CO29: Olhando barcos, vendo matemática
John A. Fossa, Ph.D.
Isabel Cristina R. de Lucena

Resumo
O presente trabalho descreve uma investigação, ainda em andamento, da etnomatemática de carpinteiros navais no município paraense de Abaetetuba.  A investigação visa uma descrição minuciosa do processo de construção dos barcos, bem como a descrição e análise dos conceitos e procedimentos matemáticos utilizados no referido processo.  O estudo da mencionada etnomatemática ainda pretende servir como um embasamento para o desenvolvimento de intervenções alternativas para o ensino da matemática neste município.

Palavras-chave: etnomatemática paraense; carpinteiros
navais; etnomatemática e educação.

Introdução
Os primeiros mestres artesãos a organizarem estaleiros na cidade de Abaetetuba vieram dos sítios – isto é, as ilhas que fazem parte do referido município – por volta da década de 1970 e ainda hoje continuam a tradição que trouxeram destes lugares da construção de barcos.  Nos próprios sítios, porém, mantém-se estas atividades com muita dificuldade porque os estaleiros lá situados não possuem equipamentos de corte de madeira.  Embora os estaleiros da cidade de Abaetetuba possuam tais instrumentos, fato que reduz consideravelmente o tempo de construção e portanto aumenta a produtividade, o manuseio das peças (medições, encaixes, etc.) continua sendo feita de forma artesanal.  A maioria dos barcos construídos é para a atividade pesqueira e tem uma capacidade que varia de 10 a 50 toneladas.  Além dos carpinteiros, há “mestres calafates”, ou seja, profissionais especializados em calafetar as embarcações (fazer a vedação do barco); não fazem parte permanente dos estaleiros, sendo contratados quando há necessidade.  Recebem encomendas de todo o Brasil e dos países vizinhos.
Os mestres mais antigos contam que a técnica da construção foi-lhes ensinada por parentes (pai, tio, padrinho), com precariedade de ferramentas, e baseada na transmissão oral.  De fato, a ferramenta usada com mais freqüência é o nível, embora o compasso, o esquadro e a trena são também utilizados algumas vezes.  Ainda mais, o grau de escolaridade dos mestres artesãos, quando há, só chega ás primeiras séries do ensino fundamental.  Ainda hoje, os jovens que buscam aprender a profissão são ensinados através do sistema de aprendizes, mas, em contraste ao padrão histórico, os mestres geralmente não são parentes e, conseqüentemente, os aprendizes formam grupos de profissionais que costumam a trabalhar por empreita.

Objetivos
Os objetivos do presente estudo são:
Uma descrição geral do município de Abaetetuba, detendo-se mormente sobre a rede pública de escolas de ensino fundamental e médio e sua relação com os estaleiros do município.
Uma descrição minuciosa do processo artesanal da construção de um barco num estaleiro do município de Abaetetuba.
A identificação e descrição dos conceitos e procedimentos matemáticos utilizados no referido processo.
A análise dos conceitos e procedimentos matemáticos identificados, tomando como referência tanto a matemática acadêmica quanto os propósitos para os quais os mesmos são utilizados.
A elaboração de uma proposta de ensino da matemática baseada na etnomatemática dos carpinteiros navais da região.
A implementação e testagem da mencionada proposta.

