CO34: Etnomatemática e Modelagem Matemática: Um Enfoque Antropológico
 Milton Rosa, Daniel Clark Orey

Resumo
A etnomatemática é um programa que utiliza a modelagem matemática e os seus modelos como metodologia na busca do melhor entendimento da realidade de determinados grupos culturais.  Este estudo aborda diferentes algoritmos utilizados para a multiplicação em dois contextos culturais: Egito Antigo e Europa Medieval.  O contexto religioso, divino e matemático das matrizes maias também faz parte deste estudo.  Este estudo faz comparação entre etnomatemática e antropologia e conclui que a abordagem etnomatemática deve fazer parte do currículo escolar.

Palavras-Chave: Antropologia, Etnomatemática e Modelagem Matemática.

Introdução
As pessoas ao redor do mundo usam constantemente a matemática com muita facilidade na vida diária.  Muitas dessas pessoas nunca foram ou nunca tiveram uma frequência regular na escola.  Por exemplo, no Brasil, existe a necessidade  de se construir os “barracos” que são as casas encontradas em nossas famosas favelas.  Há ainda, as famílias que possuem baixo orçamento e que tem necessidade de construir as suas próprias residências.  Para construir essas casas, as pessoas consideradas “analfabetas matematicamente” usam noções de área, proporções, teoremas, e outros conceitos matemáticos.  Algumas vezes, a matemática informal utilizadas por essas pessoas é  muito avançada.
Uma simples brincadeira de criança como construir papagaios, jogar bolinhas de gude ou pular amarelinha, involve conceitos matemáticos de geometria, propriedades geométricas, medidas, noções de ângulos e polígonos.  Neste contexto, a matemática representa uma forma muito diferente de cultura que se origina quando as pessoas trabalham com quantidades, medidas, formas, classificações, operações, e relações geométricas.  Essa cultura matemática consiste no inter-relacionamento de padrões, conceitos, e símbolos.
Estas características são comumente identificadas como “matemática ocidental” ou “western mathematics” e representam formas únicas de pensamento, raciocínio ou lógica.  Porém, essas características também são encontradas em diversos grupos culturais que possuem a sua própria maneira de “fazer” matemática.  Utilizando o conceito de antropologia cultural definido por Hall (1989), essas formas singulares de resolver problemas que cada grupo cultural possui não são melhores ou piores do que qualquer outra forma utilizada  por outros grupos culturais.  Neste contexto, cada grupo social busca solucionar as situações-problemas adaptando-as ao próprio ambiente para um melhor entendimento da convivência social.   As conexões entre essas características representam o sistema cultural de cada grupo.
 D’Ambrosio (1990, 1998) afirma que a recusa e o desrespeito da identidade individual de cada cultura coloca todo o processo de entendimento e compreensão desses sistemas culturais em risco.

Objetivos
O principal objetivo deste estudo é entender o relacionamento entre matemática, antropologia e etnomatemática.  Outro objetivo é entender a modelagem matemática como metodologia no ensino-aprendizagem em matemática.

Contextos culturais
Alguns grupos culturais desenvolveram maneiras particulares, interessantes e curiosas para encontrar as soluções para os problemas que se apresentavam no cotidiano.  O estudo dos diferentes algoritmos baseado na perspectiva etnomatemática torna-se relevante para a compreensão real dos conceitos e propriedades matemáticos envolvidas nesses mecanismos.  Este estudo nos leva a um melhor entendimento de determinada cultura.

Por exemplo, quando falamos em multiplicação, sabemos que a humanidade utilizou diferentes algoritmos para multiplicar.
Egípcios (2000 a.C.): utilizavam um processo curioso para efetuarem multiplicações.  Observe.
Efetue 16 x 24

PRIMEIRA COLUNA SEGUNDA COLUNA
1 24
2 48
3 72
4 96
5 120
6 144

Para determinar o produto desta multiplicação, eles somavam os números da primeira coluna para obter a combinação que fornecesse a soma 16.  Neste caso, temos a soma 1 + 4 + 5 + 6 = 16.  Após, eles somavam os números da segunda coluna correspondentes aos números da primeira coluna.  Neste caso, 24 + 96 + 120 + 144 = 384.  Portanto, o produto 16 x 24 = 384.

