Resumo
A etnomatemática é um programa que utiliza a modelagem
matemática e os seus modelos como metodologia na busca do melhor
entendimento da realidade de determinados grupos culturais. Este
estudo aborda diferentes algoritmos utilizados para a multiplicação
em dois contextos culturais: Egito Antigo e Europa Medieval. O contexto
religioso, divino e matemático das matrizes maias também
faz parte deste estudo. Este estudo faz comparação
entre etnomatemática e antropologia e conclui que a abordagem etnomatemática
deve fazer parte do currículo escolar.
Palavras-Chave: Antropologia, Etnomatemática e Modelagem Matemática.
Introdução
As pessoas ao redor do mundo usam constantemente a matemática
com muita facilidade na vida diária. Muitas dessas pessoas
nunca foram ou nunca tiveram uma frequência regular na escola.
Por exemplo, no Brasil, existe a necessidade de se construir os “barracos”
que são as casas encontradas em nossas famosas favelas. Há
ainda, as famílias que possuem baixo orçamento e que tem
necessidade de construir as suas próprias residências.
Para construir essas casas, as pessoas consideradas “analfabetas matematicamente”
usam noções de área, proporções, teoremas,
e outros conceitos matemáticos. Algumas vezes, a matemática
informal utilizadas por essas pessoas é muito avançada.
Uma simples brincadeira de criança como construir papagaios,
jogar bolinhas de gude ou pular amarelinha, involve conceitos matemáticos
de geometria, propriedades geométricas, medidas, noções
de ângulos e polígonos. Neste contexto, a matemática
representa uma forma muito diferente de cultura que se origina quando as
pessoas trabalham com quantidades, medidas, formas, classificações,
operações, e relações geométricas.
Essa cultura matemática consiste no inter-relacionamento de padrões,
conceitos, e símbolos.
Estas características são comumente identificadas como
“matemática ocidental” ou “western mathematics” e representam formas
únicas de pensamento, raciocínio ou lógica.
Porém, essas características também são encontradas
em diversos grupos culturais que possuem a sua própria maneira de
“fazer” matemática. Utilizando o conceito de antropologia
cultural definido por Hall (1989), essas formas singulares de resolver
problemas que cada grupo cultural possui não são melhores
ou piores do que qualquer outra forma utilizada por outros grupos
culturais. Neste contexto, cada grupo social busca solucionar as
situações-problemas adaptando-as ao próprio ambiente
para um melhor entendimento da convivência social. As
conexões entre essas características representam o sistema
cultural de cada grupo.
D’Ambrosio (1990, 1998) afirma que a recusa e o desrespeito da
identidade individual de cada cultura coloca todo o processo de entendimento
e compreensão desses sistemas culturais em risco.
Objetivos
O principal objetivo deste estudo é entender o relacionamento
entre matemática, antropologia e etnomatemática. Outro
objetivo é entender a modelagem matemática como metodologia
no ensino-aprendizagem em matemática.
Contextos culturais
Alguns grupos culturais desenvolveram maneiras particulares, interessantes
e curiosas para encontrar as soluções para os problemas que
se apresentavam no cotidiano. O estudo dos diferentes algoritmos
baseado na perspectiva etnomatemática torna-se relevante para a
compreensão real dos conceitos e propriedades matemáticos
envolvidas nesses mecanismos. Este estudo nos leva a um melhor entendimento
de determinada cultura.
Por exemplo, quando falamos em multiplicação, sabemos
que a humanidade utilizou diferentes algoritmos para multiplicar.
Egípcios (2000 a.C.): utilizavam um processo curioso para efetuarem
multiplicações. Observe.
Efetue 16 x 24
PRIMEIRA COLUNA SEGUNDA COLUNA
1 24
2 48
3 72
4 96
5 120
6 144
Para determinar o produto desta multiplicação, eles somavam os números da primeira coluna para obter a combinação que fornecesse a soma 16. Neste caso, temos a soma 1 + 4 + 5 + 6 = 16. Após, eles somavam os números da segunda coluna correspondentes aos números da primeira coluna. Neste caso, 24 + 96 + 120 + 144 = 384. Portanto, o produto 16 x 24 = 384.
