CO30: Matemática na escola e na fábrica por trabalhadores metalúrgicos
  Elisabete Zardo Búrigo

Resumo
O trabalho discute a articulação entre o conhecimento matemático escolar e o conhecimento matemático construído ou mobilizado no chão-de-fábrica e os significados atribuídos à escolarização e à aprendizagem na fábrica por trabalhadores metalúrgicos.
Os dados são coletados através de seis entrevistas com trabalhadores freqüentando cursos de Técnico em Eletrônica e em Mecânica em escola de nível médio.
A análise destaca o papel da matemática escolar na relação com as máquinas automatizadas e algumas qualificações tácitas envolvidas na gestão da produção enxuta.

Palavras-chave: trabalho, educação matemática e qualificação.

Introdução
Os processos de reorganização do trabalho em empresas do setor industrial, disseminados e intensificados no Brasil nos anos 90, têm suscitado estudos e debates sobre as novas demandas de qualificação dos trabalhadores. A atribuição de novas responsabilidades aos trabalhadores do chão-de-fábrica e a adoção de novas formas de participação e gestão do trabalho são acompanhadas de discursos que sugerem uma tendência generalizada de elevação das demandas de qualificação e, em particular, de escolarização dos trabalhadores.
O conhecimento matemático é reiteradamente referido nas descrições dessas novas qualificações, menos diretamente quando mencionam a capacidade de abstração, o raciocínio lógico, e a capacidade de operar com símbolos ou mais explicitamente quando mencionam a habilidade para organizar e analisar problemas quantitativos, interpretar números ou fazer medições (Fogaça, 1993). Essas habilidades, segundo alguns autores e no discurso de empresários e governo, seriam promovidas pela escolarização prolongada. Ou, reciprocamente, a ausência dessas qualificações poderia ser atribuída à baixa escolaridade dos trabalhadores do setor industrial.
O conhecimento antes mobilizado por ferramenteiros, torneiros-mecânicos ou frezadores na preparação e ajuste das máquinas, substituídos pela programação das máquinas de controle numérico computadorizado, não aparece nesses discursos.  As mudanças nas qualificações são freqüentemente descritas como a substituição da ênfase na habilidade manual pela ênfase na autonomia intelectual dos trabalhadores.
Estudos empíricos realizados nos locais de trabalho, contudo, têm indicado a heterogeneidade dos processos de reorganização entre os diversos ramos da produção e no interior de cada um deles: “os processos em curso são muito mais complexos e, ainda, praticamente obscuros” (Moraes, 2000). A exigência de maior escolaridade pode estar mais relacionada ao poder de contratação das empresas num quadro de contração do emprego do que aos conhecimentos mobilizados no processo produtivo (Deddecca, 1998). Para uma parcela importante dos trabalhadores, a intensificação do trabalho não envolve maior complexidade das tarefas, mas apenas acúmulo de funções antes desempenhadas por vários colegas.
Para a etnomatemática, o debate sobre as qualificações suscita um conjunto de questões relativas à matemática praticada pelos trabalhadores na fábrica. Quais são os conhecimentos matemáticos mobilizados pelos trabalhadores no processo produtivo e como o recurso a esses conhecimentos é explicitado ou não pelos trabalhadores e gestores do trabalho?  Como a matemática escolar é integrada ou reelaborada na prática cotidiana dos trabalhadores? Como os saberes construídos no exercício do trabalho são descartados ou incorporados no processo produtivo reorganizado?
A atenção a essas questões exigiria a constituição de um amplo programa de investigação, que considerasse a heterogeneidade anteriormente descrita e os estudos realizados e em curso nas áreas da Sociologia, Economia e Engenharia do Trabalho.
Neste trabalho, pretendo contribuir para a articulação desse programa, propondo alguns caminhos para a pesquisa sugeridos por um estudo exploratório sobre os nexos entre a matemática aprendida na escola e a matemática mobilizada na fábrica, segundo as falas de trabalhadores metalúrgicos freqüentando cursos de Técnico em Eletrônica e em Mecânica em escola de nível médio.

Objetivos
Este trabalho discute, de forma preliminar e exploratória, a articulação entre o conhecimento matemático escolar e o conhecimento matemático construído ou mobilizado no chão-de-fábrica no contexto da reorganização do trabalho na indústria metalúrgica.  Examina os significados atribuídos à escolarização e à aprendizagem na fábrica por trabalhadores metalúrgicos freqüentando cursos de Técnico em Eletrônica e em Mecânica em escola de nível médio, a partir da fala dos próprios trabalhadores.
Procura, desse modo, contribuir para a discussão do que seriam os novos saberes requeridos pelo processo produtivo, do lugar ocupado pela matemática escolar na prática cotidiana do chão-de-fábrica e na trajetória de formação profissional dos trabalhadores metalúrgicos.

