EMIL ODEBRECHT:  um "olhar matemático" sobre as descrições em seu diário na expedição para o oeste catarinense em 1863
 

MARIA SALETT BIEMBENGUT, Dra. - Departamento de Matemática - FURB
MARICÉLIA SOARES(*) - Acadêmica do Curso de Matemática - FURB
 

1. PROPOSTA DO TEMA ESCOLHIDO
Efetuar uma “leitura” sob o ponto de vista matemático, do diário de Emil Odebrecht sobre a expedição para o oeste catarinense no ano de 1863.

2. RESUMO
Emil Odebrecht contribuiu significativamente para a expansão da colônia alemã do Vale do Itajaí - SC.
Dentre seus feitos destaca-se a primeira expedição para o oeste de Santa Catarina em 1863, procurando o melhor trajeto para construir uma estrada que ligasse ambas regiões, promovendo o desenvolvimento da colônia. Nesta expedição, Emil descreveu em diário dimensões de rios, cachoeiras, seus posicionamentos, etc.
Neste trabalho, procuramos interpretar os dados contidos neste diário através de conceitos matemáticos usuais de nossa época, contextualizando-os historicamente.
 

3. PALAVRAS-CHAVES: Emil Odebrecht, diário de expedição, interpretação matemática
 

4. INTRODUÇÃO
A Matemática sempre ocupou um lugar importante nas mais diversas atividades da humanidade. Muitas idéias ou conceitos matemáticos utilizados por algumas culturas, seja nas aplicações mais rotineiras do dia a dia ou nas que tentam superar seus próprios recursos, serviram de “alavancas” para o desenvolvimento da tecnologia atual e da própria matemática.
Exemplo disso, pode ser encontrado junto aos registros do engenheiro e astrônomo prussiano, Emil Odebrecht (1835-1912) que viveu no Vale do Itajaí, Estado de Santa Catarina, desde 1856 até sua morte. Com sua formação acadêmica aliada aos conhecimentos adquiridos junto aos habitantes da região, desbravou parte do território catarinense, efetuando a medição de lotes coloniais, implantando  linhas telegráficas, locando cursos d´água, delineando e mapeando as bacias do vale e da colônia, dentre outros. E mais, teve o cuidado em deixar registrados de forma minunciosa seus feitos, o que permite ainda hoje ser avaliado por seus precursores ou historiadores.  Por exemplo, nesses documentos, encontramos uma gama de dados, rico em detalhes, que nos permitem fazer algumas inferências sobre o conhecimento acadêmico e empírico de alguns conceitos matemáticos por ele utilizado.

5. OBJETIVOS
Neste trabalho, a partir de uma pesquisa bibliográfica , ainda em estágio preliminar, procuramos:
? apontar alguns conceitos matemáticos que constam em um dos documentos de Emil Odebrecht - diário onde descreve sua primeira expedição para o oeste catarinense;
? efetuar algumas inferências sobre a aplicação desses conceitos.

6. DESENVOLVIMENTO DO TEMA

6.1. Pontos de registro sobre a primeira ação de Emil Odebrecht no Vale do Itajaí
O ano de 1850 marcou-se por um movimento imigratório de europeus para os países das Américas, em particular, o Brasil,  motivados pela possibilidade de colonizar terras ou de ter um melhor lugar para se viver. Dentre os grupos imigratórios estão os advindos da Alemanha para o Vale do Itajaí, Estado de Santa Catarina, em particular, o que teve como fundador da colônia alemã, Hermann Bruno Otto Blumenau,  farmacêutico, químico e doutor em Filosofia.
A colônia às margens do Itajaí-Açú, principal passagem hidrográfica do município, atualmente Blumenau, teve que lidar com alguns problemas, como enchentes devastadoras, ataques de índios bugres e mata virgem. Em razão disso,  o fundador e colonizador Dr. Blumenau procurou atrair para a região, também pessoas especializadas em algumas áreas do conhecimento para auxiliarem na efetivação e realização dos sonhos dos imigrantes. Dentre elas destaca-se Emil Odebrecht, jovem engenheiro e astrônomo que atendeu aos apelos, chegando na colônia em 1856.
Dentre as atividades propostas à Emil Odebrecht uma foi o desbravamento do oeste catarinense. Sua primeira expedição ocorreu em 1863, com o intuito de realizar um estudo sobre a bacia do Itajaí-Açú e encontrar o melhor trajeto para a construção de uma estrada que ligasse ambas regiões, promovendo assim, o progresso da colônia. Juntamente com outros oito homens adentrou a região,  desvelando caminhos, conhecendo a riqueza natural. Não conseguiu atingir o objetivo nessa primeira empreitada devido as intempéries, retornando à colônia, porém, consegue chegar a um ponto estratégico que supõe ser a ligação leste-oeste, uma serra, na direção de Lages. Abaixo, o mapa da região:
 
