A ARTICULAÇÃO DA FAMÍLIA NA APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA

Adriana C. M. Marafon
Faculdade de Educação – UNICAMP - CNPq

Resumo:
     Analisei o processo de qualificação da força de trabalho, tomando como foco a  família e a aprendizagem da matemática na escola. Fiz entrevistas e observações de aula com três crianças que estavam cursando a 5a série do 1o grau. Considerei que estes sujeitos estavam inseridos em  aparelhos ideológicos: escola e família. As práticas familiais podem “coincidir” com a pedagógica, se isso ocorrer o aluno ligado a essas práticas possuirá vantagem no processo de qualificação e constituirá valor- signo, caso contrário o aluno trabalhará para aumentar o prestígio dos outros.

Palavras-chaves: constituição de prestígio, qualificação da força de trabalho e aparelhos ideológicos.

Introdução:
     A partir do tema a influência da família na aprendizagem da Matemática, levantei duas questões que nortearam a pesquisa. Uma delas trata do estatuto de superior que a fala matemática formal  possui. Exercer a fala matemática formal significa “ser mão-de-obra especializada”, portanto, fazer parte de um grupo de pessoas que possuem um limite econômico (com diferentes níveis dentro da carreira) maior do que os grupos de pessoas que não possuem a qualificação. Deste modo, entendo que as posições hierárquicas no trabalho são determinadas, também, em função deste estatuto, que produz a diferenciação entre posições sociais e renda. A outra questão é se a família participa ou não da qualificação da força de trabalho.
     Os autores Ubiratan D’Ambrosio, Louis Althusser, Jean Baudrillard, Roberto R. Baldino e Tania C. Cabral serviram de base para a elaboração do trabalho.
     No que tange aos procedimentos metodológicos, utilizei como referencial Michel J. M. Thiollent (1987).
Para analisar a influência da família no processo de qualificação da força de trabalho, considerei ser suficiente  analisar um dos anos escolares que se remetem ao 1o grau (Ensino Fundamental). Neste sentido, coletei o dados referentes a três alunos que pertenciam à 5a série  de uma escola estadual, na cidade Rio Claro . Como estava interessada na influência proporcionada pela família na constituição de códigos de prestígio  ou de desprestígio no processo de julgamento escolar, escolhi alunos cuja classificação proposta pela escola  era a seguinte: excelente , bom e sofrível.
     Adotei os seguintes procedimentos metodológicos para obtenção dos dados: a observação indireta e a entrevista semi-estruturada ( Thiollent, 1987).
    Tendo em vista que esses alunos estavam inseridos nos aparelhos ideológicos familiar e escolar e que suas práticas estariam em consonância com a ideologia que perpassa esses aparelhos (Althusser, 1980), considerei que os alunos expressariam essas práticas, nas quais a fala é a forma de expressão que deflagra o “assujeitamento” às ordens sociais.

