excluídos da escola, aspecto definidor do lugar social
que caracteriza o público da EJA (Oliveira,1999,p.60). Não
é, pois, por acaso que muitas propostas para o ensino de Matemática
para Jovens e Adultos têm procurado pautar-se em princípios
e procedimentos da abordagem etnomatemática.
Com efeito, na perspectiva adotada por Knijnik(1996), essa abordagem
pode ser vista como uma proposta para o ensino da Matemática que
procura resgatar a intencionalidade do sujeito manifesta em seu fazer matemático,
ao se preocupar com que a motivação para o aprendizado seja
gerada por uma situação problema por ele selecionada, com
a valorização e o encorajamento às manifestações
das idéias e opiniões de todos e com o questionamento da
visão um tanto “maniqueísta” do certo/errado na Matemática
(escolar).
Outros trabalhos na Etnomatemática, desenvolvidos para estudar
os “processos de geração, organização e transmissão
de conhecimento (matemático) em diversos sistemas culturais e as
forças interativas que agem entre os três processos”(D’Ambrosio,1990,p.7),
focalizarão e/ou tomarão como hipótese a relação
do sujeito ou da comunidade com a Matemática, que fazem ou usam,
como definidora de sua forma, bem como de seu objeto. Esses estudos investigam
tais processos em “grupos culturais identificáveis como, por exemplo,
sociedades nacionais-tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças
de uma certa faixa etária, etc”, e incluem “memória cultural,
códigos, símbolos, mitos e até maneiras específicas
de raciocinar e inferir” (D’Ambrósio,1993,p.9). Colocando no centro
da discussão aspectos culturais, as pesquisas e propostas pedagógicas
nessa linha relativizam as pretensas universalidade e neutralidade da Matemática,
e exibem sua intencionalidade e susceptibilidade às influências
das circunstâncias e das características dos sujeitos que
a produzem ou dela fazem uso. Nessa perspectiva, mesmo a Matemática
chamada acadêmica é vista como “justamente uma entre outras
matemáticas. A matemática produzida na academia é
também ‘etno’ porque é também produzida em um contexto
– a academia – com seus próprios valores, rituais e códigos
especiais que também possuem as outras (etno)matemáticas”
(Borba,1992,p.135)
Ao se propor uma abordagem etnomatemática para o ensino da Matemática
na EJA, é preciso, porém, levar em conta que os alunos esperam
apropriar-se dos conceitos ou procedimentos desta Matemática Acadêmica,
tradicionalmente tomados como objetivos dos processos de ensino escolares,
por sua utilidade e/ou valorização social. O processo pedagógico
deve, pois, ser “orientado em um duplo sentido”: por um lado, há
indubitavelmente “o propósito de ensinar a matemática
acadêmica, socialmente legitimada, cujo domínio os próprios
grupos subordinados colocam como condição para que possam
participar da vida social, cultural e econômica de modo menos desvantajoso”.
Por outro lado, a Matemática popular não será considerada
“meramente como folclore, algo que merece ser resgatado para que ‘o povo
se sinta valorizado’”, embora esta operação possa produzir
tal efeito. As práticas matemáticas populares são
interpretadas e decodificadas, tendo em vista a apreensão de sua
coerência interna e de sua estreita conexão com o mundo prático,
o que as habilita a continuarem sendo utilizadas em situações
que o aluno adulto saberá julgar adequadas. (cf. Knijnik,1996, p.62)
Haveria, porém, ainda, um ponto crucial (como bem o destaca
Knijnik) dos processos pedagógicos balizados pela Etnomatemática:
os saberes acadêmicos e populares não devem ser tratados de
modo dicotômico. Suas relações devem ser permanentemente
examinadas, tendo como parâmetro de análise as relações
de poder envolvidas no uso de cada um desses saberes. Essa questão
nos remete à inclusão na abordagem da Matemática escolar
de mais um dos elementos dela tradicionalmente excluídos: a história.
