Resumo
Apresentamos, nesse trabalho, uma síntese dos estudos que realizamos
na comunidade de Guatá. Analisamos alguns conceitos do ideário
cultural matemático que se constituíram nas relações
de trabalho pertinentes ao processo extrativo do carvão, causa primeira
da existência da comunidade. A análise desse ideário
evidencia que as condições de trabalho são fundamentais
para a formação de uma série de conceitos cotidianos
de matemática, característicos daquela atividade.
Palavras-chave: Conceitos matemáticos, mineiros, trabalho.
No presente estudo, partimos do princípio de que o homem desenvolve
formas superiores de pensamento, em função das relações
que se estabelecem no cotidiano de seu trabalho e também nas demais
relações sociais que se originam e se estabelecem a partir
daquelas. Tais relações exigem que o trabalhador tenha que
se apropriar de idéias e desenvolver operações mentais,
entre essas o pensamento lógico-matemático, para acompanhar
as transformações necessárias à execução
das tarefas da atividade de trabalho.
Para a análise da formação desse ideário,
buscamos dados empíricos na comunidade de Guatá, Distrito
de Lauro Müller, Sul do Estado de Santa Catarina – Brasil que surgiu,
e até recentemente, dependeu da atividade extrativa do carvão-de-pedra.
Foi essa atividade que basicamente estabeleceu as condições
para a formação da identidade social, econômica e política
da comunidade. O contexto atual de incertezas em que vive a comunidade,
duas questões se apresentaram como motivadoras deste estudo. Uma
delas diz respeito à existência de relações
matemáticas subjacentes às relações de trabalho,
enquanto dependentes do processo extrativo do carvão, e às
manifestações cotidianas das mesmas. A outra questão
diz respeito à possibilidade de formação de novas
relações matemáticas neste momento em que a comunidade
busca alternativas de trabalho, em conseqüência do fim da atividade
extrativa do carvão. Neste trabalho priorizamos apenas a primeira
questão.
Partimos do pressuposto de que a Matemática é um conhecimento
historicamente produzido no movimento das relações sociais,
isto é, um conjunto de práticas sociais nas quais foram construídas
formas de significações e se materializaram como conhecimento
científico. Este conhecimento se transforma em mediador instrumental
e social do projeto cultural e científico do homem. A apropriação
do conhecimento é concebida como o movimento em que os sujeitos
humanos, de forma consciente, apreendem as significações
ou algo que está constituído na esfera da intersubjetividade.
O processo de apropriação de qualquer produto da prática
social é sempre mediatizado pelas relações com outro
indivíduo. Dessa forma, o sujeito e a sociedade coexistem mutuamente
de modo que um constitui o outro, mas um não é o outro.
Leontiev (1978:94), afirma que o homem, em sua qualidade de ser sócio-histórico,
“está ao mesmo tempo armado e limitado pelas representações
e conhecimentos de sua época e da sua sociedade. A riqueza da sua
consciência não se reduz à única riqueza de
sua experiência individual”.
O princípio norteador do estudo é que a apropriação
dos conceitos matemáticos é dependente de sistemas extra
e interpessoais de mediações historicamente produzidas nas
relações sociais com características específicas.
Sendo assim, propusemo-nos pesquisar, nas manifestações
sócio-históricas da comunidade, a materialização
de conceitos matemáticos, evidenciando aqueles que se apresentaram
com mais freqüência no seu cotidiano. Os conceitos foram analisados
em seu processo de formação-apropriação-socialização,
naquele contexto. Diríamos, então, que nosso objetivo é
analisar o processo histórico-cultural da produção
do conceito matemático, ou sistema conceitual do conceito cotidiano
mais evidente nas práticas sociais da comunidade.
Como toda atividade produtiva, a exploração do carvão
não era uma atividade isolada e independente. Pelo contrário,
ela estava muito bem atrelada às normas e aos padrões de
um modo de produção. Assim sendo, tinha ligações
profundas não só com o poder econômico, mas também
com o poder político e, conseqüentemente, com uma identidade
social que privilegia a sociedade dividida em classes.