Trabalhadores metalúrgicos de volta à escola
A pesquisa cujos resultados serão aqui relatados teve origem em visitas a uma escola técnica de Porto Alegre que viabilizou, através de sua direção e coordenação pedagógica, o contato com alunos dos cursos de Técnico em Mecânica e Técnico em Eletrônica.
O objetivo inicial, de entrevistar alunos em fase de estágio na empresa para o estudo do impacto da vivência do trabalho sobre a aprendizagem escolar, foi substituído pelo interesse de investigar a volta à escola de trabalhadores metalúrgicos, que compunham uma parcela significativa das turmas dos cursos técnicos. Dentre eles, o grupo mais numeroso era composto de trabalhadores de uma indústria de autopeças situada na Grande Porto Alegre (empresa X) que implementava uma política de investimento na escolarização e qualificação de seus funcionários.
Foram entrevistados, no final de 1997, seis trabalhadores que desempenhavam diferentes funções no chão-de-fábrica da  empresa X e que freqüentavam o segundo ano do curso de Técnico em Eletrônica ou o terceiro ano do curso de Técnico em Mecânica. Três deles eram responsáveis pela coordenação de linha ou mini-fábrica; um era técnico em manutenção e dois eram operadores de máquina. Tendo já concluído o ensino médio em outras escolas, esses trabalhadores voltavam à escola por exigência de qualificação e com incentivo da empresa através do pagamento das mensalidades. Embora desobrigados legalmente de fazê-lo, freqüentavam, por solicitação da escola, aulas de Matemática, Física e Sociologia.
Os trabalhadores estudantes foram entrevistados segundo um roteiro semi-estruturado em torno dos temas: funções desempenhadas desde o ingresso na empresa, experiência profissional anterior, formação profissional e escolarização, aprendizagens e problemas vivenciados no trabalho, expectativas, aprendizagens e problemas vivenciados na escola, com destaque para as vivências envolvendo conhecimento e prática matemática, articulações entre estudo e trabalho, expectativas de continuidade de estudos ou da formação profissional, sugestões relativas aos currículos dos cursos técnicos.
Foram entrevistados também, em 1998, o coordenador do centro de treinamento da empresa e dois professores do curso de Técnico em Eletrônica.
Descrevo a seguir alguns resultados preliminares obtidos pela análise das entrevistas, confrontadas com dados já publicados de pesquisas na área do trabalho.

A matemática das máquinas
Um primeiro dado que aparece nas falas dos trabalhadores estudantes é o da crescente ocupação do espaço da fábrica pelas máquinas. É através das máquinas que eles avaliam a dimensão de uma linha de montagem. Elas ocupam cada vez mais espaço físico e incorporam ou eliminam tarefas antes exercidas pelos trabalhadores. Uma primeira conseqüência da automação é a exclusão dos menos escolarizados:
“Meu pai trabalhava lá. (...) A função que ele fazia era a mais simples que tinha lá, era só lixar as peças, a face delas, e essa operação, eles foram melhorando os tornos, e hoje já não é nem feita mais essa operação. E pelo nível de estudo que ele tinha, eles acharam que podia ser uma pessoa que não ia se adequar num máquina CNC (...). Ele poderia ter mais dificuldade de aprender, porque muitas coisas ele teria que decorar. Porque hoje é essencial tu saber pelo menos ler, hoje as máquinas com CNC, ela pára, e te dá tudo escrito em tela.”
As máquinas também aparecem como as principais responsáveis pelas imprevisibilidades do processo produtivo, que exigem tomada de decisão pelos trabalhadores do chão-de-fábrica:
 “Aí dá correria. Quando a máquina quebra... aí é que entra a minha função. (...)O que eu posso resolver, pequenos reparos, regulagens, correção de programa, isso eu faço.”;
“E se ela não está conseguindo manter aquela medida ali, daí o preparador vai ver se é problema de regulagem, problema de pressão, de válvula, ou se é folga, ou se é um problema eletrônico de compensação, ou  se é o rebolo adequado. Têm várias coisas que podem acontecer.”
 A matemática escolar aparece como instrumento necessário à manutenção e ao controle das máquinas, que exigem crescentemente a formação em eletrônica, além dos conhecimentos de mecânica, hidráulica, pneumática.
O conhecimento construído através da experimentação, da tentativa, do ajuste, dá cada vez mais lugar ao conhecimento validado pela teoria:
“É muito cálculo, é tudo baseado em cálculo. Tudo. É cálculo pro gerador, cálculo pro resistor.(...) É uma matéria que tu não enxergas, a energia tu não enxergas, a mecânica pra mim já era mais fácil.”
No curso de Eletrônica, o cálculo se opõe ao erro que pode causar até a quebra de um motor. O erro é algo a ser antecipado e evitado:
“Eles sentem vergonha quando deixam queimar o transístor. Quem bota em curto vira o ‘barbeirão’.” (professor)
A matemática escolar aparece, também, como possibilidade de compreensão das condições e limites de operação das máquinas:
“Tem uma máquina que tem um cilindro. Esse cilindro ele tem um suporte que é ligado à parte da máquina que desce pra cortar uma peça. Ele tem que ter um esforço de tração que é superior ao tipo de aço de que é feita a haste do cilindro. Porque se o esforço da haste for menor do que ele, a haste com certeza vai quebrar. (...) Porque quando eu cheguei na empresa eu via, assim, catálogos de máquinas e fornecedores que eu não entendia. Aí depois aqui no colégio com essa parte teórica eu passei a entender.”

