Resumo
O trabalho discute a articulação entre o conhecimento
matemático escolar e o conhecimento matemático construído
ou mobilizado no chão-de-fábrica e os significados atribuídos
à escolarização e à aprendizagem na fábrica
por trabalhadores metalúrgicos.
Os dados são coletados através de seis entrevistas com
trabalhadores freqüentando cursos de Técnico em Eletrônica
e em Mecânica em escola de nível médio.
A análise destaca o papel da matemática escolar na relação
com as máquinas automatizadas e algumas qualificações
tácitas envolvidas na gestão da produção enxuta.
Palavras-chave: trabalho, educação matemática e qualificação.
Introdução
Os processos de reorganização do trabalho em empresas
do setor industrial, disseminados e intensificados no Brasil nos anos 90,
têm suscitado estudos e debates sobre as novas demandas de qualificação
dos trabalhadores. A atribuição de novas responsabilidades
aos trabalhadores do chão-de-fábrica e a adoção
de novas formas de participação e gestão do trabalho
são acompanhadas de discursos que sugerem uma tendência generalizada
de elevação das demandas de qualificação e,
em particular, de escolarização dos trabalhadores.
O conhecimento matemático é reiteradamente referido nas
descrições dessas novas qualificações, menos
diretamente quando mencionam a capacidade de abstração, o
raciocínio lógico, e a capacidade de operar com símbolos
ou mais explicitamente quando mencionam a habilidade para organizar e analisar
problemas quantitativos, interpretar números ou fazer medições
(Fogaça, 1993). Essas habilidades, segundo alguns autores e no discurso
de empresários e governo, seriam promovidas pela escolarização
prolongada. Ou, reciprocamente, a ausência dessas qualificações
poderia ser atribuída à baixa escolaridade dos trabalhadores
do setor industrial.
O conhecimento antes mobilizado por ferramenteiros, torneiros-mecânicos
ou frezadores na preparação e ajuste das máquinas,
substituídos pela programação das máquinas
de controle numérico computadorizado, não aparece nesses
discursos. As mudanças nas qualificações são
freqüentemente descritas como a substituição da ênfase
na habilidade manual pela ênfase na autonomia intelectual dos trabalhadores.
Estudos empíricos realizados nos locais de trabalho, contudo,
têm indicado a heterogeneidade dos processos de reorganização
entre os diversos ramos da produção e no interior de cada
um deles: “os processos em curso são muito mais complexos e, ainda,
praticamente obscuros” (Moraes, 2000). A exigência de maior escolaridade
pode estar mais relacionada ao poder de contratação das empresas
num quadro de contração do emprego do que aos conhecimentos
mobilizados no processo produtivo (Deddecca, 1998). Para uma parcela importante
dos trabalhadores, a intensificação do trabalho não
envolve maior complexidade das tarefas, mas apenas acúmulo de funções
antes desempenhadas por vários colegas.
Para a etnomatemática, o debate sobre as qualificações
suscita um conjunto de questões relativas à matemática
praticada pelos trabalhadores na fábrica. Quais são os conhecimentos
matemáticos mobilizados pelos trabalhadores no processo produtivo
e como o recurso a esses conhecimentos é explicitado ou não
pelos trabalhadores e gestores do trabalho? Como a matemática
escolar é integrada ou reelaborada na prática cotidiana dos
trabalhadores? Como os saberes construídos no exercício do
trabalho são descartados ou incorporados no processo produtivo reorganizado?
A atenção a essas questões exigiria a constituição
de um amplo programa de investigação, que considerasse a
heterogeneidade anteriormente descrita e os estudos realizados e em curso
nas áreas da Sociologia, Economia e Engenharia do Trabalho.
Neste trabalho, pretendo contribuir para a articulação
desse programa, propondo alguns caminhos para a pesquisa sugeridos por
um estudo exploratório sobre os nexos entre a matemática
aprendida na escola e a matemática mobilizada na fábrica,
segundo as falas de trabalhadores metalúrgicos freqüentando
cursos de Técnico em Eletrônica e em Mecânica em escola
de nível médio.
Objetivos
Este trabalho discute, de forma preliminar e exploratória, a
articulação entre o conhecimento matemático escolar
e o conhecimento matemático construído ou mobilizado no chão-de-fábrica
no contexto da reorganização do trabalho na indústria
metalúrgica. Examina os significados atribuídos à
escolarização e à aprendizagem na fábrica por
trabalhadores metalúrgicos freqüentando cursos de Técnico
em Eletrônica e em Mecânica em escola de nível médio,
a partir da fala dos próprios trabalhadores.
Procura, desse modo, contribuir para a discussão do que seriam
os novos saberes requeridos pelo processo produtivo, do lugar ocupado pela
matemática escolar na prática cotidiana do chão-de-fábrica
e na trajetória de formação profissional dos trabalhadores
metalúrgicos.