Europa Medieval: era muita usada a técnica que consistia em dobrar um dos fatores e dividir o outro fator por 2.  Repetia-se esse processo até encontrar o resultado 1, na coluna correspondente às “metades”.   O produto é o fator corresponde ao 1, na coluna dos “dobros”.  Este algoritmo foi muito utilizado pelos camponeses russos até a Primeira Guerra Mundial e é conhecido como “multiplicação camponesa” ou “multiplicação russa”.
Efetue 16 x 24
COLUNA DAS METADES Coluna dos Dobros
16 24
8 48
4 96
2 192
1 384

Efetuar 12 x 16
COLUNA DAS METADES COLUNA DOS DOBROS
12 16
6 32
3 64
1 128
 
Neste caso, devemos somar os resultados das linhas dobradas onde a correspondente metade for um número ímpar.
Por exemplo, quando falamos em padrões e sequências, sabemos que a humanidade utilizou diferentes padrões numéricos e geométricos na confecção de cestos, cerâmica, tapetes, e tecidos.  Muitas vezes, esses padrões possuiam aspectos religiosos e espirituais que buscavam a conexão entre a humanidade e a natureza divina.

Maias: fizeram uso de uma série de padrões numéricos que finalmente tornaram-se sagrados para eles.  Cada número, de 1 a 9, tinha um valor sagrado.

Deus, Deusa
Criador, Pais
Criatura, Vida
Venus, chamada Kulkulkan
Padre, A Mão de Deus
Vida e Morte
Deus com o Divino Poder
Corpo e Alma
As Nove Bebidas

Os sacerdotes maias eram responsáveis para manter todo o conhecimento espiritual, religioso e científico do grupo.

Matrizes Maias: Os maias consideravam certos padrões, chamados matrizes ou “mat” como sagrados.  Esses padrões eram esculpidos em pedras e utilizados como jóias.  Atualmente, esses padrões ainda são utilizados para a confecção dos tecidos das roupas dos habitantes de áreas maias na Guatemala, Sul do México, Belize e Honduras.  Eles  desenharam as matrizes ou “mat” em diversos padrões que  tornarem-se conhecidos por seus números específicos, significados e poder.

De acordo com Dale, uma pessoa que via os padrões  X or XX eram capazes de decodificar uma certa mensagem.  Os números colocados nessas matrizes progrediam sequencialmente em diagonal.  O primeiro número era posicionado no vértice esquerdo do primeiro quadrado que compunha a matriz.  Por exemplo, numa matriz 3 x 2, os números são colocados como no diagrama abaixo:
 
O valor numérico final desta matriz é calculado da seguinte maneira:
Adicionamos os números correspondentes a cada linha da matriz.
1 + 6 = 7
5 + 2 = 7
3 + 4 = 7
Adicionamos todos os resultados obtidos:
7 + 7 + 7 = 21
Adicionamos os algarismos do número obtido: 2 + 1 = 3
Esse número corresponde a Criatura e a Vida.
Esculturas encontradas alguns dos sítios arqueológicos mais importantes da Guatemala, como Tikal e Quirigua, nos mostram que os sacerdotes maias tomavam certas decisões baseadas nas matrizes sagradas.  Essas matrizes continham  significados sagrados que eram baseados nos valores finais de cada padrão.  Por exemplo, numa determinada situação, o sacerdote maia deveria tomar uma decisão referente a uma matriz que continha o valor final 6 e que significa “Vida ou Morte”.

