CO18: Matemática escolar e práticas sociais no cotidiano da vila Fátima: um estudo etnomatemático.
Cláudio José de Oliveira


Resumo
O presente estudo busca descrever e compreender um processo pedagógico que estabelece vínculos entre práticas cotidianas de um grupo social e a Matemática escolar. A pesquisa analisa as características de um processo onde foram produzidas informações sobre preços de produtos básicos de consumo familiar de um determinado grupo social, apontando suas repercussões quando da distribuição destas informações.

Palavras-chave: Educação Matemática, Etnomatemática e Matemática-Educação Bá
 

Introdução
O presente trabalho de pesquisa constitui-se na dissertação de mestrado, defendida por mim em março de 1998, sendo orientado pela Profa. Dra. Gelsa Knijnik na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.
"Matemática escolar e práticas sociais no cotidiano da vila Fátima: um estudo etnomatemático" reúne reflexões sobre um processo pedagógico que procurou estabelecer vínculos entre a Matemática escolar e o cotidiano de um grupo social. O processo pedagógico consistiu em uma atividade curricular em Educação Matemática, envolvendo a organização e a distribuição para os/as integrantes do grupo social de informações sobre produtos de consumo familiar e seus respectivos preços.
A parte empírica da pesquisa foi realizada com uma turma de 6a série do ensino fundamental durante o ano letivo de 1996, em uma escola publica estadual da periferia de Cachoeirinha, município da grande Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. O processo pedagógico que é objeto do estudo desta dissertação se constitui em uma das dimensões do trabalho desenvolvido com o grupo, não se caracterizando como uma atividade "extracurricular".
A pesquisa de campo foi realizada através de técnicas de inspiração etnográficas. Sua análise foi elaborada a partir das teorizações da Pedagogia Crítica e da Etnomatemática, oportunizando que fossem discutidas possibilidades e limitações do processo pedagógico.

Objetivos
O trabalho de pesquisa teve por objetivo discutir sobre uma prática pedagógica que vinculava a Matemática escolar com as práticas cotidianas de um grupo social, através da problematização do meu próprio fazer pedagógico. Busquei realizar uma reflexão teórica que tivesse uma contribuição com as teorizações em Educação Matemática no que se refere a levar para a sala de aula fatos e acontecimentos que fazem parte das necessidades do dia-a-dia de uma comunidade de periferia, não só com o objetivo de desenvolver o conhecimento matemático escolar. Não era só trazer a "realidade" para sala de aula, mas construir um conhecimento matemático em sala de aula que tenha seu caminho de retorno para a comunidade.

Desenvolvimento do tema
"Matemática escolar e práticas sociais no cotidiano da vila Fátima: um estudo etnomatemático" reúne reflexões sobre um processo pedagógico que procurou estabelecer vínculos entre a Matemática escolar e o cotidiano de um grupo social. O processo pedagógico consistiu em uma atividade curricular em Educação Matemática, envolvendo a organização e a distribuição para os/as integrantes do grupo social de informações sobre produtos de consumo familiar e seus respectivos preços.
Existe um lugar onde a Matemática escolar atua na seleção e classificação de alguns, onde as palavras e os números determinam a vida de muitas pessoas. Um lugar onde apenas um ou uma detém o conhecimento certo, o poder de dizer e determinar quem vai ter sucesso maior na vida fora da escola. Onde a explicação para o fracasso dos/as estudantes é centrada no argumento de que eles/elas não são "bons de cabeça", ou ainda, que não nasceram para "a coisa". O lugar a que me refiro é a sala de aula onde se realiza o ensino de Matemática.
Para estes professores e professoras detentores do saber e do poder, a solução até agora encontrada para explicar o fracasso na Matemática escolar de seus alunos e alunas é discutir e aprovar novos métodos, novas técnicas.  Ao aplicar novos procedimentos acreditam que estão minimizando a exclusão destes estudantes. Os/as aproximadamente 30% de alunos/as que têm sucesso na Matemática escolar justificam a "inaptidão" dos/as demais.  Para os/as "inaptos/as" é prescrito um "tratamento" à base de equações, de frações, de expressões numéricas. De preferência sempre as mais "complicadas" que aparecem no livro didático: "é para ver se eles/as sabem". Para resolver tais exercícios, os/as estudantes têm que "saber mesmo Matemática".
Insatisfeito com esse mapeamento do que é considerado por um olhar mais conservador como ensino de Matemática e entendendo que ele pode ser diferente é que dou início a esta pesquisa. Seus contornos têm origem na reflexão sobre uma prática pedagógica que é parte do quadro acima descrito. Eu também sou partícipe desta produção do fracasso ou sucesso escolar. Portanto, fazer este estudo é de fundamental importância para mim, enquanto professor de Matemática, pois ela é também uma oportunidade para eu refletir e reconstruir minha própria prática pedagógica.
Tendo em vista as conexões de minha temática de estudo com a Educação Básica e considerando minha trajetória de trabalhador da Educação Matemática, planejei realizar uma pesquisa na escola onde sou professor.
Como trabalhador em Educação Matemática problematizo, nesta pesquisa, as práticas sociais de um grupo de alunos/as, não só como ponto de partida para ensinar a Matemática escolar, mas também como ponto de chegada, pois me interessa analisar dentro do contexto pedagógico, com o auxílio da Matemática tais, práticas sociais. Ao vincular o saber matemático produzido em sala de aula com o grupo de famílias destes/as estudantes, o conhecimento matemático escolar "participa" da vida de fora da escola. Para examinar as questões que os/as estudantes trazem para a sala de aula como sendo produto de suas interações sociais e culturais, a concepção de ensino de Matemática passa a ser vista como uma possibilidade de se fazer Educação através da Matemática.
O que merece ser investigado não é apenas o trabalho em sala de aula mas o retorno das informações produzidas no contexto escolar para a comunidade. Exatamente nesse ponto quero avançar na discussão: que uso é feito deste conhecimento matemático escolar pelos homens e mulheres daquele grupo social? Quais as repercussões sociais deste uso?
É com esse olhar para a Matemática escolar e sua ação como um filtro social é que realizei um trabalho pedagógico, analisando-o como uma possibilidade a mais de questionamento na Educação Matemática, no intuito de contribuir com a mudança do atual quadro educacional. Tendo como suporte teórico as idéias presentes na Pedagogia Crítica e na Etnomatemática, discuto neste estudo a seguinte questão de pesquisa:

