Carlos Gustavo Marcante Guerra
Tema: educação de jovens e adultos
Resumo
A Etnomatemática está relacionada ao estudo dos vários
modos de compreender, de gerar, organizar e difundir o conhecimento e de
se relacionar. Estes aspectos têm se transformado sensivelmente,
influenciando o surgimento das novas tecnologias da inteligência
e sendo, também, influenciado por elas. Neste trabalho procuramos
res-saltar os vínculos entre Etnomatemática e uma abordagem
transdisciplinar e relatar um exercício prático usando a
concepção de hipertexto para estimular o desenvolvi-mento
da inter-relações entre as diversas culturas e áreas
de conhecimento.
Palavras chave: informática, educação, interdisciplinaridade.
Introdução
Recentemente, temos visto o desenvolvimento de novas tecnologias de
informa-ção e comunicação. Mais do que isto,
de novas tecnologias da inteligência. Além de recursos tecnológicos,
estes desenvolvimentos estão associados a diferentes modos de compreender,
de gerar, organizar e difundir o conhecimento e de se relacionar consi-go,
com o outro, com a natureza e com o cosmos.
O seu desenvolvimento e seu uso estão intimamente relacionados
à compreensão da interdependência das diversas experiências,
à importância da contextualização do conhecimento
e ao convívio com a diversidade.
Como apresentado por Ubiratan D’AMBROSIO (1997, p.34-35;118-119;125),
o Programa Etnomatemática não é o estudo apenas de
“matemáticas das diversas etnias”, mas está vinculado justamente
à pesquisa dos vários modos de gerar, or-ganizar e difundir
o conhecimento; ao estudo dos vários modos, técnicas, habilidades
ou mesmo artes (technés ou ticas) de explicar, entender, aprender,
lidar e conviver (matema) nos diversos ambientes naturais, sociais e culturais
(etno).
Objetivos
Neste trabalho procuramos ressaltar os vínculos entre Etnomatemática
e uma abordagem transdisciplinar do conhecimento e relatar um exercício
prático usando a concepção de hipertexto, estimulando
a compreensão da interconexão entre as diver-sas culturas
e áreas de conhecimento. Como ferramenta para o professor, este
modo de pensar facilita a contextualização dos temas, um
posicionamento ativo do aluno frente ao conhecimento e o convívio
com a diversidade.
Desenvolvimento do Tema
A compreensão da importância da inter-relação
entre diversas culturas e áreas de conhecimento, tem crescido principalmente
neste século que se encerra. Foi o que levou, por exemplo, após
a catastrófica experiência da Segunda Guerra Mundial, à
criação da Organização das Nações
Unidas e da UNESCO – que hoje tem importan-tes ações no sentido
de estimular a transdisciplinaridade, como os Fóruns sobre Ci-ência
e Cultura (relatórios disponíveis em http://www.unipaz.org.br/forum.html)
e o CIRET (veja http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret/). Epistemologicamente,
está vinculado à compreensão da interdependência
de todos os fenômenos (incluindo ma-téria, energia e consciência),
trazida especialmente pela física quântica.
E foi esta mesma compreensão que inspirou o desenvolvimento
das novas tecno-logias de comunicação e informação.
A Internet, rede mundial de computadores, hoje bastante difundida e
utilizada, também começou a ser desenvolvida neste contexto.
Se popularizou com o desenvol-vimento das chamadas páginas de hipertexto
em 1993 – que, interconectadas, são o que hoje chamamos World Wide
Web, WWW ou simplesmente Web. Mas há uma sé-rie de avanços
tecnológicos invisíveis para o usuário que a tornaram
possível. Como recursos físicos de comunicação
de dados (rede telefônica, satélites, fibras óticas,
etc.), padrões de comunicação (como TCP/IP, http,
html, java, etc.), aperfeiçoamento dos com-putadores pessoais e
programas que possibilitam a navegação (browsers).
