CO31: O processo extrativo de carvão e os conceitos matemáticos
Ademir Damazio


Resumo
Apresentamos, nesse trabalho, uma síntese dos estudos que realizamos na comunidade de Guatá. Analisamos alguns conceitos do ideário cultural matemático que se constituíram nas relações de trabalho pertinentes ao processo extrativo do carvão, causa primeira da existência da comunidade. A análise desse ideário evidencia que as condições de trabalho são fundamentais para a formação de uma série de conceitos cotidianos de matemática, característicos daquela atividade.

Palavras-chave: Conceitos matemáticos, mineiros, trabalho.

No presente estudo, partimos do princípio de que o homem desenvolve formas superiores de pensamento, em função das relações que se estabelecem no cotidiano de seu trabalho e também nas demais relações sociais que se originam e se estabelecem a partir daquelas. Tais relações exigem que o trabalhador tenha que se apropriar de idéias e desenvolver operações mentais, entre essas o pensamento lógico-matemático, para acompanhar as transformações necessárias à execução das tarefas da atividade de trabalho.
Para a análise da formação desse ideário, buscamos dados empíricos na comunidade de Guatá, Distrito de Lauro Müller, Sul do Estado de Santa Catarina – Brasil que surgiu, e até recentemente, dependeu da atividade extrativa do carvão-de-pedra. Foi essa atividade que basicamente estabeleceu as condições para a formação da identidade social, econômica e política da comunidade. O contexto atual de incertezas em que vive a comunidade, duas questões se apresentaram como motivadoras deste estudo. Uma delas diz respeito à existência de relações matemáticas subjacentes às relações de trabalho, enquanto dependentes do processo extrativo do carvão, e às manifestações cotidianas das mesmas. A outra questão diz respeito à possibilidade de formação de novas relações matemáticas neste momento em que a comunidade busca alternativas de trabalho, em conseqüência do fim da atividade extrativa do carvão. Neste trabalho priorizamos apenas a primeira questão.
Partimos do pressuposto de que a Matemática é um conhecimento historicamente produzido no movimento das relações sociais, isto é, um conjunto de práticas sociais nas quais foram construídas formas de significações e se materializaram como conhecimento científico. Este conhecimento se transforma em mediador instrumental e social do projeto cultural e científico do homem. A apropriação do conhecimento é concebida como o movimento em que os sujeitos humanos, de forma consciente, apreendem as significações ou algo que está constituído na esfera da intersubjetividade. O processo de apropriação de qualquer produto da prática social é sempre mediatizado pelas relações com outro indivíduo. Dessa forma, o sujeito e a sociedade coexistem mutuamente de modo que um constitui o outro, mas um não é o outro.
Leontiev (1978:94), afirma que o homem, em sua qualidade de ser sócio-histórico, “está ao mesmo tempo armado e limitado pelas representações e conhecimentos de sua época e da sua sociedade. A riqueza da sua consciência não se reduz à única riqueza de sua experiência individual”.
O princípio norteador do estudo é que a apropriação dos conceitos matemáticos é dependente de sistemas extra e interpessoais de mediações historicamente produzidas nas relações sociais com características específicas.
Sendo assim, propusemo-nos pesquisar, nas manifestações sócio-históricas da comunidade, a materialização de conceitos matemáticos, evidenciando aqueles que se apresentaram com mais freqüência no seu cotidiano. Os conceitos foram analisados em seu processo de formação-apropriação-socialização, naquele contexto. Diríamos, então, que nosso objetivo é analisar o processo histórico-cultural da produção do conceito matemático, ou sistema conceitual do conceito cotidiano mais evidente nas práticas sociais da comunidade.
Como toda atividade produtiva, a exploração do carvão não era uma atividade isolada e independente. Pelo contrário, ela estava muito bem atrelada às normas e aos padrões de um modo de produção. Assim sendo, tinha ligações profundas não só com o poder econômico, mas também com o poder político e, conseqüentemente, com uma identidade social que privilegia a sociedade dividida em classes.
Trabalhar numa mina de carvão pode parecer, à primeira vista, uma atividade simples por não exigir habilidades manuais e cognitivas muito sofisticadas. Entretanto, não se faz necessário um esforço interpretativo muito grande para compreender a dimensão complexa em que se insere.
O contexto e as condições, mesmo que sub humanas, para trabalhar nas minas de carvão criaram oportunidades de aprendizagem tanto de atividades práticas como no desenvolvimento de aspectos cognitivos. Isso é observável na realização das atividades específicas dos profissionais das várias categorias estabelecidas da estrutura organizacional da empresa: mineiro, ajudante de mineiro, diarista, manobreiro, madeireiro, furador, foguista, apontador e outros. Cada um desses trabalhadores desenvolve formas específicas de pensamento matemático como instrumentos auxiliadores na realização de suas atribuições. Selecionamos pequenos trechos de falas de alguns trabalhadores que manifestam pensamentos matemáticos desenvolvidos na atividade extrativa do carvão.