Trabalhadores metalúrgicos de volta à escola
A pesquisa cujos resultados serão aqui relatados teve origem
em visitas a uma escola técnica de Porto Alegre que viabilizou,
através de sua direção e coordenação
pedagógica, o contato com alunos dos cursos de Técnico em
Mecânica e Técnico em Eletrônica.
O objetivo inicial, de entrevistar alunos em fase de estágio
na empresa para o estudo do impacto da vivência do trabalho sobre
a aprendizagem escolar, foi substituído pelo interesse de investigar
a volta à escola de trabalhadores metalúrgicos, que compunham
uma parcela significativa das turmas dos cursos técnicos. Dentre
eles, o grupo mais numeroso era composto de trabalhadores de uma indústria
de autopeças situada na Grande Porto Alegre (empresa X) que implementava
uma política de investimento na escolarização e qualificação
de seus funcionários.
Foram entrevistados, no final de 1997, seis trabalhadores que desempenhavam
diferentes funções no chão-de-fábrica da
empresa X e que freqüentavam o segundo ano do curso de Técnico
em Eletrônica ou o terceiro ano do curso de Técnico em Mecânica.
Três deles eram responsáveis pela coordenação
de linha ou mini-fábrica; um era técnico em manutenção
e dois eram operadores de máquina. Tendo já concluído
o ensino médio em outras escolas, esses trabalhadores voltavam à
escola por exigência de qualificação e com incentivo
da empresa através do pagamento das mensalidades. Embora desobrigados
legalmente de fazê-lo, freqüentavam, por solicitação
da escola, aulas de Matemática, Física e Sociologia.
Os trabalhadores estudantes foram entrevistados segundo um roteiro
semi-estruturado em torno dos temas: funções desempenhadas
desde o ingresso na empresa, experiência profissional anterior, formação
profissional e escolarização, aprendizagens e problemas vivenciados
no trabalho, expectativas, aprendizagens e problemas vivenciados na escola,
com destaque para as vivências envolvendo conhecimento e prática
matemática, articulações entre estudo e trabalho,
expectativas de continuidade de estudos ou da formação profissional,
sugestões relativas aos currículos dos cursos técnicos.
Foram entrevistados também, em 1998, o coordenador do centro
de treinamento da empresa e dois professores do curso de Técnico
em Eletrônica.
Descrevo a seguir alguns resultados preliminares obtidos pela análise
das entrevistas, confrontadas com dados já publicados de pesquisas
na área do trabalho.
A matemática das máquinas
Um primeiro dado que aparece nas falas dos trabalhadores estudantes
é o da crescente ocupação do espaço da fábrica
pelas máquinas. É através das máquinas que
eles avaliam a dimensão de uma linha de montagem. Elas ocupam cada
vez mais espaço físico e incorporam ou eliminam tarefas antes
exercidas pelos trabalhadores. Uma primeira conseqüência da
automação é a exclusão dos menos escolarizados:
“Meu pai trabalhava lá. (...) A função que ele
fazia era a mais simples que tinha lá, era só lixar as peças,
a face delas, e essa operação, eles foram melhorando os tornos,
e hoje já não é nem feita mais essa operação.
E pelo nível de estudo que ele tinha, eles acharam que podia ser
uma pessoa que não ia se adequar num máquina CNC (...). Ele
poderia ter mais dificuldade de aprender, porque muitas coisas ele teria
que decorar. Porque hoje é essencial tu saber pelo menos ler, hoje
as máquinas com CNC, ela pára, e te dá tudo escrito
em tela.”
As máquinas também aparecem como as principais responsáveis
pelas imprevisibilidades do processo produtivo, que exigem tomada de decisão
pelos trabalhadores do chão-de-fábrica:
“Aí dá correria. Quando a máquina quebra...
aí é que entra a minha função. (...)O que eu
posso resolver, pequenos reparos, regulagens, correção de
programa, isso eu faço.”;
“E se ela não está conseguindo manter aquela medida ali,
daí o preparador vai ver se é problema de regulagem, problema
de pressão, de válvula, ou se é folga, ou se é
um problema eletrônico de compensação, ou se
é o rebolo adequado. Têm várias coisas que podem acontecer.”
A matemática escolar aparece como instrumento necessário
à manutenção e ao controle das máquinas, que
exigem crescentemente a formação em eletrônica, além
dos conhecimentos de mecânica, hidráulica, pneumática.
O conhecimento construído através da experimentação,
da tentativa, do ajuste, dá cada vez mais lugar ao conhecimento
validado pela teoria:
“É muito cálculo, é tudo baseado em cálculo.