Trabalhar numa mina de carvão pode parecer, à primeira
vista, uma atividade simples por não exigir habilidades manuais
e cognitivas muito sofisticadas. Entretanto, não se faz necessário
um esforço interpretativo muito grande para compreender a dimensão
complexa em que se insere.
O contexto e as condições, mesmo que sub humanas, para
trabalhar nas minas de carvão criaram oportunidades de aprendizagem
tanto de atividades práticas como no desenvolvimento de aspectos
cognitivos. Isso é observável na realização
das atividades específicas dos profissionais das várias categorias
estabelecidas da estrutura organizacional da empresa: mineiro, ajudante
de mineiro, diarista, manobreiro, madeireiro, furador, foguista, apontador
e outros. Cada um desses trabalhadores desenvolve formas específicas
de pensamento matemático como instrumentos auxiliadores na realização
de suas atribuições. Selecionamos pequenos trechos de falas
de alguns trabalhadores que manifestam pensamentos matemáticos desenvolvidos
na atividade extrativa do carvão.
Ao furador era atribuída a função de fazer os
furos na rocha, onde seriam colocadas as bombas para explodi-la.
O instrumento de trabalho do furador era uma furadeira na qual é
adaptada uma broca que determina a profundidade de cada furo em 1,20m e,
conseqüentemente, a quantidade de carvão e rejeitos a ser extraída
num determinado turno de trabalho pelo mineiro e seu ajudante. A
comprimento da broca passa a ser referência para os furadores, na
determinação de outras medidas. Dito de outra maneira, a
broca passa a ser uma espécie de medida-padrão para os furadores.
“A gente via tanto aquela broca e sabia que tinha um metro e vinte,
que cada vez que precisava medir alguma coisa e não tinha um metro
por perto, a gente imaginava a broca e dizia quanto media. Se fosse maior
que a broca, a gente dizia: daqui até aqui dá uma broca,
duas brocas,... A gente sabia que dava, então, um metro e vinte,
dois metro e quarenta, três metro e sessenta,... Também sabia
mais ou menos quanto era mais pequeno que a broca, sessenta centímetros,
trinta centímetros, quinze centímetros”. (furador)
O contato diário do furador com a broca transforma este instrumento
de trabalho em unidade de referência, que é internalizada
e se constitui em um componente visual-imaginativo. Em determinadas circunstâncias,
recorre a esse instrumento do pensamento para estimar medidas de comprimento.
Nas estimativas, o furador não recorria à broca como instrumento
físico, mas à imagem mental do seu comprimento.
Outro aspecto matemático desenvolvido por alguns furadores é
o cálculo aproximado do volume de carvão. O furador sabia
que a largura da galeria media aproximadamente 5 metros, a profundidade
do furo que determinaria o comprimento do banco ou do forro era 1,20 metro,
e a espessura de cada uma das camadas era aproximada por recorrências
a estimativas visuais. O produto dessas três medidas seria o volume
de carvão esperado.
“De cara, a gente sabia mais ou menos quanto ia dá de carvão
naquela furada. Se a mina tinha 5 metros de largura, a furada 1m e20cm,
que é da broca, e se a grossura do banco é 80cm e do forro
é 30cm, então era só multiplicá pro banco e
pro forro, depois somá tudo”. (mineiro/furador)
A fala do mineiro/furador, com ênfase aos aspectos aritméticos
(adição e multiplicação), explicita outros
conceitos matemáticos como o de medida linear, volume e geometria
espacial. Quando menciona as medidas das dimensões do banco e do
forro (camadas do solo onde se encontra o carvão), o mineiro/furador
está se referindo ao que na matemática escolar é chamado
de arestas. Isto significa dizer que o referido trabalhador, mesmo não
usando a linguagem matemática, considerava o banco e o forro como
sendo prismas de base retangular.