O sentido e a história: Quando admitimos que a significação
– pensada aqui nos contextos de ensino-aprendizagem da Matemática,
em particular, na EJA– é histórica, não nos referimos
ao sentido temporal, historiográfico. Queremos, isto sim, reconhecer
a significação como determinada pelas condições
sociais de sua existência: “Sua materialidade é esta historicidade”
(Guimarães, 1995,p.66). Essa concepção de significação
nos leva a mobilizar conceitos, como discurso, enunciação,
sujeito e posição do sujeito, na construção
da noção de sentido, “tratado como discursivo e definido
a partir do acontecimento enunciativo”(idem), na medida em que o ensino
e a aprendizagem da Matemática, escolar, num Projeto de EJA, se
realizam num contexto de interação verbal, onde língua
e ideologia em contato produzem efeitos de sentido entre locutores (Orlandi,1992,p.20).
9. Conclusão:
Por isso, numa abordagem que pretenda a inclusão da história
na construção de sentidos do ensinar e aprender Matemática
e da Matemática que é aprendida, será preciso considerar
seu aspecto interacional (do ensino-aprendizagem e da Matemática)
e também seu aspecto interdiscursivo. O interdiscurso é a
relação de um discurso com outros discursos. Esta relação
não se dá a partir de discursos empiricamente particularizados,
mas são as próprias relações entre discursos
que dão a particularidade que constitui cada discurso. Nesses discursos
explicitam-se modos de se relacionarem conhecimento, ambiente, sujeitos
e lugar histórico que se materializam nas escolhas e omissões,
nas formas de expressão e de supressão, na identificação,
atendimento, preocupação ou arquivamento das necessidades
e na mobilização e alargamento das possibilidades que serão
objeto e justificativa da interação constituída nos,
e constituinte dos, processos de ensino-aprendizagem da Matemática,
particularmente se esse processo se dá no contexto escolar, e de
Educação de Jovens e Adultos.
10. Bibliografia :
BORBA, Marcelo C. (1992). Teaching Mathematics: Ethnomathematics, the
voice of sociocultural groups. The Clearing House, v.65, n.3, 1992. p.134-135.
BRÉAL, M. (1897) Ensaio de Semântica. Campinas,S.P.: Pontes,
1992.
D’AMBRÓSIO, Ubiratan (1990). Etnomatemática. São
Paulo: Ática,1990.
D’AMBRÓSIO, Ubiratan (1993). Etnomatemática: um programa.
A Educação Matemática Em Revista, Blumenau, v.1, n.1,
1993. p.5-11.
DAVID, Maria Manuela M.S.(1995) “As possibilidades de inovação
no ensino-aprendizagem da matemática elementar”. Presença
Pedagógica, Belo Horizonte, n.1, vol.1, jan/fev,1995.p.57-66.
FREGE, G.(1892) Sobre o sentido e a referência. In: Lógica
e Filosofia da Linguagem.São Paulo: Cultrix:Edusp, 1978.
FREIRE, Paulo (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra.
GUIMARÃES, Eduardo.(1995) Os limites do sentido: um estudo histórico
e enunciativo da linguagem. Campinas,S.P.: Pontes, 1995.
KNIJNIK, Gelsa.(1996) Exclusão e resistência: Educação
Matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre, RS: Artes Médicas,1996.
MACHADO, Nílson José.(1987) Matemática e realidade.
São Paulo: Cortez: Autores Associados,1987.
MONTEIRO, Alexandrina (1991). O ensino de matemática para adultos
através do método da modelagem matemática. Rio Claro:
IGCE-UNESP, Dissertação de Mestrado, 1991.
OLIVEIRA, Marta Kohl de. (1999) Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento
e aprendizagem. Revista Brasileira de Educação. n.12. São
Paulo: ANPED – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação
em Educação. p.59-73.
ORLANDI, Eny P.(1992) As formas do silêncio. Campinas, S.P.:
Editora da Unicamp, 1992.
PARRA, Cecília e SAIZ, Irma (orgs) (1996). Didática da
Matemática: reflexões psicopedagógicas. Trad. Juan
Acuña Llorens. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
SAUSSURE, F. (1916) Curso de Lingüística geral. São
Paulo: Cultrix, 1970.