 
 
 

Emil Odebrecht tinha o cuidado de efetuar um minucioso registro de suas atividades. Essa primeira expedição, por exemplo, consta  em um diário, onde fez anotações do dia 14 de janeiro a 21 de fevereiro sobre o que encontrava na mata e suas principais dificuldades, como: doenças, falta de alimento, ataques de bugres, dentre outros.
Suas anotações detalhistas abordam, implicitamente, aspectos matemáticos, principalmente no que se trata de geometria e trigonometria plana e esférica. Com sua formação de astrônomo e engenheiro, Odebrecht, nesse trabalho mediu rios, altura de cachoeiras, volumes d’água, efetuou localizações geográficas, utilizando-se da posição solar e do meridiano.  Emil Odebrecht contribuiu, significativamente, para a expansão da colônia alemã do Vale do Itajaí, no Estado de Santa Catarina.

6.2. Considerações sobre  os conceitos matemáticos expressos no diário de Emil Odebrecht na  expedição de 1863 pelo Vale do Itajaí-açu.
Em quase toda a descrição de Emil Odebrecht, verificamos a utilização de conceitos matemáticos. Para efetuarmos algumas considerações sobre isso, vamos nos utilizar de três trechos  referentes aos dias 15 de janeiro e 12 de fevereiro, enfocando as  unidades de medidas, a descrição geométrica do Salto do Pilão e as medidas sobre a posição solar e meridiano.

6.2.1. Unidades de  Medidas

Quinta-feira, 12 de fevereiro de 1863
"Onze horas da manhã. Finalmente alcançamos o Salto do Pilão! Pelo menos este magnífico salto, que, aqui se estende num comprimento de 250-300 braças e, com uma queda de no mínimo 80-100 palmos, se projeta ruidosamente, não pode ser outro! Não são despenhadeiros bruscos que dão este aspecto lindo e sublime, mas sim os belos e pitorescos grupamentos dos blocos de pedras que cobrem seu leito e que, nas mais variadas formações e tamanhos, estão sobrepostos uns sobre os outros. [...]  A largura do volume d’água, na média, mal alcança 50 passos.[...] [04]

Um dos conceitos matemáticos que evidencia nesse relato são as unidades de medidas. Por exemplo, no trecho acima, são mencionadas várias unidades de medidas para dimensionar a largura do rio, o comprimentos da queda d’água, a altura dos saltos e morro, como: braça, palmos e passos. Isso evidencia que o conceito de medir é essencial para avaliar grandezas, localização, etc. Tanto que esse conceito é tão antigo quanto a própria humanidade. A necessidade de comparar e de se valer de uma unidade para esse feito levou a derivação de um grande número de sistemas de unidades de medida. [...]“pouco se sabe sobre os processos para a escolha das unidades de medidas, observando-se, porém, que os povos imaginavam quase sempre padrões correspondentes às suas condições de existência, daí a multiplicidade de sistemas de pesos e medidas”[10].
A multiplicidade de sistemas de medidas levaram cientistas franceses a estabelecerem uma unidade de medida internacional – o metro: “definido como a décima milionésima parte da quarta parte do meridiano terrestre”[10], como forma de facilitar a  relação entre a multiplicidade de sistemas de medidas existentes. Por exemplo, abaixo, a relação entre as medidas inglesas e antigas com o sistema métrico decimal.
 Unidades Britânicas Sistema Métrico Decimal
Múltiplos da jarda
 1 milha
1 vara
1 braça 1.609,3 m
5,0292 m
1,8288 m
 1 jarda   0,9144 m
Submúltiplos 1 pé
1 polegada 0,3048 m
0,0254 m
1 légua
1 palmo
1 passo 6.000 a 6.600 m
0,20 m
 0,65 m