Europa Medieval: era muita usada a técnica que consistia em dobrar
um dos fatores e dividir o outro fator por 2. Repetia-se esse processo
até encontrar o resultado 1, na coluna correspondente às
“metades”. O produto é o fator corresponde ao 1, na
coluna dos “dobros”. Este algoritmo foi muito utilizado pelos camponeses
russos até a Primeira Guerra Mundial e é conhecido como “multiplicação
camponesa” ou “multiplicação russa”.
Efetue 16 x 24
COLUNA DAS METADES Coluna dos Dobros
16 24
8 48
4 96
2 192
1 384
Efetuar 12 x 16
COLUNA DAS METADES COLUNA DOS DOBROS
12 16
6 32
3 64
1 128
Neste caso, devemos somar os resultados das linhas dobradas onde a
correspondente metade for um número ímpar.
Por exemplo, quando falamos em padrões e sequências, sabemos
que a humanidade utilizou diferentes padrões numéricos e
geométricos na confecção de cestos, cerâmica,
tapetes, e tecidos. Muitas vezes, esses padrões possuiam aspectos
religiosos e espirituais que buscavam a conexão entre a humanidade
e a natureza divina.
Maias: fizeram uso de uma série de padrões numéricos que finalmente tornaram-se sagrados para eles. Cada número, de 1 a 9, tinha um valor sagrado.
Deus, Deusa
Criador, Pais
Criatura, Vida
Venus, chamada Kulkulkan
Padre, A Mão de Deus
Vida e Morte
Deus com o Divino Poder
Corpo e Alma
As Nove Bebidas
Os sacerdotes maias eram responsáveis para manter todo o conhecimento espiritual, religioso e científico do grupo.
Matrizes Maias: Os maias consideravam certos padrões, chamados matrizes ou “mat” como sagrados. Esses padrões eram esculpidos em pedras e utilizados como jóias. Atualmente, esses padrões ainda são utilizados para a confecção dos tecidos das roupas dos habitantes de áreas maias na Guatemala, Sul do México, Belize e Honduras. Eles desenharam as matrizes ou “mat” em diversos padrões que tornarem-se conhecidos por seus números específicos, significados e poder.
De acordo com Dale, uma pessoa que via os padrões X or
XX eram capazes de decodificar uma certa mensagem. Os números
colocados nessas matrizes progrediam sequencialmente em diagonal.
O primeiro número era posicionado no vértice esquerdo do
primeiro quadrado que compunha a matriz. Por exemplo, numa matriz
3 x 2, os números são colocados como no diagrama abaixo:
O valor numérico final desta matriz é calculado da seguinte
maneira:
Adicionamos os números correspondentes a cada linha da matriz.
1 + 6 = 7
5 + 2 = 7
3 + 4 = 7
Adicionamos todos os resultados obtidos:
7 + 7 + 7 = 21
Adicionamos os algarismos do número obtido: 2 + 1 = 3
Esse número corresponde a Criatura e a Vida.
Esculturas encontradas alguns dos sítios arqueológicos
mais importantes da Guatemala, como Tikal e Quirigua, nos mostram que os
sacerdotes maias tomavam certas decisões baseadas nas matrizes sagradas.
Essas matrizes continham significados sagrados que eram baseados
nos valores finais de cada padrão. Por exemplo, numa determinada
situação, o sacerdote maia deveria tomar uma decisão
referente a uma matriz que continha o valor final 6 e que significa “Vida
ou Morte”.
