CO 25: Espacialidades: um estudo Etnomatemático
Sônia Maria Clareto


Resumo
A presente pesquisa vem sendo desenvolvida junto a populações ribeirinhas do município de Laranjal do Jari, estado do Amapá. Trata-se de uma pesquisa em sua fase inicial de construção e interpretação de dados. A intenção da pesquisa é o estudo da construção de espacialidades, tendo como referência a vivência que a população estabelece com o rio Jari e o modo de vida que produz, a partir daí. Enfim, o estudo se dá nas culturas locais.
Palavras-chave: espacialidade, estrutura urbana, fluvialidade.

INTRODUÇÃO
O estudo que apresento é parte das investigações de campo que venho realizando no doutorado em Educação Matemática na UNESP/Rio Claro, com a orientação do prof. Dr. Ubiratan D’Ambrósio. Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa que tem como tema central a espacialidade enquanto construção cultural. A investigação está sendo realizada junto a populações ribeirinhas, no estado do Amapá, no município de Laranjal do Jari. As investigações foram realizadas a partir de entrevistas, observações participantes e visitas domiciliares.
As populações em estudo habitam palafitas sobre o rio Jari. São casas, escolas, igrejas, mercados e bares, construções quase sempre de madeira, que têm suas bases fixadas sobre um terreno que, em grande parte do ano, é leito do rio. Isso confere uma forma de ser para essas populações que dá à localidade um caráter de fluvialidade que se confunde com a fluidez das águas daquele enorme rio. As investigações iniciais ocorreram durante o período final de inverno local, no meses de junho e julho, momento no qual as águas do rio estão com seu nível ainda alto. O inverno local é marcado por grande concentração de chuvas e por uma elevação nas águas do rio. Este ano o inverno foi marcado por uma grande enchente, a maior jamais vista na região, que causou enormes danos para toda a população que vive às margens do rio.
A cidade pode ser pensada como constituída por três regiões: a beira, na qual se encontra o aglomerado urbano mais próxima ao rio e que se constitui na grande maioria da população da cidade; o alagado, definido pela proximidade em relação às regiões alagáveis de igapó; o seco, concentrado nas áreas de relevo mais elevado da cidade, nas quais as águas do rio e igapós não atingem, mesmo em épocas de grandes enchentes. Esta pesquisa está concentrada nas regiões de beira e de alagado.
A cidade de Laranjal do Jari nasceu com a implantação do chamado “Projeto Jari” na região do rio Jari, entre o Amapá e o Pará. O americano Daniel Ludwig implantou o Projeto, na década de sessenta. São decorridos hoje quatro décadas de história de muita controvérsia. Laranjal do Jari é município, há doze anos. Laranjal cresceu estabelecendo uma relação simbiótica com Monte Dourado, cidade construída no Pará para abrigar os funcionários das empresas e seus familiares.

OBJETIVOS

A investigação que agora apresento tem por objetivo o estudo das espacialidades construídas por populações que vivem em situações urbanas com características de fluvialidade devido à proximidade que mantém com o rio. Busco compreender os modos como essas populações se organizam espaço-socialmente. Estarei me ocupando com o estudo de relações sociais e espacialidades, bem como de relações que essas populações estabelecem com o rio.
 

