Traços da Cultura Árabe nas Obras de Malba Tahan

 
Cristiane Coppe de Oliveira

 Resumo

        Nesse trabalho abordaremos aspectos culturais mediante a tradição (turãth) do povo árabe, presentes nas obras de Malba Tahan.
        Malba Tahan divulgou e enalteceu a cultura e os valores árabes em seus contos, em sua postura de professor e em seu próprio pseudônimo.
        A cultura, a matemática e a importância do povo árabe ganha vida nas obras de Malba Tahan e revela seus aspectos desmistificadores.

Palavras-Chaves Malba Tahan, Cultura Árabe e Matemática.

Introdução

        “O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura.”
 Roque Laraia
        Nessas concepções de cultura e de visão de mundo, vejo que as idéias de herança cultural, de “matemática como uma etnomatemática”, de confiança cultural e de legitimidade, vem de encontro com a tradição e a realidade do povo árabe.
        Através de um foco filosófico, apresentado por Mohammed Abed al-Jabri, faremos algumas considerações que abordarão aspectos e valores da cultura árabe frisadas na maioria da obras de Malba Tahan.

Objetivos

        O intuito desse trabalho é encaminhar uma série de reflexões acerca dos valores e das tradições da cultura árabe abordadas por Malba Tahan e levantar algumas de suas idéias sobre matemática.