Fundamentação:
    Entendo a fala nos planos do enunciado e da enunciação (Vallejo e Magalhães, 1991). O enunciado é limitado pelo que se expressa no discurso manifesto. Na enunciação, o sujeito se posiciona além do que intencionalmente pretende. Segundo Vallejo e Magalhães (1991): “Há um sujeito que enuncia a mensagem e há um sujeito enunciante divergente do primeiro”(p.42).
    Quando o sujeito  se submete à avaliação  formal, na medida em que fala ou escreve, pronuncia-se, compromete-se em relação ao outro (um comprometimento em relação à estrutura da mensagem e a um código implacável, inexorável). O sujeito, quando faz uso da palavra (escrita ou falada), possibilita o reconhecimento. Assim, “...cada execução de discurso tem, como resultado, uma determinada posição do sujeito que é relativa ao discurso e  não dissociável da estrutura da mensagem” (Vallejo e Magalhães, 1991, p.42).
Desta forma, o sujeito está sempre à mercê do que é capaz de articular diante do outro, no momento em que fala. Se a fala denuncia o não conhecimento das regras básicas para percorrer a hierarquia escolar/acadêmica, então o sujeito é um forte candidato a não pertencer a esta ordem. Portanto, a fala pronunciada convenciona o privilégio que a mercadoria força de trabalho qualificada assume.
     Entendo que a família é responsável pela introdução dos códigos de reconhecimento ideológico, que podem coincidir ou ano com os códigos adotados por instâncias burocratizadas, instâncias de produção do saber, como por exemplo, a Escola.
    O reconhecimento dos signos (cultura) vai dizer respeito ao que é possível ser aprendido como códigos possíveis de serem decifrados. Entretanto, a produção de significados que ocorre na família faz a diferenciação entre as mercadorias força de trabalho , uma vez que a qualificação destas depende do acesso a textos que podem ou não ser lidos, decifrados, diálogos que podem ou não ser experimentados. Assim, tais mercadorias assumem valor de uso  e valor de troca ,  a partir da atribuição de valor-signo , que é justamente o que conduz à diferenciação no julgamento escolar, e que depende da inserção do "assujeitamento" proposto pela família. Assim, os sujeitos que partilham das falas informais, as quais coincidem com as formais, nos diversos campos de conhecimento válidos, terão vantagem sobre os sujeitos que não as partilham.
    Entretanto, não é possível negar que as falas matemáticas fazem parte das práticas de qualquer sujeito, mas é perfeitamente possível afirmar que há diferença entre aquela que se refere ao conteúdo escolar ou acadêmico e a que não se refere. Ora, se é absolutamente natural discutir os problemas matemáticos propostos em aula com o irmão ou irmã, com o pai ou a mãe, aprender a utilizar os recursos necessários para lidar com eles de forma eficiente, neste caso, será, naturalmente, mais fácil alcançar a documentação necessária para a qualificação da força de trabalho. Não estou dizendo que constituir valor de uso é uma condição necessária para a qualificação, mas, quase sempre, significa vantagem no processo de aprovação. O que quero ressaltar é que a família proporciona ao sujeito a sobrevivência social, cabendo ao aprendiz “comunicar-se”, exercendo a fala tal como aprendeu. Se a gramática utilizada foi a considerada formal, possuirá privilégio, sem qualquer esforço. Se o ambiente em que cresceu possuía uma biblioteca, pessoas ditas “cultas”, o sujeito funcionará desta forma, não teve escolha, constituiu-se assim, sem esforço algum, possui privilégio.  No que se refere com à Matemática, vale dizer o mesmo.
    Assim, a usurpação, no que se refere à Matemática formalmente instituída, está no estatuto da superioridade que este campo assume sobre os outros, uma vez que os programas escolares e acadêmicos se baseiam  nele. Portanto, o sujeito, cujas falas estão de acordo com as formais, possui vantagem no processo de qualificação da força de trabalho, e, neste sentido, a família participa da constituição do valor-signo à força de trabalho qualificada.
    O trabalho que propus, certamente, poderia ser desenvolvido em qualquer área de conhecimento formal . Refiro-me à Matemática em função do meu campo de atuação ser Educação Matemática e, portanto, me coloco na posição de analisar, também, aquilo que se dirige à Matemática.