Pelo relato, temos que Emil fazia uso em seu trabalho de algumas unidades de medidas antigas como palmo, passo e légua (a légua consta em outra parte do relato) e do sistema imperial inglês, cuja unidade fundamental de comprimento é a jarda imperial e seus múltiplos são a milha, a vara e a braça e os submúltiplos, o pé e a polegada. Mas, por que se utilizava dessas unidades se o sistema métrico decimal, unidade de medida internacional, já era vigente na época?
Em relação ao sistema imperial inglês pode ser que tenha adquirido em sua formação acadêmica, mas, e quanto as unidades de medidas antigas (passo, palmo, légua) seriam adotadas, também, nas escolas prussianas ou  Emil  aprendeu  junto a outros grupos culturais e sociais?
Como estava convivendo com povos de outras culturas, como bugres, açorianos e mesmo imigrantes alemães, possivelmente, incorporou conceitos de medidas praticados por essa comunidade e, ainda, por ser esses mais apropriados às suas necessidades diárias ou nas atividades desse  contexto. Esse conhecimento matemático desenvolvido e praticado por uma comunidade ou grupo cultural é denominado por D’Ambrósio como etnomatemática. D´AMBRÓSIO (1998:06) define  etnomatemática como “a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais”.
Nestes termos, podemos imaginar que Emil Odebrecht  em meio a uma mata nativa, e munido de alguns instrumentos de topografia e medição mais seus conhecimento adquiridos na escola formal e na escola das suas atividades diárias realiza sua empreitada que é a de conhecer, de entender e expressar à comunidade a geografia dessa região.

6.2.2. Descrição geométrica do Salto Pilão

Quinta-feira, 12 de fevereiro de 1863
“O rio conservou hoje, por cerca de 200 braças, seu curso de ontem, para depois voltar-se para o Sul e logo depois para SO, o qual desde então tem se conservado assim. [...] A curva na qual se estende a parte superior do salto do Pilão tem uma largura de cerca de 500 braças, com declinação de 60o do Sul para Oeste. [...] A curva existente acima do salto vem, tanto quanto posso ver daqui, completamente do Sul! [...]  O salto que mencionei é quase perpendicular nesta margem, enquanto que na outra margem a água corre sobre lajes de pedra de grande extensão. O curso do rio, em geral, era do Sul, com insignificantes variações para o Leste ou Oeste. [...].”

Observamos neste trecho que  Emil Odebrecht aborda problemas geométricos aplicados a geografia e a topografia.
O valor da Geometria diflui por todas as partes. Sem o  conhecimento de linhas, ângulos e figuras é difícil explicar  fenômenos naturais. Assim, para entender melhor a descrição da  região onde localiza-se o Salto do Pilão, vamos fazer um esboço, a partir de uma vista aérea, planificada e em perspectiva.
 
 
 
 
 

Observamos, pelo desenho, que o plano da superfície da água que supõe-se prolongado indefinidamente, somente é horizontal no ponto onde está efetuando a análise, e inclina-se na medida em que cresce com a distância. Há uma diferença quando lidamos com matemática pura e quando passamos a aplicá-la. Na aplicação, pelo exemplo acima, na realidade não há planos horizontais: há superfícies horizontais, ou superfícies de nível chamadas geóides.
Dessa forma, supomos que o Engenheiro procurava descrever pontos de um terreno desconhecido, para reconhecimento e posterior, levantamento preciso, utilizando-se de um aparelho chamado teodolito. Sob uma certa ótica, Emil faz uso de uma matemática aplicada à geografia. Ou seja, faz uso dos modelos matemáticos que representam problemas de caracteres estritamente geográficos o que lhe permite efetuar interpretações dos resultados. Modelo matemático de um fenômeno é um conjunto de símbolos e relações matemáticas que traduzem, de alguma forma, o fenômeno em questão.
Esses problemas exige precisão de certas noções usuais para Ter consistência. Nesse caso, devido as condições dispostas, para fazer uso de modelos matemáticos provavelmente, Emil teve que adaptá-los aos dados levantados no intuito de entender melhor o fenômeno  em questão. Um modelo matemático clássico pode ser utilizado em outras situações desde que se efetue uma adaptação e/ou aproximação dos dados.