Desenvolvimento do Tema

        Mohammed Abed al-Jabri, elabora uma concepção da relação tradição-modernidade, a partir do que ele entende por tradição (turãth). Para ele “ o turãth não é apenas uma “coleção de rastros do passado”, mas antes um todo cultural que compreende “uma fé’, uma lei, uma língua, uma literatura, uma razão, uma mentalidade, um apego ao passado, uma projeção para o futuro etc.” O turãth não é a herança de um pai morto para o filho, mas sim um pai presente, vivo no filho. Desse modo, al-Jabri (1999, p.13), rejeita o “fundamentalismo (salafiyya), que se propõe reconstituir o presente a partir do modelo do passado e o “liberalismo” árabe, que reivindica o presente europeu, relegando o passado “sem dele ter-se realmente libertado.”
        Seguindo essa trilha, vemos que a tradição para o povo árabe retrata sua própria vida, sua existência. O “todo cultural” abordado por al-Jabri mostra-se como a essência da sobrevivência, da subsistência e da transcendência desse povo. Nesse caminho, podemos ter nossa própria leitura da tradição e da cultura árabe. Uma leitura que dignifica, legitima, afirma e propaga as contribuições do povo árabe sobre sua própria cultura e sobre matemática. Trazer o mundo árabe para o contexto da etnomatemática e da Educação Matemática já é algo que inicia uma nova leitura e eleva o “todo cultural” desse povo.
Malba Tahan enalteceu e divulgou a cultura árabe através de suas obras, ora nos contos árabes de tradição oral, ora nas viagens de Beremiz Samir e nas suas concepções de matemática no livro O Homem que Calculava, ora no nome que escolheu para se consagrar como escritor, ora como professor Mello e Souza.
        No livro Os Melhores Contos há uma parte final escrita por Paulo Mansur , dedicada a figura de Malba Tahan que afirma que “nos seus livros, verdadeiros relicários, repletos de jóias lindíssimas, ele tem mostrado sempre um amor imenso pela graça oriental, consagrando em páginas de beleza imortal todas as virtudes dos povos de raça árabe, ressaltando a sua lealdade a sua bondade, sua gratidão e o seu heroísmo.”
        Malba Tahan aborda, em suas obras, a religião e a moral cristã, as formas narrativas dos contos, as leis, as artes, a matemática, a política, os significados e valores próprios da cultura árabe. Vejamos alguns exemplos que aparecem nas seguintes obras de Malba Tahan.
        Na obra Lendas do Céu e da Terra, é marcante a abordagem religiosa (islâmica) e de moral cristã feita por Malba Tahan. Sobre religião Tahan (1964, p.106) escreveu que “todos os homens são religiosos, e sempre o foram em todos os tempos. Este é um dos fenômenos mais extraordinários da História. A religião pertence aos grandes patrimônios universais da humanidade, como a inteligência e a vontade, a linguagem, os costumes, etc.”
        Tahan (1964, p.7-8), afirma ao leitor que “grande sempre é a responsabilidade de quem escreve! Mas se é religioso o livro que atira às multidões, essa responsabilidade assume proporções quase infinitas. Semear idéias religiosas é dirigir consciências. E dirigir consciências é orientar o homem nos problemas do seu destino, cuja incógnita se resolve na tremenda alternativa de duas eternidades, uma infinitamente feliz, outra infinitamente desventurada.” Sobre a moral Cristã, Tahan destaca algumas virtudes e escreve sobre pureza, fé e obras, amizade, obediência e humildade.
        Na cultura árabe o camelo é de grande importância para a vida nas regiões desertas. Na obra Salim, O Mágico, Malba Tahan se refere várias vezes ao camelo e acaba escrevendo um capítulo sobre o camelo na vida e na lenda. Tahan (1999, p.305), afirma que “sem o precioso e inestimável auxílio do camelo, a vida na Península Arábica não seria possível; Meca, o santuário da Fé, inacessível para os peregrinos, ficaria esquecida, para além dos desertos, lá no fundo do Hedjaz; o Sudão, com suas riquezas, permaneceria, durante oito séculos, totalmente desconhecido, e todas as maravilhas do Saara, e das terras da Mongólia, ignoradas no rolar do tempo. Os árabes reconhecem tudo isso e, por tal motivo, honram e dignificam o camelo.”
        Na obra O Homem que Calculava, o famoso problemas dos 35 camelos além de apresentar cálculos aritméticos e surpreendentes aplicações matemáticas, apresenta o camelo como o “objeto” valioso para a partilha de uma herança entre três irmãos.
        Na obra Mil Histórias Sem Fim, Humberto Campos (1963, p.11) afirma que, “as histórias em séries, isto é, os contos que terminam com a “deixa” para outro e que formam, assim, uma interessante cadeia de narrativas variadas e unidas, constituem o mais rico e duradouro patrimônio das literaturas orientais.” Segundo Meidane (1997, p.68), “apesar de ter, em mais de uma oportunidade, declarado seu franco entusiasmo pelas histórias, Malba Tahan já era Malba Tahan quando o fez.     Mas é o princípio de seu trabalho que poderá iluminar os caminhos pelos quais a forma narrativa opera em favor do ensino e, em particular, do ensino da matemática.”
        Malba Tahan utilizou as narrativas para conquistar os leitores e prender a atenção no contexto cultural árabe de cada história e isso é inevitável na leitura da obra Mil Histórias Sem Fim.
        A postura, a beleza e o fascínio das mulheres muçulmanas também figuram em algumas histórias contadas por Malba Tahan e nos romances escritos por ele. A obra Minha Vida Querida descreve contos árabes tendo sempre como figura central, a mulher. Ora noiva, ora mãe, ora dançarina, ora filha, ora prometida, mas sempre exaltada com sua beleza, poesia e amor.
        Na obra O Homem que Calculava Malba Tahan mescla religião, ciências, matemática, tradições e cultura árabe. Do meu ponto de vista, as viagens de Beremiz Samir, os ensinamentos dessa personagem, os cálculos, a moral, a divulgação da cultura árabe e outros aspectos presentes nessa obra, são mensagens que o próprio Tahan queria deixar para todos os leitores de sua época e das futuras gerações.
        Façamos, aqui, uma analogia entre a pessoa de Al-Kwarizmi, das páginas da História da Matemática e da personagem Beremiz Samir, das páginas de O  Homem que Calculava.
        Segundo D’Ambrosio (1994, p. 45), “Al-Kwarizmi associou-se à Casa da Sabedoria , a convite de Harun al-Rashid, e parece ter sido protegido de seu filho al-Mamum. Muitos outros cientistas foram contemporâneos de Al-Kwarizmi na instituição e parece que seu grande prestígio era devido à sua capacidade como calculista.”
Tahan (1951) escreveu aos leitores da Revista Al-Kwarizmi de recreações matemática que “Al-Kwarizmi continua imutável em seus nobres e elevados objetivos de: a) Cooperar pelo progresso da Matemática; b) Servir aos professores e estudiosos dessa nobilitante Ciência; c) Despertar, entre os estudantes, interesse pelas belezas e aplicações da Matemática; d) Tornar conhecidos, em nosso país, os trabalhos, as descobertas, os métodos e as pesquisas dos cultores da Matemática; e) Exaltar e prestigiar todos os que têm elevado e honrado a cultura matemática no Brasil.”
        Temos aqui uma característica que é marcante entre as duas figuras. Al-Kwarizmi era conhecido devido a sua capacidade como calculista, e pelas muitas viagens de Beremiz Samir, o que mais impressionava as pessoas que o conheciam era a sua habilidade nos cálculos. Desse modo, Malba Tahan conseguiu destacar em Beremiz Samir características que ele mesmo considerava em Al-Kwarizmi, como “cooperar pelo progresso da Matemática e despertar entre os estudantes interesse pelas belezas e aplicações da Matemática.”
        Na verdade Beremiz Samir, o homem que calculava, foi um dos instrumentos que Malba Tahan apontou para legitimar as contribuições matemáticas e dar a devida importância às tradições, a cultura, a matemática  e às “filosofias” do povo árabe.
Muitos outros aspectos culturais aparecem nas maravilhosas histórias sabiamente narradas e contadas por Malba Tahan e isso se comprova quando os leitores de suas obras deixam-se envolver em seu mundo de fantasias, lendas, poesia, matemática, arte e religião, englobados em apenas um conto.