No seu procedimento algorítmico para aproximar o volume de carvão
naquele tipo de furada, anotado em um espaço em branco de uma folha
de jornal, transforma as medidas em centímetros. Com isso, evita
os cálculos com números decimais, atitude esta muito comum
das pessoas da comunidade. O registro no papel do procedimento adotado
é similar ao abaixo:
120 largura
120
4.800.000
x 500 fundura
x 500
+ 1.800.000
60000
60000
6.600.000 = 6, 6 m3
x 80 grossura
x 30
4800000 banco
1800000 forro
A transformação de 6.600.000cm3 em 6,6m3 foi feita mentalmente
e comunicada de forma escrita, após o sinal de igualdade da soma,
e verbalmente. Em suas palavras: “aproximadamente seis metro cúbico
e mais um pouco, sessenta centímetro cúbico. É, os
metros não é tão grande.”
O “aproximadamente”, que aparece na fala anterior, significa as deduções
mentais feitas ao observar as medidas iniciais. Nessa observação,
ele centra a atenção na parte inteira dos números,
isto é, na quantidade de metros sem considerar os centímetros.
Por exemplo, nas dimensões do banco, ele observa apenas o 1(um)
do 1,20m de largura, 5 dos 5m de profundidade e nenhum dos 80cm de espessura
por ser menor que um metro. Ao multiplicar as medidas inteiras, 1 x 5 =
5 que deduz que 6.600.000cm3 equivale a 6,6m3.
É interessante destacar que a transformação de
centímetros cúbicos para metro cúbico do mineiro/furador
não segue os procedimentos ensinados na escola, ou seja, a mudança
da vírgula de três em três algarismos, contados da direita
para esquerda. Processo este que pode se caracterizar muito mais como um
“macete” do que a compreensão da relação de equivalência
entre a unidade de medida e seus submúltiplos. Mesmo dizendo ser
uma aproximação, o procedimento do mineiro/furador fundamenta-se
na relação de equivalência entre a unidade e a subunidade.
A dedução no plano mental que 6.600.000cm3 corresponde a
6,6m3, representa uma agilidade de raciocínio, próprio do
pensamento abstrato e a manifestação de transitar pelas relações
do conceito matemático de volume. Como diz Vygotski (1996:235) “deduzir
significa operar com conceito”
As circunstâncias e as condições de trabalho
foram determinantes para os mineiros conceberem que uma mesma distância
possa ter comprimentos diferentes. O transporte dos carros da frente de
trabalho até o local da manobra (ponto onde os carros seriam guinchados
para serem conduzidos até a rua por um cabo de aço acionado
a motor) foi um fato preponderante para a formação de um
conceito cotidiano de distância. A distância entre a
frente de trabalho e a manobra é a mesma, quer no percurso de ida,
quer no de volta. Entretanto, para os mineiros, o percurso frente de trabalho–manobra
é mais longo do que o percurso manobra–frente de trabalho. A variação
da extensão de percurso, admitida pelos mineiros, se explica pelo
fato de que, no primeiro percurso, eles despendiam um esforço sobrenatural
para empurrar o carro cheio de carvão ou de rejeito, cuja massa
era de uma tonelada.
“Serviço de trator e de cavalo que a gente fazia, era quando
caía o carro cheio fora do trilho, ou empurrá o carro cheio
morro acima. Às vezes a gente pedia para os outros companheiros
ajudá. Da frente de trabalho do langol até a manobra dava,
às vezes, uns 60 metro; isso na volta, com o carro vazio. Quando
a gente ia com o carro cheio, conforme o caso ,se fosse plano ou morro
dava até um 200, 300 metro. Com o carro cheio é mais longe.
Demora mais”. (mineiro J)
Além do esforço físico, outro fator que também
pode ter contribuído para a formação do conceito cotidiano
de distância é a relação espaço–tempo.