Tudo. É cálculo pro gerador, cálculo pro resistor.(...)
É uma matéria que tu não enxergas, a energia tu não
enxergas, a mecânica pra mim já era mais fácil.”
No curso de Eletrônica, o cálculo se opõe ao erro
que pode causar até a quebra de um motor. O erro é algo a
ser antecipado e evitado:
“Eles sentem vergonha quando deixam queimar o transístor. Quem
bota em curto vira o ‘barbeirão’.” (professor)
A matemática escolar aparece, também, como possibilidade
de compreensão das condições e limites de operação
das máquinas:
“Tem uma máquina que tem um cilindro. Esse cilindro ele tem
um suporte que é ligado à parte da máquina que desce
pra cortar uma peça. Ele tem que ter um esforço de tração
que é superior ao tipo de aço de que é feita a haste
do cilindro. Porque se o esforço da haste for menor do que ele,
a haste com certeza vai quebrar. (...) Porque quando eu cheguei na empresa
eu via, assim, catálogos de máquinas e fornecedores que eu
não entendia. Aí depois aqui no colégio com essa parte
teórica eu passei a entender.”
A gestão da variabilidade
A descrição das tarefas desempenhadas pelos coordenadores
de linha aponta, por outro lado, para conhecimentos matemáticos
mobilizados no que tem sido descrito como a gestão da variabilidade
do processo produtivo, que pressupõe, segundo Salerno (1994), a
representação mental do processo.
Os depoimentos dão uma idéia da coordenação
necessária e da complexidade das variáveis envolvidas numa
tomada de decisão sobre um fluxo de linha ou uma prioridade de manutenção:
“Então nosso objetivo é atender à montagem, sendo
que não adianta eu pegar e largar o meu componente pra um determinado
tipo de carro, e chega lá na montagem, ele tem um outro componente
só do outro carro. Não vai montar. Tem que ter um conjunto.
É o sincronismo que a gente tanto luta pra trabalhar em sincronismo
lá. (...) Não pode chegar desproporcional ou chegar dez de
um modelo e não chegar nada do outro. No caso, o produto fica parado
lá, gera custo, e um transtorno.”
“Vamos dizer, hoje eu tenho que entregar sete tipos de peças,
no caso. (...) Só que eu tenho condições de fazer
cinco tipos. Daí eu vou ter que fazer tantas peças daquela
ali, pra depois mudar pra outra. Só que pode acontecer, em célula,
às vezes, de quebrar uma máquina. Daí já não
vai ser mais cinco. Vai ter só quatro células pra tu fazeres
aquelas sete. E tu tens que fazer aquele número que eles querem.”
“Daí tu vais ter que ver qual é mais prioridade pra montagem,
vamos dizer, uma máquina pode trazer atraso pra montagem. (...)
Daí a gente sempre tem que ver qual é a máquina que
é mais crítica pra ser arrumada primeiro.”
Os depoimentos desses coordenadores, trabalhadores que ingressaram
na fábrica como operadores de máquina, indicam uma aprendizagem
realizada no exercício do trabalho, sob a pressão do cumprimento
das metas estabelecidas pela engenharia de processo. Em contraste, os depoimentos
dos operadores de máquina sugeria um trabalho rotineiro e de pouca
autonomia. O mesmo contraste aparece quando falam dos nexos entre escolarização
e trabalho:
“Aqui a matemática é toda voltada pra eletrônica.
(...) por exemplo, a gente estuda o capacitor em eletrônica e em
física ele estava ensinando o cálculo da estrutura do capacitor.
(...) Só que a eletrônica pega e usa um componente na utilização
prática e lá ele mostra exatamente a estrutura do componente,
como ele é feito, como ele funciona, como foi projetado. Então
dá para captar melhor.” (coordenador de mini-fábrica);
“Tem laboratório, mas é muito pouco tempo. É mais
teoria. E a teoria não ajuda muito. Chega na hora do laboratório,
é bem diferente. O cara mexer lá, aprender bem lá
com o equipamento, é bem diferente.” (operador).
Os depoimentos indicam as potencialidades da educação
profissional articulada ao exercício do trabalho complexo e, ao
mesmo tempo, os limites da educação escolar frente à
imposição do trabalho rotineiro. O estudo aponta, também,
para a importância da articulação entre formação
geral e formação técnica na escola.
A continuidade de estudos em nível superior aparece como possibilidade
para esses trabalhadores. Entretanto, mais do que direito, a escolarização
aparece como imposição, condição de permanência
no cargo e na empresa, prolongamento de jornada e aumento da produtividade
pelo acúmulo de funções e qualificações
adquiridas.
Bibliografia
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90”. In: Revista Soc. Bras. Economia Política, Rio de Janeiro, 3,
dez. 1998.
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