Luciane Chiodi
Jucelene Gimenes
Chateaubriand Nunes Amancio
Marcelo C. Borba
A recuperação
da noção de que as idéias matemáticas estão
presentes em todas as ações humanas (D’Ambrosio, 1999) vem
servindo de inspiração para que duas pesquisas, em
nível de iniciação científica, estejam sendo
desenvolvidas na Unesp/Rio Claro pelas duas primeiras autoras deste artigo,
com a entusiasmada colaboração do terceiro autor e sob a
orientação do último. Seguindo a tradição
de outros trabalhos - que abordaram a construção de
uma horta (Caldeira, 1992), de um campo de futebol (Borba, 1987) ou a cubação
da terra e a cubagem da madeira (Knijnik, 1995), esses dois trabalhos têm
abordado respectivamente a fabricação de gaiolas e atividade
agrícola na região de Piracibaba, São Paulo.
PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano, Atividades profissionais, Etnomatemática.
INTRODUÇÃO
Entendemos que os seres humanos
constituem conhecimentos lógico-matemáticos relacionados
com, por exemplo, atividades profissionais e de lazer desenvolvidas dentro
de um grupo cultural. Ao mesmo tempo, esses conhecimentos desenvolvidos
historicamente também constituem os seres humanos. Consideramos
o conhecimento matemático como sendo aquele que envolve relações
de medidas, áreas, figuras geométricas, volume, e, além
disso, grupos de pessoas dedicando-se a atividades que necessitem do uso
desse tipo de conhecimento. D’Ambrosio (1990, p. 45) sugere que “a matemática
que é praticada por grupos culturais específicos”, tais como
o de fabricantes de artefatos e o de agricultores rurais, possui uma identidade
que “depende em grande parte dos interesses, motivações e
de certas normas e jargões que não pertencem ao domínio
da matemática acadêmica”, distingüindo-se, por exemplo,
pela rigorosidade, pelos objetivos práticos envolvidos, entre outros
aspectos, como o econômico. Ao analisar a matemática dessa
forma, fica sugerido que a matemática é etnomatemática.
Baseados na noção
brevemente descrita acima, esses estudos tratam da etnomatemática
de um grupo de fabricantes de gaiolas e de um grupo de agricultores rurais,
ambos da região de Piracicaba/SP.
DESENVOLVIMENTO DO TEMA
No primeiro caso, o
do grupo de fabricantes de gaiolas, tem sido analisado como o lento e minucioso
processo de produção de uma gaiola gera a necessidade da
confecção de modelos. Na construção desses
modelos, os trabalhadores, que em sua maioria não possuem o primeiro
grau completo, utilizam muitas idéias e palavras ditas acadêmicas,
tais como: ponto médio, ângulo, raio, circunferência
e outras; mas, apesar de as utilizarem constantemente no seu dia-a-dia,
não se pode dizer qual o seu real significado dentro do contexto
cultural em que se encontram. Além disso, eles utilizam várias
ferramentas para os auxiliarem, entre elas podemos destacar o compasso,
o paquímetro, a régua, o transferidor de medidas e o esquadro,
sendo muitas construídas pelos próprios trabalhadores.
No segundo caso, o
interesse de investigar o pensamento e a prática matemática
gerada por um grupo de agricultores rurais nos levou a estudar o papel
da matemática na atividade agrícola. A pesquisadora que lidera
esse trabalho tem buscado identificar como a matemática identificada
por eles pode ser mais eficaz do que a matemática acadêmica
(Borba, 1987).
Através de conversas, os agricultores relatam suas experiências
matemáticas na agricultura. Com isso, está sendo possível
perceber como eles utilizam idéias geométricas e de medição.
Portanto, podemos perceber
que por trás dessas práticas existem muitos conhecimentos
considerados acadêmicos que, por estarem diretamente relacionados
com a prática social dessas comunidade, são conceituados
como etnomatemática.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Paralelamente às
diferentes atividades de campo, o grupo que está se formando em
Rio Claro tem discutido teoricamente acerca de como compreender a etnomatemática.
Nessa área temos analisado, dentre outras idéias, o Programa
Etnomatemática, que consiste em “investigar holisticamente a geração
[cognição], a organização intelectual [epistemologia]
e social [história] e a difusão [educação]
do conhecimento matemático” (D’Ambrosio, 1996, p. 9).
Pensamos que a discussão
desse programa mostrará as possibilidades e dificuldades de ele
ser utilizado em nossas pesquisas, bem como em nossas práticas educativas.