Assim, a Web, como toda tecnologia, não surge isoladamente,
mas é o resultado do trabalho de muitas pessoas, por um longo tempo,
em torno de uma concepção mais ou menos clara. E, após
implementada e difundida, num sentido inverso, passa a influenciar a própria
compreensão de mundo.
Compreensão ? Ação
Podemos enfocar o aspecto negativo das novas tecnologias da inteligência.
Por exemplo, quando uma matemática em particular é tomada
como referência única para compreensão do mundo. Num
caso mais específico, quando tomamos nossa geome-tria clássica
(poderíamos dizer européia, mediterrânica, grega, euclidiana)
para compreender. E então, com o apoio do computador, colocamos
cinco triângulos em torno de um círculo e dizemos que isto
é um flor. Sem cheiro, sem cor, sem nuances, sem sutilezas (ROSZAK,
1988, cap. 4). Motivando o velho clichê da matemática, da
ciência e da tecnologia como algo frio, impessoal, insensível.
Mesmo para a música tem se procurado possíveis mecanizações,
a fim de possi-bilitar sua automação (GUERRA, 2000).
Mas podemos também enfocar seus aspectos positivos: estimular
o diálogo, a convivência, o conhecimento e o respeito mútuo.
Estimular uma mente mais aberta, mais atenta, voltada para a interdependência.
Que busca, por exemplo, uma experiên-cia educacional mais contextualizada
(D’AMBROSIO, 1997, p.128-134).
Este é nosso objetivo ao trabalharmos com o hipertexto.
Geralmente compreendemos informática como lidar com computadores.
Mas num sentido mais amplo, ela também se refere a compreensão
dos modos de gerar, organizar e difundir o conhecimento. Tem raízes,
por exemplo (GUERRA, 1996; GUERRA, 1998), na lógica chamada aristotélica,
no cálculo senten-cial de Frege, na álgebra binária
de Boole, na geometria clássica, nas máquinas programáveis
da Re-volução Industrial (como os teares automáticos
programados por cartões perfurados), nas máquinas de calcular
(incluindo os ábacos antigos e máquinas eletromecâni-cas
da modernidade). Ou, mesmo, nos exercícios míticos ou literários,
onde seres criados pelo homem tem capacidade de tomar decisões,
como a criatura do Dr. Frankenstein, do livro de Mary Shelley (1797-1851),
a peça de Karel Capek (1890-1938), de Praga, que introduz o termo
robô, ou na grande variedade de literatura de ficção
científica.
Talvez esta possa ser chamada uma postura Etnoinformática…
Neste sentido, a informática busca ferramentas intelectuais
que auxiliem neste processo de gerar, organizar e difundir o conhecimento.
E uma das ferramentas mais eficazes e eficientes para isto é o hipertexto
(HERTZUM; FROKJAER, 1996).
Buscando a origem do hipertexto, Pierre LÉVY (1993, p. 28-29)
diz que foi enun-ciado pela primeira vez, ainda que sem este nome, em 1945,
por um matemático e físico que participou no desenvolvimento
dos primeiros computadores, chamado Vannevar Bush, em um célebre
artigo intitulado As We May Think. Sugeria que nos inspirássemos
em nossa forma de pensar (não que seja possível imitá-la).
Segundo ele, a mente humana não funciona de forma separativa e hierárquica,
mas através de associações – ela pula de uma representação
para outra, através de uma rede intrinca-da, desenha trilhas que
se bifurcam, tece uma trama infinitamente mais complicada do que os bancos
de dados de hoje ou os sistemas de informação de fichas perfuradas
existentes em 1945. Seria preciso criar um imenso reservatório multimídia
de docu-mentos, abrangendo ao mesmo tempo imagens, sons e textos (note-se
que desde sua origem o hipertexto já pressupõe a multimídia).
O “leitor” poderia criar ligações in-dependentes de qualquer
classificação hierárquica entre uma dada informação
e outra e uma vez estabelecida a conexão, cada vez que determinado
item fosse visualizado, todos os outros que tivessem sido ligados a ele
poderiam ser instantaneamente recu-perados, através de um simples
toque em um botão.
