A Educação Matemática de Jovens e Adultos e suas conexões com produtos da Mídia:
Um Estudo Etnomatemático

Fernanda Wanderer


Resumo: O presente trabalho busca analisar um processo pedagógico que foi realizado durante o ano de 1999, em uma turma do Ensino Médio noturno de um Curso de Suplência, onde atuei como professora de Matemática. As atividades realizadas com os alunos enfocaram a análise e discussão de produtos da mídia, pertencentes à cultura daquele grupo de alunos. A análise do material empírico coletado apoia-se nas teorizações da Educação de Jovens e Adultos e da Etnomatemática.
 

Palavras-chave: Etnomatemática – Educação de Jovens e Adultos – Mídia.
 

    A instituição escolar tem sido o foco de uma ampla gama de pesquisas e debates em educação. Esse fato se deve a duas razões: por um lado, a escola é a responsável institucional pela educação das futuras gerações, o que é considerado essencial para o desenvolvimento de um país. Ao mesmo tempo, sabe-se que a cada ano que passa é maior o número de alunos que são reprovados ou se evadem da escola, mostrando que ela não está conseguindo cumprir seu papel. Sabe-se que este fato está relacionado a muitos fatores, entre os quais encontra-se a questão cultural. Com efeito, para o currículo escolar há apenas uma cultura a ser transmitida, a da classe dominante. Como escreve Tomaz Tadeu da Silva (1999,p.35)

    O currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural dominante. As crianças das classes dominantes podem facilmente compreender esse código, pois durante toda sua vida elas estiveram imersas, o tempo todo, nesse código. (...) Em contraste, para as crianças e jovens das classes dominadas, esse código é simplesmente indecifrável. Eles não sabem do que se trata. (...) O resultado é que as crianças e jovens das classes dominadas só podem encarar o fracasso, ficando pelo caminho.