DESENVOLVIMENTO DO TEMA

Nesse estudo, estou pensando a estrutura urbana e as relações espaciais como se construindo mutualmente. Em laranjal do Jari, tal construção é mediada pelo rio e por relações que com ele a população estabelece. Assim, o rio está sendo estudado como referencial espacial privilegiado e também como referencial temporal, a exemplo da população local. Isto é, o rio como um marcador espaço-temporal local. O rio é também o mote da mobilidade e da temporalidade que estabelecem a complexidade da teia da estrutura urbana e das relações sociais, enfim da teia das culturas locais. A fluidez do rio aparece aqui como representação das mudanças espaciais e temporais da estrutura urbana e das relações sociais. Laranjal do Jari é uma cidade na qual a SOBRE-VIVÊNCIA se dá no rio: é no (sobre) o rio que se mora e se vive, é sobre o rio que se estabelece o lugar para se viver. É essa teia complexa de relações sociais e de estrutura urbana que busco compreender. Tal compreensão passa, necessariamente, pelo estudo dos modos de vida local, que se configuram, em Laranjal, em se morar sobre o rio e se viver sobre ele. A estrutura urbana se concretiza em um emaranhado de madeira no qual casas, “ruas”, igrejas e comércio sobre palafitas se “atrepam”, aproximando vidas que transitam apertadas em passarelas. É nesse lugar, um emaranhado de madeiras e vidas, marcados pela proximidade física e simbólica que as relações sociais são construídas. É assim que também as espacialidades são construídas.
Os modos de vida da população local são estudados com vistas a se buscar compreender, usando as palavras de Brandão (1983, p. 106), “aquilo que de tanto ser um modo de vida acaba sendo o seu modo de ser. Valores éticos, valores morais que, ao afirmarem como deve ser em uma sociedade, dentro de uma categoria ou de um de seus grupos sociais, prescrevem o que se é, ao se ser dele”.
A estrutura urbana de Laranjal é marcada por seu caráter fluvial: suas “ruas” são, na verdade, “caminhos sobre palafitas”, denominados pelos moradores de pontes, passarelas ou trapichos; suas casas, igrejas, comércio e escolas, também construídos sobre palafitas, são muito próximos uns dos outros, interconectados por passarelas que formam verdadeiros emaranhados. A localização espacial é bastante diferente daquela vivenciada em localidades nas quais a estrutura urbana é cartesiana, ou mantém uma certa linearidade, com perpendicularidade e paralelismo na constituição de ruas, quadras e quarteirões.
As passarelas se constituem, em muitos trechos, de nada mais que uma ou duas tábuas soltas, sobre as quais há que se passar, se se deseja continuar adiante. Não há qualquer apoio para as mãos que possa inspirar confiança ou estabilidade na travessia. O trânsito, ao longo das regiões de alagado e de beira, é praticamente restrito ao uso das passarelas. Existe uma Passarela Principal, ou Trapichão ou Ponte Principal, que corta, no sentido longitudinal, praticamente toda a beira. Essa via tem uma largura, em média, nos trechos mais centrais, de aproximadamente um metro e meio, mas em vários pontos ocorrem descontinuidades: são tábuas soltas, quebradas ou simplesmente ausentes. Essa largura pode ser reduzida para uns dez a vinte centímetros. Além disso, existe um movimento lateral do trapichão, combinado com um movimento longitudinal, que contribuem muito para desestabilizar os passos.
As casas, palafitas, são muito diversificadas quanto ao tamanho, estrutura e comodidade. É comum se ver famílias muito numerosas, ou até mesmo várias famílias, vivendo numa mesma casa pequena, como um ou dois cômodos. O número de crianças é muito elevado, assim como a quantidade de adolescentes de cerca de treze a dezessete anos grávidas, ou embalando seus filhos. É também comum, entretanto, a presença de casas bem amplas e estruturadas. Mesmo sobre palafitas, não é raro encontrar casas com grande conforto interno, equipadas como aparelhos elétricos e eletrônicos, como televisores em cores, condicionadores de ar, forno microondas entre outros.
Sob as casas e pontes, há um acúmulo de lixo que fica boiando nas águas, ou apoiado no fundo do rio. Em alguns pontos, não é possível visualizar as águas: é um rio de lixo. Isso é ainda mais forte nas regiões alagadas, nas quais a água fica praticamente parada. A natureza do lixo é a mais diversa possível: desde carcaça de animais até móveis e colchões, passando por plásticos, vidros e papéis. Nos locais em que a água abaixou mais o seu nível, o lixo é ainda mais visível e o mal cheiro aparece mais intensamente. Alguns moradores contam que no período da seca –no verão, de agosto a janeiro- o mal cheiro é muito grande. Além disso, todo o esgoto doméstico é despejado diretamente nas águas do rio e dos lagos, inclusive o esgoto sanitário.
A água do rio é usada para o banho, para lavar as roupas e os utensílios de cozinha. Algumas vezes, essas águas servem também para se beber e para se cozinhar. É comum encontrar pessoas retirando água do rio utilizando galões, latas ou panelas As crianças brincam em suas águas e essa parece constituir-se na brincadeira preferencial dos pequenos moradores do local.
A relação que os habitantes, sobretudo aqueles que vivem nas regiões mais populosas mantém com o rio, parece ser muito contraditória: o retirar e o depositar, o limpar-se e o sujar... também, o prazer do lazer no rio e o medo do perigo que suas águas podem representar; o amor pela abundância de água que traz a vida e desespero provocado pela água grande –é como a população local se refere à enchente- que invade e destrói.
Laranjal do Jari é uma cidade de contrastes. Ela é ambivalência, é complexidade... é a terceira margem. É esse lugar que se define entre as duas margens do rio Jari. É ali que a cidade se construiu e depois, só depois, tomou conta de outras paragens, da margem “de cá”. Laranjal nasceu como antítese da outra margem, do “lado de lá”. Sobre-viver no rio Jari é conviver com o rio e a cheia, com a água por abundância e a água grande, com a água na qual se lava e a qual se suja.

CONCLUSÃO
A investigação ainda está em processo, portanto não cabem aqui conclusões. Prefiro, no entanto, pensar agora em termos de perspectivas de investigações que esta investigação inicial apresenta.

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