Buscando apresentar o hipertexto como uma tecnologia da inteligência
(na ter-minologia de Lévy) ou como um modo de gerar, organizar e
difundir o conheci-mento (na linguagem de D’Ambrosio) e buscando também
unir a compreensão (sa-ber) à ação (fazer),
é que foi desenvolvida uma oficina de hipertexto (hipermídia).
Esta aconteceu com alunos de Graduação em Pedagogia (UDESC,
Florianópolis, SC, 1997) e Especialização em Metodologia
do Ensino da Matemática (UNIDAVI, Rio do Sul, SC, 1998 e UNIVILLE,
Bento Gonçalves, RS, 2000), neste caso a quase totalidade professores
de matemática.
A dinâmica é composta de cinco partes:
1) Pesquisa. Aos alunos é proposto que se organizem de grupos
de até cinco alu-nos (não mais que isto, para que todos possam
ser ativos no processo) e recortem de jornais e revistas texto e imagens
atraentes, sobre qualquer assunto.
2) Inspiração. A seguir, dispõe o material sobre
a mesa; então, criativamente, os grupos devem tentar a) agrupar
textos ou imagens sobre temas comuns e b) encontrar caminhos para relacionar
textos e imagens que pareçam não ter qualquer relação.
Para isto, podem criar novos temas. Cada tema será – usando a linguagem
da Web, que é mais clara – uma página do hipertexto (poderíamos
também chamar documen-to, etc.). Página aqui significa uma
página lógica (um tema) não precisando ter o ta-manho
de uma página de papel. O professor começa criando na hora
um exemplo: um texto sobre o inverno, fala em vinhos, pode-se ligar com
uma foto de uma lagosta através de uma nova página sobre
gastronomia – e aí acharemos ligação com uma receita
de bolo. Aquela página poderá também falar sobre as
roupas necessárias no inverno ou sobre os que não tem roupa
para se abrigar… Ou sobre o turismo que cresce com o frio, nas cidades
da serra, como Bento Gonçalves – que tal uma página sobre
a serra gaúcha, com os itens turismo, vinho (de novo! outra ligação),
ações so-ciais para ajudar os que não tem roupas?
Esta é uma parte muito divertida do traba-lho, pois aqueles textos
e imagens totalmente desconectados vão revelando novas possibilidades
de conexão. Como encaixar a foto de um navio? Ora, o vinho será
ex-portado, não? Como será transportado? E uma foto do Ronaldinho?
Voltamos ao in-verno – podemos criar uma seção de esportes
de inverno, e relacionar com os espor-tes em geral… futebol… Ronaldinho!
3) Transpiração. Se a parte anterior é extremamente
animada, agora é que vem a parte mais trabalhosa… Transformar idéias
em produto. Cada uma das ligações suge-rida precisa agora
ser explicitada. Para isto, é preciso optar por uma técnica,
uma metodologia – dentre muitas que poderiam ser adotadas – para organizar
aquele co-nhecimento. Esta discussão seria interessante, mas o tempo
para a atividade é limita-do. Então o professor indica uma
metodologia, a mais simples de compreender (por-que pode ser experimentada),
que é a que é usada na Web. Montaremos um hipertexto como
se estivéssemos montando um site, mas sem usar o computador, dispondo
o material num grande cartaz. Neste ponto é importante que as instruções
do professor sejam claras, para que o tempo seja bem aproveitado (e aqui
a experiência do profes-sor na montagem de websites é de grande
valia…). Dado o pouco espaço aqui dispo-nível, não
é possível detalhar a metodologia (talvez seja colocada à
disposição em http://edutec.cjb.net). Basicamente, é
preciso definir um tema (título) para cada pági-na (que pode
ter um ou mais textos ou imagens) e o vínculo (link) entre uma página
e outra é feito através de expressões (palavras) sublinhadas.
Assim, a expressão subli-nhada num texto ou abaixo de uma imagem
apontarão para uma página que tem aquela expressão
como título. Esta é a parte mais difícil, mas a mais
importante, por-que daqui é que vem a consistência do hipertexto.