Conclusão

        Esse trabalho é uma tentativa de mergulhar na fantasia árabe do Professor Mello e Souza e concluir que ele divulgava a cultura árabe em todos os âmbitos que envolveram sua carreira.
        Creio que Malba Tahan preservava os valores culturais, atualmente, propostos pela Etnomatemática, como a valorização da matemática não-ocidental, a leitura matemática de mundo, sob um foco de uma comunidade específica, a interação entre ciência, religião e cultura e tantos outros.
Al-Jabri (1999, p.25) afirma que,

 “Para que a consciência árabe, tal como se apresenta efetivamente hoje, possa ser reconhecida no plano mundial e para que a sua voz possa ser ouvida, é preciso que sejam enfim traduzidas as principais obras do pensamento árabe contemporâneo. Só podemos desejar que as instituições culturais em condições de contribuir para esta tarefa assumam a sua responsabilidade no caso.”
        Olhando a divulgação da cultura árabe, sob o foco filosófico apresentado por al-Jabri,  vemos que Malba Tahan contribuiu para o pensamento atual e enalteceu o povo árabe apresentando seu “todo cultural” em suas obras, em sua postura de professor (valorizando as contribuições matemáticas dos árabes) e na escolha de seu pseudônimo para se consagrar como um escritor árabe. A consciência árabe era algo que Malba Tahan registrou em sua mente e em sua carreira. Marcou leitores, educadores e o público infanto-juvenil.
        Quero encerrar esse trabalho citando uma das muitas faces de Beremiz Samir na obra O Homem que Calculava.
“Formulava, às vezes, sobre os acontecimentos mais banais da vida, comparações inesperadas que denotavam grande agudeza de espírito e raro talento matemático. Sabia, também, contar histórias e narrar episódios que muito ilustravam suas palestras, já de si atraentes e curiosas.
Às vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a meditar sobre cálculos prodigiosos.
(...) Deixava-o sossegado, a fim de que ele pudesse fazer, com os recursos de sua memória privilegiada, descobertas retumbantes nos misteriosos arcanos da Matemática, a ciência que os árabes tanto cultivaram e engrandeceram.”
Bibliografia

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