Ao furador era atribuída a função de fazer os furos na rocha, onde seriam colocadas as bombas para explodi-la.  O instrumento de trabalho do furador era uma furadeira na qual é adaptada uma broca que determina a profundidade de cada furo em 1,20m e, conseqüentemente, a quantidade de carvão e rejeitos a ser extraída num determinado turno de trabalho pelo mineiro e seu ajudante.  A comprimento da broca passa a ser referência para os furadores, na determinação de outras medidas. Dito de outra maneira, a broca passa a ser uma espécie de medida-padrão para os furadores.
“A gente via tanto aquela broca e sabia que tinha um metro e vinte, que cada vez que precisava medir alguma coisa e não tinha um metro por perto, a gente imaginava a broca e dizia quanto media. Se fosse maior que a broca, a gente dizia: daqui até aqui dá uma broca, duas brocas,... A gente sabia que dava, então, um metro e vinte, dois metro e quarenta, três metro e sessenta,... Também sabia mais ou menos quanto era mais pequeno que a broca, sessenta centímetros, trinta centímetros, quinze centímetros”. (furador)
O contato diário do furador com a broca transforma este instrumento de trabalho em unidade de referência, que é internalizada e se constitui em um componente visual-imaginativo. Em determinadas circunstâncias, recorre a esse instrumento do pensamento para estimar medidas de comprimento. Nas estimativas, o furador não recorria à broca como instrumento físico, mas à imagem mental do seu comprimento.
Outro aspecto matemático desenvolvido por alguns furadores é o cálculo aproximado do volume de carvão. O furador sabia que a largura da galeria media aproximadamente 5 metros, a profundidade do furo que determinaria o comprimento do banco ou do forro era 1,20 metro, e a espessura de cada uma das camadas era aproximada por recorrências a estimativas visuais. O produto dessas três medidas seria o volume de carvão esperado.
“De cara, a gente sabia mais ou menos quanto ia dá de carvão naquela furada. Se a mina tinha 5 metros de largura, a furada 1m e20cm, que é da broca, e se a grossura do banco é 80cm e do forro é 30cm, então era só multiplicá pro banco e pro forro, depois somá tudo”. (mineiro/furador)
A fala do mineiro/furador, com ênfase aos aspectos aritméticos (adição e multiplicação), explicita outros conceitos matemáticos como o de medida linear, volume e geometria espacial. Quando menciona as medidas das dimensões do banco e do forro (camadas do solo onde se encontra o carvão), o mineiro/furador está se referindo ao que na matemática escolar é chamado de arestas. Isto significa dizer que o referido trabalhador, mesmo não usando a linguagem matemática, considerava o banco e o forro como sendo prismas de base retangular.
No seu procedimento algorítmico para aproximar o volume de carvão naquele tipo de furada, anotado em um espaço em branco de uma folha de jornal, transforma as medidas em centímetros. Com isso, evita os cálculos com números decimais, atitude esta muito comum das pessoas da comunidade. O registro no papel do procedimento adotado é similar ao abaixo:
120 largura             120                        4.800.000
  x 500 fundura         x 500                + 1.800.000
60000                     60000                   6.600.000 = 6, 6 m3
      x 80 grossura                         x 30
4800000  banco                      1800000  forro
A transformação de 6.600.000cm3 em 6,6m3 foi feita mentalmente e comunicada de forma escrita, após o sinal de igualdade da soma, e verbalmente. Em suas palavras: “aproximadamente seis metro cúbico e mais um pouco, sessenta centímetro cúbico. É, os metros não é tão grande.”
O “aproximadamente”, que aparece na fala anterior, significa as deduções mentais feitas ao observar as medidas iniciais. Nessa observação, ele centra a atenção na parte inteira dos números, isto é, na quantidade de metros sem considerar os centímetros. Por exemplo, nas dimensões do banco, ele observa apenas o 1(um) do 1,20m de largura, 5 dos 5m de profundidade e nenhum dos 80cm de espessura por ser menor que um metro. Ao multiplicar as medidas inteiras, 1 x 5 = 5 que deduz que 6.600.000cm3 equivale a 6,6m3.
É interessante destacar que a transformação de centímetros cúbicos para metro cúbico do mineiro/furador não segue os procedimentos ensinados na escola, ou seja, a mudança da vírgula de três em três algarismos, contados da direita para esquerda. Processo este que pode se caracterizar muito mais como um “macete” do que a compreensão da relação de equivalência entre a unidade de medida e seus submúltiplos. Mesmo dizendo ser uma aproximação, o procedimento do mineiro/furador fundamenta-se na relação de equivalência entre a unidade e a subunidade. A dedução no plano mental que 6.600.000cm3 corresponde a 6,6m3, representa uma agilidade de raciocínio, próprio do pensamento abstrato e a manifestação de transitar pelas relações do conceito matemático de volume. Como diz Vygotski (1996:235) “deduzir significa operar com conceito”
 As circunstâncias e as condições de trabalho foram determinantes para os mineiros conceberem que uma mesma distância possa ter comprimentos diferentes. O transporte dos carros da frente de trabalho até o local da manobra (ponto onde os carros seriam guinchados para serem conduzidos até a rua por um cabo de aço acionado a motor) foi um fato preponderante para a formação de um conceito cotidiano de distância.  A distância entre a frente de trabalho e a manobra é a mesma, quer no percurso de ida, quer no de volta. Entretanto, para os mineiros, o percurso frente de trabalho–manobra é mais longo do que o percurso manobra–frente de trabalho. A variação da extensão de percurso, admitida pelos mineiros, se explica pelo fato de que, no primeiro percurso, eles despendiam um esforço sobrenatural para empurrar o carro cheio de carvão ou de rejeito, cuja massa era de uma tonelada.