Se necessário, como vimos, criam-se páginas intermediárias
para tornar mais claras as ligações.
4) Socialização e síntese. Depois do sufoco que
foi montar o hipertexto, agora é a hora de mostrar seu trabalho
para o grupo e conhecer os demais trabalhos. A apre-sentação
aqui deve ser rápida – um exercício de síntese –,
falando-se menos das liga-ções uma a uma, mas mais dos desafios
encontrados, como foram superados, e o que se aprendeu com isto. Sem dúvida,
este é um trabalho que traz mudanças internas…
5) Cooperação. Ao longo das apresentações
algo começa a ficar claro: por que limitar os hipertextos ao trabalho
de cada grupo? Por que não ligar todos os hiper-textos? Onde, afinal,
estão os limites que separam as diversas expressões humanas?
O final natural do trabalho é montar um grande hipertexto, conectando
(mesmo que apenas oralmente) os diversos trabalhos.
Conclusão
A oficina de hipertexto tem se mostrado um trabalho extremamente rico,
em vá-rios sentidos. Busca-se, em primeiro lugar, desenvolver o
pensamento em rede, supe-rando a visão linear e hierárquica
a que estamos moldados. Estimula-se, assim, o tra-balho interdisciplinar
– que no caso do professor de matemática poderá ser usado
para relacionar os temas do ensino formal (curricular, disciplinar) de
matemática com outros temas: história, música, família,
diversão, arte, etc. Ou, especialmente, para buscar uma contextualização
daquilo que é ensinado, algo tão importante e tão
esque-cido (D’AMBROSIO, 1997, p.128-132). Outro aspecto interessante se
refere a ser uma experiência prática de organização
e apresentação do conhecimento usando novas tecnologias da
inteligência (no caso, hipertexto e multimídia), mesmo sem
fazer uso de computadores.
O hipertexto também pode ser usado como mote para a aplicação
de vivências educacionais criativas, usando música, dança,
jogos, etc. Esta foi a perspectiva que usamos na disciplina Educação,
Interdisciplinaridade e Novas Tecnologias, dos cur-sos de mestrado e doutorado
em Engenharia de Produção da UFSC. Esta disciplina foi extensamente
documentada, e boa parte do material está disponível no site:
http://leonardodavinci.cjb.net
Todo este trabalho está vinculado a um objetivo maior, que é
uma educação vol-tada não apenas para o desenvolvimento
de habilidades intelectuais, mas para o que poderíamos chamar desenvolvimento
da consciência. Alguns tópicos desta pesquisa estão
sendo disponibilizados no site do autor, em http://cgustavo.cjb.net.
Contatos por e-mail são bem-vindos, e podem ser feitos pelo
endereço gustavo@suporte.net.
Bibliografia
D’AMBROSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas
Athena, 1997.
GUERRA, Carlos Gustavo M. Informática educativa sem computadores:
uma pers-pectiva trans-disci-plinar de novas posturas educacionais. Salvador,
Revista de Educação CEAP, n.17, junho de 1997.
GUERRA, Carlos Gustavo M. The Mechanization of Intelligence and the
Human Aspects of Music. In: MIRANDA, E. R. (ed.) Readings in Music and
Artifi-cial Intelligence. Amsterdam: Harwood Academic Publishers, 2000.
Con-temporary Music Studies, v.20.
GUERRA, Carlos Gustavo M. Transdisciplinaridade com (re)ligação
entre Ciência e Cultura: da Antiga China à informática
educativa e musical. Florianópolis: Uni & Verso, 1998.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro
do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
ROSZAK, Theodore. O culto da informação. O folclore dos
computadores e a ver-dadeira arte de pensar. São Paulo: Brasiliense,
1988.
HERTZUM, Morten; FROKJAER, Erik. Browsing and querying in online docu-mentation:
a study of user interfaces and the interaction process. ACM Trans-actions
on Computer-Human Interaction, v.3, n.2, June 1996, p.136-161.