Partimos, assim, do questionamento da postura de ‘valorização’
do conhecimento que o aluno traz, buscando compreendê-lo no seu contexto,
e temos analisado a possibilidade de a metáfora do bilingüismo
(Borba, 1990) explicitar a viabilidade de alguém conhecer “duas
matemáticas”.
Uma terceira noção
que tem sido analisada é o conceito de cultura. É possível
que esse conceito, na forma defendida por Geertz (1989, p. 15), possa ajudar-nos
a contextualizar nossa pesquisa. De acordo com o autor o conceito de cultura
é essencialmente semiótico: “o homem é um animal amarrado
a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo
essas teias e a sua análise”. Nesse sentido, compartilha com as
idéias de Max Weber. Geertz vê a Antropologia “não
como uma ciência experimental em busca de leis, mas sim uma ciência
interpretativa, à procura de significados.”
Idéias como
essas inspiraram na década de 70 o que hoje é reconhecido
como Antropologia Interpretativa, que tem como pressuposto uma análise
hermenêutica da cultura, baseada em uma “descrição
densa”. A síntese da análise será uma das interpretações
possíveis a partir de interpretações que as pessoas
que compartilham daquela cultura fazem dela, ou seja, sempre sujeitas às
limitações e ampliações.
Conforme Goldenberg,
“Geertz inspirou a tendência atual da chamada ‘antropologia
reflexiva ou pós-interpretativa’, que propõe uma auto-reflexão
a respeito do trabalho de campo nos seus aspectos morais e epistemológicos.
Esta antropologia questiona a autoridade do texto antropológico
e propõe que o resultado da pesquisa não seja fruto da observação
pura e simples, mas de um diálogo e de uma negociação
de pontos de vistas, do pesquisador e pesquisados.” (1998, p. 23-4)
A maneira como pode
se dar o diálogo apontado pela autora acima é deveras desafiante,
principalmente quando temos como eixo temático as idéias
matemáticas.
Uma outra noção
que tem sido discutida nesse momento pelo grupo, é a de ciência
analisada historicamente. Em meados do século XIX temos a consolidação
de um modo de se fazer ciência com um modo de se organizar economicamente.
A atitude de dominação acompanha essa consolidação
que em todo seu processo deixa inúmeros exemplos dos efeitos de
sua adoção mediante outros modos de conhecer. A imposição
de uma racionalidade mostrou-se eficiente no sentido de criação
de certa hegemonia, a partir da exclusão, do não reconhecimento
de distintos modos de organização social e intelectual do
conhecimento.
Para Certeau (1994,
p. 81), a condição de sucesso desse modelo científico
dominador é justamente a possibilidade de extrair, de transferir
para seu próprio campo, objetos passíveis a determinadas
categorias analíticas sem preocupações com o contexto
histórico e “as operações dos locutores em circunstâncias
particulares de tempo, de lugar e competição. É necessário,
diz ele, que se apague as práticas lingüísticas, cotidianas”,
já que a importância está nos discursos resultantes
de apagamentos diante das limitações desse modelo de considerar
a fala, pois “o ato da palavra não pode separar-se da circunstância.”
O desafio encontra-se
em realizar um diálogo no qual as racionalidades subjugadas não
falem necessariamente usando a linguagem da racionalidade dominante, que
no nosso caso, é a da matemática dita ‘ocidental’, ‘européia’
e, no campo da Educação, a ‘acadêmica’, ‘escolar’,
‘disciplinar’. Santos (2000, p. 31) ressalta a necessidade de uma “teoria
da tradução”, pois “é por via da tradução
e do que [ele designa] por hermenêutica diatópica que uma
necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada
cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para
outra cultura”.
CONCLUSÃO
O grupo de pesquisa que ora
se encontra em formação na UNESP, Rio Claro desenvolve atividades
de campo como as duas aqui relatadas ao mesmo tempo que analisa uma diversidade
de perspectivas teóricas, na medida em que não acredita que
apenas o trabalho teórico ou o de campo bastam por si sós.
Esperamos que
a continuação dessas práticas leve à construção
de um coletivo que questione o papel da matemática em nossa sociedade
e busque a valorização de conhecimentos que hoje em dia são
desprezados.
BIBLIOGRAFIA
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na elaboração de uma proposta pedagógica para o “núcleo-escola”
da favela da Vila Nogueira – São Quirino. Rio Claro: IGCE/UNESP,
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GOLDENBERG, M. A Arte de Pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
SANTOS, B. de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
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p.254. (Tese, Doutorado)