Resumo
O presente trabalho descreve uma investigação, ainda
em andamento, da etnomatemática de carpinteiros navais no município
paraense de Abaetetuba. A investigação visa uma descrição
minuciosa do processo de construção dos barcos, bem como
a descrição e análise dos conceitos e procedimentos
matemáticos utilizados no referido processo. O estudo da mencionada
etnomatemática ainda pretende servir como um embasamento para o
desenvolvimento de intervenções alternativas para o ensino
da matemática neste município.
Palavras-chave: etnomatemática paraense; carpinteiros
navais; etnomatemática e educação.
Introdução
Os primeiros mestres artesãos a organizarem estaleiros na cidade
de Abaetetuba vieram dos sítios – isto é, as ilhas que fazem
parte do referido município – por volta da década de 1970
e ainda hoje continuam a tradição que trouxeram destes lugares
da construção de barcos. Nos próprios sítios,
porém, mantém-se estas atividades com muita dificuldade porque
os estaleiros lá situados não possuem equipamentos de corte
de madeira. Embora os estaleiros da cidade de Abaetetuba possuam
tais instrumentos, fato que reduz consideravelmente o tempo de construção
e portanto aumenta a produtividade, o manuseio das peças (medições,
encaixes, etc.) continua sendo feita de forma artesanal. A maioria
dos barcos construídos é para a atividade pesqueira e tem
uma capacidade que varia de 10 a 50 toneladas. Além dos carpinteiros,
há “mestres calafates”, ou seja, profissionais especializados em
calafetar as embarcações (fazer a vedação do
barco); não fazem parte permanente dos estaleiros, sendo contratados
quando há necessidade. Recebem encomendas de todo o Brasil
e dos países vizinhos.
Os mestres mais antigos contam que a técnica da construção
foi-lhes ensinada por parentes (pai, tio, padrinho), com precariedade de
ferramentas, e baseada na transmissão oral. De fato, a ferramenta
usada com mais freqüência é o nível, embora o
compasso, o esquadro e a trena são também utilizados algumas
vezes. Ainda mais, o grau de escolaridade dos mestres artesãos,
quando há, só chega ás primeiras séries do
ensino fundamental. Ainda hoje, os jovens que buscam aprender a profissão
são ensinados através do sistema de aprendizes, mas, em contraste
ao padrão histórico, os mestres geralmente não são
parentes e, conseqüentemente, os aprendizes formam grupos de profissionais
que costumam a trabalhar por empreita.
Objetivos
Os objetivos do presente estudo são:
Uma descrição geral do município de Abaetetuba,
detendo-se mormente sobre a rede pública de escolas de ensino fundamental
e médio e sua relação com os estaleiros do município.
Uma descrição minuciosa do processo artesanal da construção
de um barco num estaleiro do município de Abaetetuba.
A identificação e descrição dos conceitos
e procedimentos matemáticos utilizados no referido processo.
A análise dos conceitos e procedimentos matemáticos identificados,
tomando como referência tanto a matemática acadêmica
quanto os propósitos para os quais os mesmos são utilizados.
A elaboração de uma proposta de ensino da matemática
baseada na etnomatemática dos carpinteiros navais da região.
A implementação e testagem da mencionada proposta.
Desenvolvimento do Projeto
Podemos caraterizar o presente projeto como tendo a seguinte finalidade
pedagógica: a elaboração de uma estratégia
para o ensino da matemática nas escolas do município de Abaetetuba
voltada para as caraterísticas do próprio município.
Para tanto, voltamos para a etnomatemática da região para
informar as táticas a serem utilizadas na implementação
da referida estratégia. Não obstante, seria obviamente
impraticável tentar fazer um levantamento exaustivo de todas as
etnomatemáticas que podem ser encontradas no município para
a inclusão no projeto. Assim sendo, escolhemos uma atividade
marcante – a construção de barcos – para ser o foco do estudo.
Há, é claro, duas tarefas propedêuticas à
supracitada finalidade: um diagnóstico do ensino nas escolas do
município e o esclarecimento das relações existentes
entre os moradores da região e a atividade escolhida. Faz-se
necessário, portanto, ensaiar uma descrição geral
do município de Abaetetuba em que seu sistema de ensino e as suas
relações com os estaleiros serão detalhados.