6.3.3.  Medidas de Posição Geográfica a partir da Esfera Solar e Meridianos

Quinta-feira, 15 de janeiro de 1863
"[...] No encano, depois de ter esperado bastante tempo por aqueles nobres filhos do sertão que, afinal, chegaram, depois de terem, numa pequena toupava, emborcado a canoa e molhado toda a farinha, obrigando-nos a espalha-la e pó-la secar, fiz as seguintes observações:
9h 6’ 36’’  48o 5’ 10’’ )
9h 8’ 54,5’’  48o 36’ 50’’ (  Borda inferior
9h 10’ 23,3’’     48o 56’ 40’’ )
Distância das bordas interiores:
9h 17’ 29’’  57o 18’ 5’’
9h 20’ 14’’  57o 17’ 20’’
9h 22’ 30’’   57o 16’ 30’’
9h 24’ 12’’  57o 16’ 0’’       15’ 50’’
9h 26’ 15’’    57o 15’ 30’’
foi observado – 10’’                    foi estimado 0 – 2o (+ -30o)
[...] Deixamos passar um forte, mas breve, aguaceiro de trovoada, abrigando-nos debaixo de emaranhado cipoal à margem do rio. [...]”

Nesse trecho, são apresentadas medidas de posição em relação a esfera solar e meridianos. A superfície da Terra é assimilada a uma superfície esférica, prescindindo-se de seu achatamento.
Para efetuar essas medidas, Emil faz uso de conceitos preliminares da Astronomia a fim de  localizar os pontos da região: latitude e longitude em relação aos meridianos, ao equador.
Por exemplo, a diferença de nível entre dois pontos do globo terrestre é a diferença das cotas dos geóides, isto é, diferenças entre superfícies de nível. O fio de prumo dá a vertical de um lugar.
A direção superior desta vertical se chama zênite e a oposta nadir. As retas verticais concorrem no centro O.
 
                                           DESENHO

Na figura acima, PN e PS são os pólos norte e o sul, respectivamente. O plano perpendicular à linha dos pólos é o equador e ao ângulo ? que forma a vertical com EE´ chamamos latitude do lugar. A latitude se mede de 0o a 90o a partir do equador. As semicircunferências que têm como diâmetro a linha dos pólos são os meridianos, e as circunferências que resultam do corte da esfera com planos paralelos ao equador, são os paralelos."

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que nossa pesquisa esteja em estágio preliminar, portanto incipiente, o texto de Emil sugere-nos que o ser humano face à realidade que o circunda e provido de razão e imaginação, tende a relatar esta realidade e as causas e efeitos que lhe são peculiares, na linguagem materna e, mais refinadamente, na linguagem matemática, que denominamos de modelo matemático. Na prática, este conjunto de símbolos e relações - modelo matemático - pode estar vinculado a qualquer ramo da ciência, da própria matemática ou ainda, emergido das necessidades práticas de uma cultura. Por outro lado, quando se propõe um modelo, ele é, proveniente, de aproximações realizadas e portanto, requer sempre uma adaptação quando levado ao campo real, o que possibilita a resolução de situações cada vez mais complexas permitindo um desenvolvimento da ciência. Ou seja, a noção de modelo na ciência é fundamental para a constituição e expressão do conhecimento.
Parafraseando AMOROSO COSTA em MORAES(1958:12): “Nenhuma outra construção humana tem a unidade, a harmonia da Ciência Matemática; nenhuma a iguala na solidez e no equilíbrio perfeito e na delicadeza dos detalhes”.
 

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[01] AZEVEDO, Fernando (org.), As ciências no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1955.
[02] BIEMBENGUT, Maria Salett; HEIN, Nelson. Modelagem no Ensino. São Paulo: Contexto, 2000.
[03] BOYER, Carl B. - História da Matemática, São Paulo, Edgard Blucher Ltda, 1974.
[04] CASTRO, Moacir Werneck de. Missão na Selva: Emil Odebrecht (1835-1912). Rio de Janeiro: AC&M, 1994.
[05] DOMINGUES, Felippe Augusto Aranha. Topografia e astronomia de posição: para engenheiros e arquitetos. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1979.
[06] SILVEIRA, Luiz Carlos da. Fundamentos de Astronomia: Eclipse de 03/11/94. Criciúma: FUCRI/UNESC, 1994.
[07] D´AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: arte o técnica de explicar e conhecer. São Paulo: Ática, 1998.
[08] HUNTING, R. P. Learning, Aboriginal Word View and Ethnomathematics Western Australia Institute of technology, 1985 em FERREIRA, Eduardo Sebastiani.
[09] MORAES, Ceres Marques de. Apostilas de didática:  especial de Matemática. Rio de Janeiro: MEC, 1958. 220 p.
[10] NOVA ENCICLOPÉDIA BARSA. Donaldson M. Garschagen (Editor). Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica do Brasil, c1997, 18 v.
 

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