Etnomatemática e Antropologia
Um dos mais importantes conceitos da etnomatemática é
considerar a associação entre matemática e as distintas
formas culturais. Etnomatemática é um programa muito
mais amplo do que a matemática e muito mais abrangente do que os
conceitos de etnias. Neste caso, “etno” refere-se a grupos culturais
que são identificados por suas tradições culturais,
códigos, símbolos, mitos, e maneiras específicas de
raciocionar e inferir (D’Ambrosio, 1990, 1998). Neste contexto, o
conceito de matemática é muito mais do que contar, medir,
classificar, ou inferir, porque inclui as conexões do ensino-aprendizagem
em matemática com quaisquer estratégias de ensino-aprendizagem
como: jogos, matemática recreativa, matemática na arte, resolução
de problemas e interdisciplinaridade. A utilização
de situações reais, materiais concretos e manipulativos,
da modelagem matemática e dos seus modelos também fazem parte
dessas estratégias. É por esta razão que uma
das mais importantes áreas relacionadas ao estudo da etnomatmática
é a área da cognição e cultura (D’Ambrosio,
1990).
O foco da etnomatemática consiste essencialmente na análise
crítica da geração e produção do conhecimento
(criatividade), do processo intelectual da produção desse
conhecimento, dos mecanismos sociais de institucionalização
do conhecimento (meios acadêmicos), e da transmissão desse
conhecimento (meios educacionais). Este contexto holístico
estuda os sistemas que formam a realidade e busca refletir, entender e
compreender as relações existentes entre todos os componentes
do sistema através da análise constante do papel do sistema
na realidade (D’Ambrosio, 1990).
D’Ambrosio (1990) define a etnomatemática como a intersecção
entre a antropologia e a matemática institucional, que utiliza a
modelagem matemática para solucionar problemas que são retirados
de situações reais.
De um modo mais abrangente, todos os indivíduos possuem um instinto
antropológico e matemático. Estes conceitos estão
enraizados em características humanas universais como curiosidade,
habilidade, transcendência, guerra e paz, vida e morte, ou seja,
características que estão relacionadas com a natureza humana.
O estudo antropológico da cultura humana ou dos grupos culturais
nos ensina como entender a lógica dessas culturas. Dessa forma,
aprendemos a evitar o “etnocentrismo” que é uma tendência
de julgar costumes alheios aos nossos. Isto nos leva ao preconceito
que é uma das características mais sensíveis da sociedade
moderna. Devemos olhar para os acontecimentos de nossa vida diária
com olhos antropológicos e matemáticos, numa perspectiva
etnomatemática, para que possamos resituar a nossa capacidade
de analisar, refletir, e julgar no contexto histórico-sócio-político-econômico
num mundo complexamente globalizado.
Conclusão
O currículo tradicional de matemática é limitado
em adaptar teoremas e algoritmos. A etnomatemática implica
na reconceituação do currículo matemático porque
a perspectiva e a filosofia etnomatemática é mais direcionada
aos aspectos culturais e sociais da matemática. Uma das maiores
preocupações do ponto de vista da educação
matemática para a difusão do programa etnomatemática
é dar o primeiro passo para a implementação deste
programa nas salas de aulas. O sucesso e desenvolvimento do programa
etnomatemática somente será alcançado quando o trabalho
pedagógico nas escolas for orientado nesta direção.
Referências Bibliográficas
D’Ambrosio, U. (1990). Etnomatemática. São Paulo: Editora
Ática.
Dale, N. (Sem data de Publicação). The Lords of the Mat
of Tikal [Os Deuses da Matriz de Tikal]. Antigua, Guatemala: Mazdan Press.
Hall, E. T. (1989). Beyond culture [Além da Cultura]. New York:
Anchor Books.
Secretaria de Estado da Educação (1991). Matemática:
O Currículo e a Compreensão da Realidade. São Paulo:
CENP.
What is culture? Disponível em www.wau.edu:801. [Capturado em
23 de Junho de 2000].
What is Anthropology? Disponível em www.louisville.edu. [Capturado
em 23 de Junho de 2000].