Desenvolvimento do Projeto
Podemos caraterizar o presente projeto como tendo a seguinte finalidade pedagógica: a elaboração de uma estratégia para o ensino da matemática nas escolas do município de Abaetetuba voltada para as caraterísticas do próprio município.  Para tanto, voltamos para a etnomatemática da região para informar as táticas a serem utilizadas na implementação da referida estratégia.  Não obstante, seria obviamente impraticável tentar fazer um levantamento exaustivo de todas as etnomatemáticas que podem ser encontradas no município para a inclusão no projeto.  Assim sendo, escolhemos uma atividade marcante – a construção de barcos – para ser o foco do estudo.
Há, é claro, duas tarefas propedêuticas à supracitada finalidade: um diagnóstico do ensino nas escolas do município e o esclarecimento das relações existentes entre os moradores da região e a atividade escolhida.  Faz-se necessário, portanto, ensaiar uma descrição geral do município de Abaetetuba em que seu sistema de ensino e as suas relações com os estaleiros serão detalhados.  Em primeiro lugar, se fosse o caso de que o ensino da matemática nas escolas do município estivesse sem problemas, não seria necessário empreender um projeto de reforma do porte do presente plano.  Além disso, em segundo lugar, se a atividade escolhida para informar a reforma pedagógica fosse restrita a um segmento isolado da população ou se fosse investida de uma carga emotiva de antipatia – veja, por exemplo, o caso dos antigos açougueiros japoneses –, o módulo de ensino baseado nesta atividade seria tão desconhecido ou tão desprezado que não desempenharia o seu propósito.  O segundo autor tem convivido com a comunidade ora investigada o suficiente para concluirmos de que há necessidade para mudanças sérias nas escolas referente ao ensino da matemática e de que a cultura da construção de barcos não somente permeia o município, mas também é vista como uma atividade econômica importante que até ajuda determinar a própria identidade do município.  A referida convivência, é claro, não suprime a necessidade de fazer a avaliação científica proposta.  Não obstante, é uma indicação suficiente da adequação do presente projeto para que a avaliação científica dos fatores acima indicados e a investigação da etnomatemática dos carpinteiros navais prosseguem em paralelo.
Um importante passo na descrição da etnomatemática dos carpinteiros navais dos estaleiros de Abaetetuba será a descrição minuciosa da construção de um barco dos estágios iniciais até a conclusão do empreendimento.  Será somente desta maneira que a importância e o verdadeiro papel da matemática na referida atividade serão trazidos à tona para análise posterior.  Já foi escolhido um estaleiro onde o estudo será efetuado e também já foi obtida a concordância do mesmo para a realização da investigação.  Além da observação enriquecida pelas explicações de um informante local, pretendemos registrar as várias etapas da construção por meios eletrônicos para facilitar a análise posterior e a eventual elaboração de módulos pedagógicos.  O informante local é um carpinteiro aposentado que, não obstante, ainda aceita várias empreitas de vez em quando e que se prontificou a nos ajudar compreender os vários passos da construção.
De posse da descrição detalhada do processo da construção dos barcos, poderemos identificar os conceitos e procedimentos matemáticos utilizados no mesmo.  O importante nesta fase da nossa investigação é permitir que os aspetos matemáticos emirjam dos dados colhidos.  Em estudos etnomatemáticos, é muito fácil cair numa arapuca armada pela própria estrutura do conhecimento matemático.  Este é tão abstrato que é facilmente aplicável a quase qualquer atividade humana de uma forma ou outra.  Assim sendo, o pesquisador poderia usar seus próprios conhecimentos matemáticos, de forma inconsciente, para modelar a atividade estudada e, por conseguinte, identificar o modelo com a etnomatemática procurada.  Deve ser evidente, porém, que a etnomatemática presa nesta arapuca é a do pesquisador e não a da comunidade a ser estudada.  Nosso propósito é identificar os conceitos matemáticos usados pelos carpinteiros navais sem impor nossos conceitos na descrição, embora reconhecemos que talvez esta seja, em última análise, uma tarefa impossível.  Pretendemos, portanto, validar a nossa descrição com os próprios carpinteiros.
Depois de identificar os conceitos e procedimentos matemáticos que são utilizados pelos carpinteiros navais da cidade de Abaetetuba, faremos uma análise dos mesmos.  A análise terá dois aspetos.  Primeiro, queremos detalhar as relações da etnomatemática dos carpinteiros com a matemática acadêmica, especialmente na forma que se toma na rede escolar da comunidade.  Esta parte da análise será especialmente importante para a realização da finalidade pedagógica do projeto, pois identificará os lugares dentro do currículo onde abordagens alternativas informadas pelo material colhido são apropriadas, bem como o lugares que merecem mudanças curriculares.  Segundo, queremos ainda investigar o papel social da etnomatemática do carpinteiros dentro da comunidade.  Pretendemos responder às tais perguntas como:
Quais são as finalidades da etnomatemática identificada?
É eficaz na realização destas finalidades?
e primordialmente:
A etnomatimática dos carpinteiros é um instrumento vivo que eles usam, por exemplo, na resolução de problemas que ocorrem no seu trabalho quotidiano ou é meramente um tipo de receita que delimita suas opções?
Respostas a este tipo de pergunta nos levarão não somente a uma maior compreensão da etnomateámatica dos carpinteiros navais dos estaleiros de Abaetetuba, mas também a uma maior compreensão da etnomatemática em geral.
Finalmente, pretendemos transformar a etnomatemática dos carpinteiros navais numa base para a elaboração de intervenções pedagógicas para o ensino da matemática, designadas especificamente para o município de Abaetetuba.  Aqui podemos esclarecer uma colocação feita acima.  Afirmamos que se a atividade escolhida para informar a reforma pedagógica fosse restrita a um segmento isolado da população, o módulo de ensino baseado nesta atividade seria tão desconhecido que não desempenharia o seu propósito.  Isto não quer dizer que, de modo geral, o estudo da etnomatemática de culturas alheias à do aluno é inútil.  Muito pelo contrário, freqüentemente acontece que o estudo de culturas diferentes não somente desperte o interesse do aluno, mas também permite-lhe  ver aspetos da sua própria cultura que não conseguia enxergar claramente antes.  Assim, a etnomatemática de culturas diferentes poderia ser um instrumento de motivação para o estudo da matemática.  Isto posto, esclarecemos que o uso pedagógico da etnomatemática descrito nesta parágrafo, embora válido, simplesmente não contempla o propósito do presente projeto.
O nosso propósito é usar uma etnomatemática que já está presente na base cognitiva do aluno para estender os seus conhecimentos matemáticos e aprimorar suas habilidades.  A valorização desta etnomatemática também serve para aumentar o estudo da matemática, bem como para fortalecer o senso de identidade do aluno nele mesmo como uma pessoa autônoma e capaz.  Este propósito só pode ser alcançado porque, como já mencionamos, a cultura da construção de barcos permeia a comunidade, fazendo parte da base cognitiva da grande maioria dos cidadãos do município.