A gestão da variabilidade

A descrição das tarefas desempenhadas pelos coordenadores de linha aponta, por outro lado, para conhecimentos matemáticos mobilizados no que tem sido descrito como a gestão da variabilidade do processo produtivo, que pressupõe, segundo Salerno (1994), a representação mental do processo.
Os depoimentos dão uma idéia da coordenação necessária e da complexidade das variáveis envolvidas numa tomada de decisão sobre um fluxo de linha ou uma prioridade de manutenção:
“Então nosso objetivo é atender à montagem, sendo que não adianta eu pegar e largar o meu componente pra um determinado tipo de carro, e chega lá na montagem, ele tem um outro componente só do outro carro. Não vai montar. Tem que ter um conjunto. É o sincronismo que a gente tanto luta pra trabalhar em sincronismo lá. (...) Não pode chegar desproporcional ou chegar dez de um modelo e não chegar nada do outro. No caso, o produto fica parado lá, gera custo, e um transtorno.”
“Vamos dizer, hoje eu tenho que entregar sete tipos de peças, no caso. (...) Só que eu tenho condições de fazer cinco tipos. Daí eu vou ter que fazer tantas peças daquela ali, pra depois mudar pra outra. Só que pode acontecer, em célula, às vezes, de quebrar uma máquina. Daí já não vai ser mais cinco. Vai ter só quatro células pra tu fazeres aquelas sete. E tu tens que fazer aquele número que eles querem.”
“Daí tu vais ter que ver qual é mais prioridade pra montagem, vamos dizer, uma máquina pode trazer atraso pra montagem. (...) Daí a gente sempre tem que ver qual é a máquina que é mais crítica pra ser arrumada primeiro.”
Os depoimentos desses coordenadores, trabalhadores que ingressaram na fábrica como operadores de máquina, indicam uma aprendizagem realizada no exercício do trabalho, sob a pressão do cumprimento das metas estabelecidas pela engenharia de processo. Em contraste, os depoimentos dos operadores de máquina sugeria um trabalho rotineiro e de pouca autonomia. O mesmo contraste aparece quando falam dos nexos entre escolarização e trabalho:
“Aqui a matemática é toda voltada pra eletrônica. (...) por exemplo, a gente estuda o capacitor em eletrônica e em física ele estava ensinando o cálculo da estrutura do capacitor. (...) Só que a eletrônica pega e usa um componente na utilização prática e lá ele mostra exatamente a estrutura do componente, como ele é feito, como ele funciona, como foi projetado. Então dá para captar melhor.” (coordenador de mini-fábrica);
“Tem laboratório, mas é muito pouco tempo. É mais teoria. E a teoria não ajuda muito. Chega na hora do laboratório, é bem diferente. O cara mexer lá, aprender bem lá com o equipamento, é bem diferente.” (operador).
Os depoimentos indicam as potencialidades da educação profissional articulada ao exercício do trabalho complexo e, ao mesmo tempo, os limites da educação escolar frente à imposição do trabalho rotineiro. O estudo aponta, também, para a importância da articulação entre formação geral e formação técnica na escola.
A continuidade de estudos em nível superior aparece como possibilidade para esses trabalhadores. Entretanto, mais do que direito, a escolarização aparece como imposição, condição de permanência no cargo e na empresa, prolongamento de jornada e aumento da produtividade pelo acúmulo de funções e qualificações adquiridas.

Bibliografia
DEDDECCA, C. “Emprego e qualificação no Brasil dos anos 90”. In: Revista Soc. Bras. Economia Política, Rio de Janeiro, 3, dez. 1998.
FOGAÇA,A.“Educação básica, qualificação e competitividade.” In: Encontro Nacional de Estudos do Trabalho, III, Rio de Janeiro, 21 a 23 set. 1993. Anais. Rio de Janeiro, ABET, 1993.
MACHADO, L. “A educação e os desafios das novas tecnologias”. In: Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar/ orgs. Celso Ferretti et alii. Petrópolis, Vozes, 1994.
MORAES, CSV. “Introdução”. In: DIAGNÓSTICO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL – RAMO METALÚRGICO. São Paulo, CNM/Rede Unitrabalho, 1999.
POSTHUMA, A . “Reestruturação e qualificação numa empresa de autopeças: um passo aquém das intenções declaradas”. In: Educação e Sociedade, 45, ago. 1993.
SALERNO, M. “Trabalho e organização na empresa integrada e flexível”. In: Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar/ orgs. Celso Ferretti et alii. Petrópolis, Vozes, 1994.