    A Matemática também contribui para a exclusão de muitas pessoas da escola. Segundo Ubiratan D’Ambrósio (1986), desde Platão a Matemática é vista como um filtro capaz de selecionar as melhores mentes. Essa idéia, infelizmente, continua presente no currículo desta disciplina, cujo objetivo, segundo Lynda Dugas (1991,p.21), parece ser a criação de peritos que podem calcular mas aos quais falta competência social para compreenderem seus cálculos quando contextualizados. Seu ensino prioriza cálculos, técnicas e fórmulas que não possuem relação com o cotidiano e com a cultura da maior parte dos alunos.
    Esta crise pela qual a educação – e a Educação Matemática em particular – está passando traz muitas conseqüências, entre as quais um número cada vez maior de jovens e adultos que não completaram seus estudos em tempo hábil. Estas pessoas muitas vezes voltam a estudar pois são movidas pelo desejo e/ou necessidade de resgatarem essa lacuna de suas vidas.
    Atuar como professora de pessoas que voltam a estudar é um dos grandes desafios que me proponho. E é este desafio, aliado à vontade de mostrar que a Matemática não é uma ciência abstrata, neutra e descontextualizada, que fizeram com que nascesse a presente pesquisa. Ora em fase de finalização, sob a orientação da professora Dra. Gelsa Knijnik, esta pesquisa tem por objetivo analisar quais as  conexões possíveis de serem construídas entre a Educação Matemática de Jovens e Adultos e produtos da mídia utilizados na perspectiva da Etnomatemática.
    Este problema de pesquisa foi sendo construído ao longo de meus estudos de pós-graduação e na minha atuação como professora daquele grupo. Durante as aulas, em conversas com os alunos pude perceber que a leitura de jornais e revistas fazia parte de suas vidas. Para eles, estes eram suas fontes de informação, pois como trabalhavam durante o dia e estudavam à noite, estes materiais podiam ser lidos em seus locais de trabalho, tornando-os familiares para aquele grupo de alunos. Muitos deles faziam comentários durante as aulas sobre algumas reportagens que leram ou ouviram durante o dia, o que nos proporcionava grandes discussões a respeito das mesmas em nossas aulas.
    Quando questionava-os sobre o que eles costumavam ler nestes materiais, suas respostas eram diversas: alguns diziam ler “de tudo um pouco”, outros destacavam as questões políticas e econômicas, outros o horóscopo, assuntos policiais, sociais e notícias sobre artistas e novelas. Para alguns deles, as figuras e fotos eram o que lhes chamavam a atenção. Ouvi de alguns também, que liam apenas as manchetes, tabelas e gráficos presentes nas matérias dos jornais e revistas. Assim, me questionava de que forma aquelas reportagens, tabelas e gráficos os afetavam, ou até mesmo, como eles interpretavam as reportagens que liam. Com estes questionamentos, percebi que um trabalho pedagógico com o uso de produtos da mídia, para aquele grupo de alunos, se tornaria importante.
    Para a coleta de dados, fiz uso de técnicas etnográficas, como diário de campo, entrevistas, observações diretas, mas sempre tinha em mente que, como sou educadora, esta não poderia ser considerada uma etnografia no sentido antropológico.
    A primeira reportagem de jornal trabalhada no grupo tinha como título “Semana de expectativa sobre o mínimo” (Zero Hora,25/04/99). Para trabalhar com esta reportagem, a turma foi dividida em 6 grupos e para grupo foi entregue uma parte da mesma que fora dividida em três. Cada grupo leu e discutiu sua parte da reportagem e depois apresentou-a para o grande grupo. A partir desses comentários e de outros mais, surgiu o interesse no grupo em sabermos as razões que levavam a esta defasagem do salário mínimo, se comparado com seu valor na época de sua criação.
    A segunda reportagem discutida tinha como título “Mínimo passa para R$ 136” (Zero Hora,02/05/99) que foi trabalhada com os alunos após o reajuste oficial do salário mínimo. A turma foi novamente dividida em grupos, porém desta vez os grupos receberam a reportagem completa, que deveria ser lida e discutida, e duas folhas que deveriam ser completadas por cada grupo. Na primeira folha distribuída, cada grupo  escreveria o que foi discutido do texto. Na segunda folha, o grupo escreveria sobre aquilo que foi discutido  mas que não estava explícito na reportagem ( O objetivo desta folha era que os alunos tirassem conclusões a respeito do que mostrava a reportagem, como, por exemplo, o índice de desemprego no Brasil que chegara a 8,15% em setembro de 1998. Esta era uma informação que aparecia no texto, mas os alunos poderiam querer interpretar este dado, ou seja, explicar o que significa 8,15%, e este seria um comentário que não estava no texto).
    As próximas atividades realizadas enfocaram a questão do governo FHC, que era muito discutida por nós em sala de aula.   Fizemos um paralelo entre sua popularidade em outubro de 1998, quando foi reeleito, e na ocasião, em 1999. Este paralelo foi estabelecido a partir das análises e discussões de duas reportagens, uma da revista Veja (07/10/98) e outra da Folha de São Paulo (19/09/99). Meu objetivo, ao trabalhar com essas questões, era abrir espaço para que os alunos pudessem discutir, expor suas idéias, refletir coletivamente, pois, trabalhando durante o dia e estudando  à noite, momentos de reflexão e discussão coletivas sobre o cotidiano podiam não ocorrer.
    A reportagem da Folha de São Paulo mostrava a queda da popularidade de FHC, atribuindo ao desemprego a principal causa desta. Os alunos se dividiram em grupos para a análise da reportagem, e cada grupo recebeu uma parte desta. Os grupos leram, analisaram e discutiram as tabelas da reportagem e construíram gráficos para expressar as idéias das tabelas. O trabalho com gráficos e tabelas presentes em notícias veiculadas pela mídia, que desenvolvi com os alunos, tem relação também com uma das pesquisas de Luciano Meira (1991), na qual o educador explora a competência de sujeitos adultos e adolescentes no uso de gráficos como um meio de construção de conhecimentos matemáticos e de interpretação de fatos do cotidiano.
     Analisamos também uma reportagem da revista Veja, Maior e Melhor (07/10/98). Apresentando gráficos sobre a expectativa de vida da população, analfabetismo, renda per capita, taxa de fertilidade, mortalidade infantil, além de tabelas mostrando o aumento da frota de automóveis, linhas telefônicas e aparelhos de TV no Brasil, neste período, os alunos puderam analisar o que mudou no país e na qualidade de vida da população durante a República.
    Das discussões da vida atual, do cotidiano, passamos a analisar um pouco o histórico do salário mínimo, pois nossa inquietação continuava: por que o salário mínimo está tão defasado? Para isto, buscando um auxílio em elementos da História do Brasil, discutimos aspectos importantes a respeito da classe operária, pois há fatos de hoje que só compreendemos fazendo uma volta ao passado. Assim, em uma aula discutimos um texto elaborado por mim sobre a instauração de algumas leis sociais no Brasil.
    Após a discussão deste material, os alunos construíram, em grupos, uma linha do tempo para nela localizarem datas importantes referentes à História do Brasil. Esta atividade foi muito interessante também do ponto de vista matemático, pois muitas questões matemáticas entraram nesta construção, provocando discussões entre os alunos quanto ao uso da régua, divisão correta da linha do tempo e o ano inicial para esta linha.
    Discutimos também uma tabela que comparava a evolução do PIB ( Produto Interno Bruto) com a evolução do salário mínimo. Com visões diferentes sobre a situação econômica do Brasil, surgiram muitos comentários, entre os quais um diálogo entre a aluna Rosa e o aluno Otávio:

    -  É professora, há uns anos atrás, tinha inflação mais a gente comprava mais!
    -  Eu não acho! Pra mim tá melhor agora!
    -  Pode ser pra ti, Otávio, que é empregador, porque pra nós não! Se tu fizeres um rancho esse mês, no mês seguinte tu não compra os mesmos produtos!

    Pude verificar que o trabalho com as reportagens teve repercussões na vida e até na leitura dos alunos. Eram trabalhadores, muitos deles até vivendo de um salário mínimo ou um pouco  mais, portanto o interesse pelo assunto não era apenas por ser “da ordem do dia”, mas por fazer parte de suas vidas.
    Ao problematizar, com o grupo de alunos com o qual desenvolvi a pesquisa, suas vivências, sua cultura, sua maneira de praticar Matemática, não utilizei estes saberes como uma ponte para o ensino da Matemática Acadêmica, nem tão pouco como uma forma de glorificação dos mesmos. Ao desenvolver tais atividades, utilizei a Abordagem Etnomatemática, expressão utilizada por Knijnik (1996,p.88), para designar

    A investigação das tradições, práticas e concepções matemáticas de um grupo social subordinado (quanto ao volume e composição de capital social, cultural e econômico) e o trabalho pedagógico que se desenvolve com o objetivo de que o grupo: interprete e decodifique seu conhecimento; adquira o conhecimento produzido pela Matemática acadêmica e estabeleça comparações entre o seu conhecimento e o conhecimento acadêmico, analisando as relações de poder envolvidas no uso destes dois saberes.

    No final do ano, a turma achou interessante apresentar as atividades que discutimos e analisamos para outras turmas do Curso de Suplência. Para isso, alguns alunos se propuseram a apresentar e comentar para as demais turmas do curso as atividades que realizamos em sala de aula.
    Este momento foi importante, pois foi uma oportunidade para que os alunos pudessem se expressar e falar para outros colegas, fato que nunca havia ocorrido antes para eles. Além disso, penso que, para os alunos que não viveram esta experiência, foi um momento em que eles puderam perceber que as aulas de Matemática não se limitam a cálculos e resoluções de problemas, mas servem também para aprofundar o conhecimento de uma problemática de seu interesse.
 

Bibliografia

D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática. Da Realidade à ação. Reflexões sobre educação (e) matemática. São Paulo: Summus, 1986.
DUGAS, Lynda S. A Problemática das Pesquisas Político – Eleitorais: O Currículo de Matemática para a Compreensão Social. São Paulo: Cad. Pesq., n. 76, fevereiro\1991.
KNIJNIK, Gelsa. Exclusão e Resistência, Educação Matemática e Legitimidade Cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
MEIRA, Luciano. Gráficos de Quantidades na Vida Diária e na Mídia Impressa. Texto datilografado. Universidade Federal de Pernambuco.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade. Uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.