Pesquisa de campo:
    A ideologia age na interpelação dos indivíduos como sujeitos, produzindo alunos, mães, professoras e inspetores. O aparelho familiar exerce um papel fundamental na constituição do sujeito como aluno, pois lhe atribui hábitos, comportamentos, aparência e saberes, tornando possível, ao aparelho escolar julgá-lo, classificá-lo.
    É através da constituição de valor-signo (Baudrillard, 1972) sobre o aluno, que é possível a aprovação, ou, contrariamente, através da constituição de códigos de desprestígio, a reprovação.
    Pudemos verificar o reconhecimento por parte de todos os entrevistados do estatuto de superioridade da Matemática escolar, criando, desta forma, a passividade por parte dos pais e dos alunos em relação às possíveis classificações (aprovado ou reprovado). Não porque os pais acreditassem que o saber matemático está acima de todos, mas porque a garantia do prestígio permanece na medida em que aceitam a superioridade, que garante, em última instância, maior valor de troca, ou seja, que garante a posição superior.
     Juca, Marcos e Patrícia são reconhecidos, considerando a voz de suas professoras, da inspetora, de seus colegas, suas próprias vozes e de suas mães com base no código de prestígio que constitui valor-signo para então diferenciar o qualificado do não-qualificado. A verdade da equivalência entre a aprovação em Matemática e aprendizagem dos conceitos essenciais se encontra no testemunho da aprovação de Juca e Patrícia e da reprovação de Marcos, que pode ser visto por escrito, marcado, nas instâncias burocráticas que auxiliam o controle dos documentos escolares.
     No caso de Marcos, houve a constituição dos códigos de desprestígio pela Força de Trabalho Agente, isto é, pela professora (que, também, impõe seu domínio através da burocracia), pela inspetora, pelos colegas de turma e pela própria família.
     Em relação a Patrícia, houve constituição de valor-signo pela Força de Trabalho Agente. As práticas exercidas pela família de Patrícia, lhe propiciam a possibilidade de ser julgada como uma aluna que é capaz de articular a fala matemática pedagógica, cujo resultado é a constituição de valor-signo sobre a sua força de trabalho, que está em processo de qualificação.
    No caso de Juca, também houve constituição de valor-signo pela Força de Trabalho Agente. Ele não era considerado tão bom aluno como Patrícia, mas preenchia todas as condições para a aprovação.
 
Conclusão:
    De acordo com os depoimentos obtidos, não há como negar que a escola tem por objetivo aumentar o valor venal através da constituição de valor-signo da força de trabalho e, como diz Baldino e Cabral (1991), os alunos procuram diminuir o tempo de estudo, nesse sentido, agem como operários e, quando são aprovados, valorizam a sua força de trabalho, passando, então, a agir como capitalistas, que aumentam o seu capital. E é neste quadro que alguns extraem a mais-valia com a aprovação em função da reprovação dos outros. E a família, em que ponto entra nesse movimento? É justamente na possibilidade de o aluno ser o explorado ou o que explora. É na família que o sujeito aprende a sobreviver socialmente, e é nessa sobrevivência que estão os signos que delimitam um caminho, as possíveis escolhas, portanto, as possíveis posições sociais e econômicas. Neste sentido, a participação na prática educativa é vivida, pelos alunos, de formas inteiramente distintas, e isso depende muito da família da qual façam parte. O sujeito é constituído sócio-historicamente e tem sua referência na família. E, neste aspecto, uns são historicamente explorados, e outros, exploradores.

BIBLIOGRAFIA:
ALTHUSSER, L., Posições - 2, (Trad.), Rio de Janeiro, Ed. Grall Ltda, 1980.
BAUDRILLARD, J., Para uma crítica da Economia Política do Signo. (Trad.), São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1972.
BALDINO, R. R., CABRAL, T. C. B., Potenciação da força de trabalho na escola: desejo e valor/signo. Rio Claro, SP, UNESP, 1991. (Texto mimeografado)
D'AMBROSIO, U.,  Etnomatemática, São Paulo, Editora Ática S.A., 1990.
MARAFON, A.C.M. A influência da família na aprendizagem da matemática Rio Claro (SP): UNESP, 1996. 398p. Dissertação de mestrado - Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, UNESP, 1996.
___________ A qualificação da força de trabalho: uma função da escola, mas uma possibilidade que a família partilha São Paulo: EPEM - 27 a 30 janeiro,1996.
THIOLLENT, M.J.M. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Editora Polis, 1987.