Em primeiro lugar, se fosse o caso de que o ensino da matemática
nas escolas do município estivesse sem problemas, não seria
necessário empreender um projeto de reforma do porte do presente
plano. Além disso, em segundo lugar, se a atividade escolhida
para informar a reforma pedagógica fosse restrita a um segmento
isolado da população ou se fosse investida de uma carga emotiva
de antipatia – veja, por exemplo, o caso dos antigos açougueiros
japoneses –, o módulo de ensino baseado nesta atividade seria tão
desconhecido ou tão desprezado que não desempenharia o seu
propósito. O segundo autor tem convivido com a comunidade
ora investigada o suficiente para concluirmos de que há necessidade
para mudanças sérias nas escolas referente ao ensino da matemática
e de que a cultura da construção de barcos não somente
permeia o município, mas também é vista como uma atividade
econômica importante que até ajuda determinar a própria
identidade do município. A referida convivência, é
claro, não suprime a necessidade de fazer a avaliação
científica proposta. Não obstante, é uma indicação
suficiente da adequação do presente projeto para que a avaliação
científica dos fatores acima indicados e a investigação
da etnomatemática dos carpinteiros navais prosseguem em paralelo.
Um importante passo na descrição da etnomatemática
dos carpinteiros navais dos estaleiros de Abaetetuba será a descrição
minuciosa da construção de um barco dos estágios iniciais
até a conclusão do empreendimento. Será somente
desta maneira que a importância e o verdadeiro papel da matemática
na referida atividade serão trazidos à tona para análise
posterior. Já foi escolhido um estaleiro onde o estudo será
efetuado e também já foi obtida a concordância do mesmo
para a realização da investigação. Além
da observação enriquecida pelas explicações
de um informante local, pretendemos registrar as várias etapas da
construção por meios eletrônicos para facilitar a análise
posterior e a eventual elaboração de módulos pedagógicos.
O informante local é um carpinteiro aposentado que, não obstante,
ainda aceita várias empreitas de vez em quando e que se prontificou
a nos ajudar compreender os vários passos da construção.
De posse da descrição detalhada do processo da construção
dos barcos, poderemos identificar os conceitos e procedimentos matemáticos
utilizados no mesmo. O importante nesta fase da nossa investigação
é permitir que os aspetos matemáticos emirjam dos dados colhidos.
Em estudos etnomatemáticos, é muito fácil cair numa
arapuca armada pela própria estrutura do conhecimento matemático.
Este é tão abstrato que é facilmente aplicável
a quase qualquer atividade humana de uma forma ou outra. Assim sendo,
o pesquisador poderia usar seus próprios conhecimentos matemáticos,
de forma inconsciente, para modelar a atividade estudada e, por conseguinte,
identificar o modelo com a etnomatemática procurada. Deve
ser evidente, porém, que a etnomatemática presa nesta arapuca
é a do pesquisador e não a da comunidade a ser estudada.
Nosso propósito é identificar os conceitos matemáticos
usados pelos carpinteiros navais sem impor nossos conceitos na descrição,
embora reconhecemos que talvez esta seja, em última análise,
uma tarefa impossível. Pretendemos, portanto, validar a nossa
descrição com os próprios carpinteiros.
Depois de identificar os conceitos e procedimentos matemáticos
que são utilizados pelos carpinteiros navais da cidade de Abaetetuba,
faremos uma análise dos mesmos. A análise terá
dois aspetos. Primeiro, queremos detalhar as relações
da etnomatemática dos carpinteiros com a matemática acadêmica,
especialmente na forma que se toma na rede escolar da comunidade.
Esta parte da análise será especialmente importante para
a realização da finalidade pedagógica do projeto,
pois identificará os lugares dentro do currículo onde abordagens
alternativas informadas pelo material colhido são apropriadas, bem
como o lugares que merecem mudanças curriculares. Segundo,
queremos ainda investigar o papel social da etnomatemática do carpinteiros
dentro da comunidade. Pretendemos responder às tais perguntas
como:
Quais são as finalidades da etnomatemática identificada?
É eficaz na realização destas finalidades?
e primordialmente:
A etnomatimática dos carpinteiros é um instrumento vivo
que eles usam, por exemplo, na resolução de problemas que
ocorrem no seu trabalho quotidiano ou é meramente um tipo de receita
que delimita suas opções?
Respostas a este tipo de pergunta nos levarão não somente
a uma maior compreensão da etnomateámatica dos carpinteiros
navais dos estaleiros de Abaetetuba, mas também a uma maior compreensão
da etnomatemática em geral.