Com o carro cheio e o desprendimento de esforço, se impunha uma
velocidade menor ao carro, o que levaria mais tempo. Para os mineiros,
mais tempo implica maior distância. Ou seja, o mesmo trajeto se torna
mais longo quando percorrido com maior esforço, conseqüentemente,
em maior tempo; e tem a distância correta quando percorrida naturalmente.
Esse conceito cotidiano de distância é muito forte, inclusive
nos jovens da comunidade. Para ressaltar, transcrevemos uma manifestação
verbal de um jovem que estava concluindo o segundo curso do ensino médio.
“Da casa de praia de seu D até o mar dá uns 300 metros
prá ir. Quando a gente volta, dá uns 350 metros. Quando a
gente levava a prancha, dava uns 400 metros, e na volta dava uns 500 metros”.
Outro raciocínio quantitativo desenvolvido nas relações
do processo extrativo do carvão é manifestado pelo manobreiro,
trabalhador que tinha como função guinchar os carros carregados
de carvão ou rejeitos do interior para fora da mina.
Em cada “guinchamento” eram colocados 8 carros. O manobreiro deveria
contar os carros, com o cuidado de nunca ultrapassar a oito, pois esta
era a capacidade máxima do motor e dos cabos. Para o manobreiro,
a quantidade oito passa a ser referência em qualquer contagem que
surgisse no seu dia a dia. Tal quantidade é facilmente identificável,
sendo percebida sem necessidade de recorrer à contagem.
“De tanto contá de 8 em 8, seis horas por dia sem pará,
eu já sei vê oito em qualquer lugar. Só olho e já
digo aqui é 8. Tu sabe que a gurizada tem medo da tabuada de 8 e
pra mim é a mais fácil que tem. Também, todo dia eu
ficava dizendo: primeira guinchada 8, com a segunda ,16, com a terceira,
24 carro guinchado e, assim, por diante. Dá pra aprender demais
tabuada de 8”. (mineiro/manobreiro M)
Nota-se que, além da “tabuada” e do conjunto dos múltiplos
de oito, o mineiro M, em suas contagens, ao fazer a relação
número de carros/guinchada, também está manifestando
a idéia de função linear. O modelo matemático
para a situação de contagem pode ser generalizado a partir
dos dados organizados em uma tabela que relacionasse a quantidade G de
guinchada com a quantidade C de carros, obtendo-se a função
linear C=8G. A relação com a quantidade de guinchadas é
feita muito mais como instrumento particular de quantificar a produção,
em carros, de um determinado período de trabalho. Poderíamos
dizer que essa operação mental se origina, em vez de ser
uma condição prévia, na execução das
operações práticas de atividade.
Muitas outras falas e formas de manifestações poderiam
ser evidenciadas e analisadas, pois nossa pesquisa se estendeu por um período
de quase dois anos de convívio com e na comunidade. As evidências
analisadas anteriormente demonstram que as relações de trabalho
do processo extrativo de carvão, foram decisivas para que os sujeitos
se apropriassem de operações mentais relacionadas a raciocínios
matemáticos e de novas significações lógico-matemáticas.
Essas aparecem nas mais variadas circunstâncias de mudanças
de relações da atividade trabalho. Assim, um trabalhador
nas minas de carvão, enquanto mineiro, pode ter desenvolvido algum
tipo de raciocínio matemático próprio para o controle
de sua produção. E, ao exercer a função de
apontador, desenvolveu outro raciocínio para o controle das operações
de trabalho. Esses conceitos cotidianos, por sua vez, não se constituem
a partir do nada. Os sujeitos os desenvolvem, na maioria das vezes, a partir
de uma perfeita articulação da experiência prática
com os conhecimentos escolares primários.
BIBLIOGRAFIA
DAMAZIO, Ademir. O desenvolvimento de conceitos matemáticos
no contexto do processo extrativo do carvão. Florianópolis:
UFSC, 2000. Tese de doutorado.
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Paulo: Ática, 1990.
LEONTIEV, A. O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Livros Horizontes,
1978.
VYGOTSKI, L. S. Obras Escogidas IV. Madrid: Visor Distribuciones, 1966.