“Serviço de trator e de cavalo que a gente fazia, era quando caía o carro cheio fora do trilho, ou empurrá o carro cheio morro acima. Às vezes a gente pedia para os outros companheiros ajudá. Da frente de trabalho do langol até a manobra dava, às vezes, uns 60 metro; isso na volta, com o carro vazio. Quando a gente ia com o carro cheio, conforme o caso ,se fosse plano ou morro dava até um 200, 300 metro. Com o carro cheio é mais longe. Demora mais”. (mineiro J)
Além do esforço físico, outro fator que também pode ter contribuído para a formação do conceito cotidiano de distância é a relação espaço–tempo. Com o carro cheio e o desprendimento de esforço, se impunha uma velocidade menor ao carro, o que levaria mais tempo. Para os mineiros, mais tempo implica maior distância. Ou seja, o mesmo trajeto se torna mais longo quando percorrido com maior esforço, conseqüentemente, em maior tempo; e tem a distância correta quando percorrida naturalmente.
Esse conceito cotidiano de distância é muito forte, inclusive nos jovens da comunidade. Para ressaltar, transcrevemos uma manifestação verbal de um jovem que estava concluindo o segundo curso do ensino médio.
“Da casa de praia de seu D até o mar dá uns 300 metros prá ir. Quando a gente volta, dá uns 350 metros. Quando a gente levava a prancha, dava uns 400 metros, e na volta dava uns 500 metros”.
Outro raciocínio quantitativo desenvolvido nas relações do processo extrativo do carvão é manifestado pelo manobreiro, trabalhador que tinha como função guinchar os carros carregados de carvão ou rejeitos do interior para fora da mina.
Em cada “guinchamento” eram colocados 8 carros. O manobreiro deveria contar os carros, com o cuidado de nunca ultrapassar a oito, pois esta era a capacidade máxima do motor e dos cabos. Para o manobreiro, a quantidade oito passa a ser referência em qualquer contagem que surgisse no seu dia a dia. Tal quantidade é facilmente identificável, sendo percebida sem necessidade de recorrer à contagem.
“De tanto contá de 8 em 8, seis horas por dia sem pará, eu já sei vê oito em qualquer lugar. Só olho e já digo aqui é 8. Tu sabe que a gurizada tem medo da tabuada de 8 e pra mim é a mais fácil que tem. Também, todo dia eu ficava dizendo: primeira guinchada 8, com a segunda ,16, com a terceira, 24 carro guinchado e, assim, por diante. Dá pra aprender demais tabuada de 8”. (mineiro/manobreiro M)
Nota-se que, além da “tabuada” e do conjunto dos múltiplos de oito, o mineiro M, em suas contagens, ao fazer a relação número de carros/guinchada, também está manifestando a idéia de função linear. O modelo matemático para a situação de contagem pode ser generalizado a partir dos dados organizados em uma tabela que relacionasse a quantidade G de guinchada com a quantidade C de carros, obtendo-se a função linear C=8G. A relação com a quantidade de guinchadas é feita muito mais como instrumento particular de quantificar a produção, em carros, de um determinado período de trabalho. Poderíamos dizer que essa operação mental se origina, em vez de ser uma condição prévia, na execução das operações práticas de atividade.
Muitas outras falas e formas de manifestações poderiam ser evidenciadas e analisadas, pois nossa pesquisa se estendeu por um período de quase dois anos de convívio com e na comunidade. As evidências analisadas anteriormente demonstram que as relações de trabalho do processo extrativo de carvão, foram decisivas para que os sujeitos se apropriassem de operações mentais relacionadas a raciocínios matemáticos e de novas significações lógico-matemáticas.  Essas aparecem nas mais variadas circunstâncias de mudanças de relações da atividade trabalho. Assim, um trabalhador nas minas de carvão, enquanto mineiro, pode ter desenvolvido algum tipo de raciocínio matemático próprio para o controle de sua produção. E, ao exercer a função de apontador, desenvolveu outro raciocínio para o controle das operações de trabalho. Esses conceitos cotidianos, por sua vez, não se constituem a partir do nada. Os sujeitos os desenvolvem, na maioria das vezes, a partir de uma perfeita articulação da experiência prática com os conhecimentos escolares primários.

BIBLIOGRAFIA
DAMAZIO, Ademir. O desenvolvimento de conceitos matemáticos no contexto do processo extrativo do carvão. Florianópolis: UFSC, 2000. Tese de doutorado.
D,  AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo: Ática, 1990.
LEONTIEV, A. O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Livros Horizontes, 1978.
VYGOTSKI, L. S. Obras Escogidas IV. Madrid: Visor Distribuciones, 1966.