Finalmente, pretendemos transformar a etnomatemática dos carpinteiros
navais numa base para a elaboração de intervenções
pedagógicas para o ensino da matemática, designadas especificamente
para o município de Abaetetuba. Aqui podemos esclarecer uma
colocação feita acima. Afirmamos que se a atividade
escolhida para informar a reforma pedagógica fosse restrita a um
segmento isolado da população, o módulo de ensino
baseado nesta atividade seria tão desconhecido que não desempenharia
o seu propósito. Isto não quer dizer que, de modo geral,
o estudo da etnomatemática de culturas alheias à do aluno
é inútil. Muito pelo contrário, freqüentemente
acontece que o estudo de culturas diferentes não somente desperte
o interesse do aluno, mas também permite-lhe ver aspetos da
sua própria cultura que não conseguia enxergar claramente
antes. Assim, a etnomatemática de culturas diferentes poderia
ser um instrumento de motivação para o estudo da matemática.
Isto posto, esclarecemos que o uso pedagógico da etnomatemática
descrito nesta parágrafo, embora válido, simplesmente não
contempla o propósito do presente projeto.
O nosso propósito é usar uma etnomatemática que
já está presente na base cognitiva do aluno para estender
os seus conhecimentos matemáticos e aprimorar suas habilidades.
A valorização desta etnomatemática também serve
para aumentar o estudo da matemática, bem como para fortalecer o
senso de identidade do aluno nele mesmo como uma pessoa autônoma
e capaz. Este propósito só pode ser alcançado
porque, como já mencionamos, a cultura da construção
de barcos permeia a comunidade, fazendo parte da base cognitiva da grande
maioria dos cidadãos do município.
Primeiros Resultados
Foram visitados sete estaleiros do município de Abaetetuba a
fim de esboçar preliminarmente os tipos de conteúdo matemático
que são utilizados nos estaleiros, identificar problemas de ordem
técnicas ou práticas que poderiam ser previstos e cuja importância
poderia ser diminuída com a devida preparação, identificar
o estaleiro a ser estudado em profundidade, obter a concordância
deste para a realização da investigação, e
começar a estabelecer relações amistosas com os carpinteiros.
Desta forma, já estamos de posse de algumas informações
– registradas na introdução do presente trabalho – sobre
a história dos estaleiros, o tamanho e finalidade dos barcos produzidos,
os instrumentos que são usados na fabricação artesanal
dos mesmos, e as principais características da organização
do trabalho dos carpinteiros.
Os carpinteiros dispensam o uso de plantas como meios de orientação
da prática da construção. Quando necessário,
fazem um esboço do desenho do barco a fim de dar ao comprador uma
idéia do produto final. As unidades de medidas mais usadas
são palmos quando referem-se às dimensões das partes
do barco ou dos nome das peças (popa, convés, quilha, etc.)
e toneladas quando referem-se à capacidade.
Uma série de problemas já foram identificados como merecendo
maior atenção. Em primeiro lugar, a maioria das medidas
são feitas de forma quase intuitiva. O informante local, Mestre
Zelito quando nos afirmou que
conforme a embarcação a gente coloca nos olhos, a gente colocou a peça e vai olhar, se ficou na posição a gente pára, o nosso serviço é praticamente os olhos, compasso essas coisa as vezes a gente usa, agora a gente sempre trabalha na armação do barco com o nível e vou lhe dizer francamente, eu tenho 47 anos de profissão sem parar de trabalhar , eu tomei nota das embarcações em um livro até 1.500 embarcações, eu já fiz umas duas mil e poucas embarcações.
Assim, faz-se necessário tentar compreender as atividades mentais envolvidas no “olhar” de carpinteiros como Mestre Zelito. Há também um “jargão” próprio aos carpinteiros que tem de ser compreendido pelos pesquisadores, pois neste consiste a terminologia técnica da etnomatemática ora investigada. Mencionamos ainda uma atividade interessante de classificação dos vários tipos de madeira usados na construção das embarcações.
Conclusão
Acreditamos que o presente projeto de pesquisa, como muitos outros
do campo da etnomatemática, deverá levantar alguns questionamentos
pertinentes à melhor compreensão da própria etnomatemática
como uma ciência e como um fenômeno cultural. Esta compreensão
não virá de uma só vez com lucubrações
a priori, mas somente paulatinamente com a reflexão sobre resultados
ganhos penosamente no campo. Esperamos que nosso estudo contribua
com este processo. Ainda registramos nossa crença, informada
parcialmente pelo presente estudo, embora ele seja longe de ser concluído,
na grande contribuição que a etnomatemática tem a
dar para a educação.
Bibliografia
D’Ambrosio, Ubiratan. 1990. Etnomatemática. São Paulo,
Editora Ática.
Ferreira, Eduardo Sebastiani. 1997. Etnomatemática: Uma Proposta
Metodológica. Rio de Janeiro, MEM/USU.
Powell, Arthur B. e Marilyn Frankenstein (org.). 1997. Ethnomathematics:
Challenging Eurocentrism in Mathematics Education. Albany, N.Y., State
University of New York Press.