Conclusão
Ao dar início ao processo pedagógico, eu tinha como "certeza" que trazer para as discussões em sala de aula as questões apresentadas pelos/as estudantes era uma possibilidade reconhecida e previamente aprovada por eles/elas. Estava concebendo que aquela proposta reunia não só as minhas aspirações para uma aula de Matemática como também para as demais pessoas daquele grupo social.
Entendendo que era consenso da comunidade de que Matemática escolar, com usualmente é ensinada, promovia a exclusão da maioria dos/as estudantes, eu supus que haveria uma aceitação completa de todos/as os/as alunos/as para uma proposta pedagógica que diminuísse o distanciamento da Matemática escolar do mundo social do grupo. Para mim era fato consumado a necessidade de se fazer uma outra Matemática, como se isto representasse a idéia da comunidade.
No entanto, o processo pedagógico foi perpassado pelas resistências dos/as estudantes, dos seus familiares e também das minhas próprias. A desestruturação das certezas rompeu também com concepções já "naturalizadas" sobre o jeito "correto" de se produzir conhecimento matemático escolar.
A luta para desenvolver o processo pedagógico que tinha em si um outro jeito de se fazer Matemática contribuiu para um "alargamento" do que era considerado por todos/as nós como espaço pedagógico. Este passou a ser entendido não só como a sala de aula, mas também como as casas dos/as estudantes (quando as questões da Matemática desenvolvida na escola começaram a integrar as conversas familiares), a sala de reunião da escola (onde se realizaram os encontros com as mães e pais com a participação dos/as alunos/as) e os mercados onde se realizaram as coletas de preços.
Outra provável repercussão positiva do processo pedagógico desenvolvido foi o modo como a comunidade recebeu e utilizou as informações impressas distribuídas. As listas foram úteis em sua vida cotidiana, e isto fez com que os/as estudantes e seus familiares começassem a valorizar mais a escola.
Coloco como limitação para o processo pedagógico realizado alguns pontos que poderiam ter sido mais intensamente explorados. Um deles foi a participação dos familiares, solicitados a estarem presentes na escola somente nas reuniões de entregas de boletins, que ocorriam uma vez a cada bimestre. Nos encontros fora desse calendário, as mães que se fizeram presentes geralmente estavam sempre preocupadas com seus afazeres de casa ou com o rendimento do/a filho/a. Possivelmente, pelo menos no início do trabalho, elas e os/as estudantes conceberam aquele material impresso como mais uma tarefa das aulas de Matemática. O entendimento de que aquele material era algo diferente foi apontado por um grupo de pessoas, mas não pela totalidade.
A participação de todas as pessoas envolvidas no processo ?  o professor de Matemática, os/as estudantes e seus familiares ?  contribuiu para a construção de novos e possíveis caminhos para o que estávamos realizando na escola. Neste sentido, foi importante o espaço que foi aberto para que muitas outras vozes, além das usualmente presentes no mundo escolar, se fizessem presentes.
Isto talvez tenha permitido ampliar o olhar daquela comunidade na direção de uma escola e de uma Educação que possa vir a fazer diferença no cotidiano das pessoas, auxiliando-as a entender e a desenvolver de forma mais efetiva as suas vidas, a partir daquilo que a escola ensina.

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