Etnomatemática e Antropologia
Um dos mais importantes conceitos da etnomatemática é considerar a associação entre matemática e as distintas formas culturais.  Etnomatemática é um programa muito mais amplo do que a matemática e muito mais abrangente do que os conceitos de etnias.  Neste caso, “etno” refere-se a grupos culturais que são identificados por suas tradições culturais, códigos, símbolos, mitos, e maneiras específicas de raciocionar e inferir (D’Ambrosio, 1990, 1998).  Neste contexto, o conceito de matemática é muito mais do que contar, medir, classificar, ou inferir, porque inclui as conexões do ensino-aprendizagem em matemática com quaisquer estratégias de ensino-aprendizagem como: jogos, matemática recreativa, matemática na arte, resolução de problemas e interdisciplinaridade.  A utilização de situações reais, materiais concretos e manipulativos, da modelagem matemática e dos seus modelos também fazem parte dessas estratégias.  É por esta razão que uma das mais importantes áreas relacionadas ao estudo da etnomatmática é a área da cognição e cultura (D’Ambrosio, 1990).
 O foco da etnomatemática consiste essencialmente na análise crítica da geração e produção do conhecimento (criatividade), do processo intelectual da produção desse conhecimento, dos mecanismos sociais de institucionalização do conhecimento (meios acadêmicos), e da transmissão desse conhecimento (meios educacionais).  Este contexto holístico estuda os sistemas que formam a realidade e busca refletir, entender e compreender as relações existentes entre todos os componentes do sistema através da análise constante do papel do sistema na realidade (D’Ambrosio, 1990).
D’Ambrosio (1990) define a etnomatemática como a intersecção entre a antropologia e a matemática institucional, que utiliza a modelagem matemática para solucionar problemas que são retirados de situações reais.
 
De um modo mais abrangente, todos os indivíduos possuem um instinto antropológico e matemático. Estes conceitos estão enraizados em características humanas universais como curiosidade, habilidade, transcendência, guerra e paz, vida e morte, ou seja, características que estão relacionadas com a natureza humana.  O estudo antropológico da cultura humana ou dos grupos culturais nos ensina como entender a lógica dessas culturas.  Dessa forma, aprendemos a evitar o “etnocentrismo” que é uma tendência de julgar costumes alheios aos nossos.  Isto nos leva ao preconceito que é uma das características mais sensíveis da sociedade moderna.  Devemos olhar para os acontecimentos de nossa vida diária com olhos antropológicos e matemáticos, numa  perspectiva etnomatemática,  para que possamos resituar a nossa capacidade de analisar, refletir, e julgar no contexto histórico-sócio-político-econômico num mundo complexamente globalizado.

Conclusão
O currículo tradicional de matemática é limitado em adaptar teoremas e algoritmos.  A etnomatemática implica na reconceituação do currículo matemático porque a perspectiva e a filosofia etnomatemática é mais direcionada aos aspectos culturais e sociais da matemática.  Uma das maiores preocupações do ponto de vista da educação matemática para a difusão do programa etnomatemática é dar o primeiro passo para a implementação deste programa nas salas de aulas.  O sucesso e desenvolvimento do programa etnomatemática somente será alcançado quando o trabalho pedagógico nas escolas for orientado nesta direção.
Referências Bibliográficas
D’Ambrosio, U. (1990). Etnomatemática. São Paulo: Editora Ática.
Dale, N. (Sem data de Publicação). The Lords of the Mat of Tikal [Os Deuses da Matriz de Tikal]. Antigua, Guatemala: Mazdan Press.
Hall, E. T. (1989). Beyond culture [Além da Cultura]. New York: Anchor Books.
Secretaria de Estado da Educação (1991). Matemática: O Currículo e a Compreensão da Realidade. São Paulo: CENP.
What is culture? Disponível em www.wau.edu:801. [Capturado em 23 de Junho de 2000].
What is Anthropology? Disponível em www.louisville.edu. [Capturado em 23 de Junho de 2000].