Primeiros Resultados
Foram visitados sete estaleiros do município de Abaetetuba a fim de esboçar preliminarmente os tipos de conteúdo matemático que são utilizados nos estaleiros, identificar problemas de ordem técnicas ou práticas que poderiam ser previstos e cuja importância poderia ser diminuída com a devida preparação, identificar o estaleiro a ser estudado em profundidade, obter a concordância deste para a realização da investigação, e começar a estabelecer relações amistosas com os carpinteiros.  Desta forma, já estamos de posse de algumas informações – registradas na introdução do presente trabalho – sobre a história dos estaleiros, o tamanho e finalidade dos barcos produzidos, os instrumentos que são usados na fabricação artesanal dos mesmos, e as principais características da organização do trabalho dos carpinteiros.
Os carpinteiros dispensam o uso de plantas como meios de orientação da prática da construção.  Quando necessário, fazem um esboço do desenho do barco a fim de dar ao comprador uma idéia do produto final.  As unidades de medidas mais usadas são palmos quando referem-se às dimensões das partes do barco ou dos nome das peças (popa, convés, quilha, etc.) e toneladas quando referem-se à capacidade.
Uma série de problemas já foram identificados como merecendo maior atenção.  Em primeiro lugar, a maioria das medidas são feitas de forma quase intuitiva.  O informante local, Mestre Zelito quando nos afirmou que

conforme a embarcação a gente coloca nos olhos, a gente colocou a peça e vai olhar, se ficou na posição a gente pára, o nosso serviço é praticamente os olhos, compasso essas coisa as vezes a gente usa, agora a gente sempre trabalha na armação do barco com o nível e vou lhe dizer francamente, eu tenho 47 anos de profissão sem parar de trabalhar , eu tomei nota das embarcações em um livro até 1.500 embarcações, eu já fiz umas duas mil e poucas embarcações.

Assim, faz-se necessário tentar compreender as atividades mentais envolvidas no “olhar” de carpinteiros como Mestre Zelito.  Há também um “jargão” próprio aos carpinteiros que tem de ser compreendido pelos pesquisadores, pois neste consiste a terminologia técnica da etnomatemática ora investigada.  Mencionamos ainda uma atividade interessante de classificação dos vários tipos de madeira usados na construção das embarcações.

Conclusão
Acreditamos que o presente projeto de pesquisa, como muitos outros do campo da etnomatemática, deverá levantar alguns questionamentos pertinentes à melhor compreensão da própria etnomatemática como uma ciência e como um fenômeno cultural.  Esta compreensão não virá de uma só vez com lucubrações a priori, mas somente paulatinamente com a reflexão sobre resultados ganhos penosamente no campo.  Esperamos que nosso estudo contribua com este processo.  Ainda registramos nossa crença, informada parcialmente pelo presente estudo, embora ele seja longe de ser concluído, na grande contribuição que a etnomatemática tem a dar para a educação.

Bibliografia
D’Ambrosio, Ubiratan. 1990. Etnomatemática. São Paulo, Editora Ática.
Ferreira, Eduardo Sebastiani. 1997. Etnomatemática: Uma Proposta Metodológica. Rio de Janeiro, MEM/USU.
Powell, Arthur B. e Marilyn Frankenstein (org.). 1997. Ethnomathematics: Challenging Eurocentrism in Mathematics Education. Albany, N.Y., State University of New York Press.