CO38: Um Estudo Etnomatemático dos Quipus Incas
Monia Andreia Tomieiro Bueno , Chateaubriand Nunes Amancio

Resumo

Na busca de explicar e manejar a realidade, o homem se comporta de maneira a adquirir conhecimento estabelecendo uma relação entre artefatos e mentefatos, ou seja, entre códigos e símbolos. Acreditamos ter sido neste sentido que os Incas fizeram uso dos quipus, para codificar suas informações e resolver problemas numéricos. Reconhecendo a matemática como um sistema de codificação que permite descrever, entender e controlar a realidade, a análise matemática dos quipus representa avanço em sua decodificação e evidencia sua importância como fonte histórica.

PALAVRAS-CHAVE: Quipus incas, aritmética inca, etnomatemática inca.

Introdução
Todas as informações sobre os quipus incas apresentadas neste trabalho foram retiradas do livro Code of the Quipu de Marcia Ascher e Robert Ascher (1981). As considerações sobre o sistema de numeração decimal foram retiradas do livro Sistemas de numeração de S. Fomin (1995).
A leitura matemática do mundo vem muito antes do processo de alfabetização numérica (Ferreira, 1997). Pensamos que essa associação pode ser feita com os incas, que faziam uma leitura matemática do mundo, muito antes de registrá-la nos quipus, que podem ser descritos como um sistema formado pela reunião de cordas de diversas cores com nós. A análise das cores, do posicionamento das cordas e dos nós constituem elementos de origem lógico-numérica. (Ver Ascher & Ascher, 1981)
O império Inca formou-se da junção de grupos indígenas que tiveram governo, religião e idioma comuns, mas que possuíam origens culturais distintas. Este fato, não só influenciou o aspecto cultural, mas também o desenvolvimento da matemática inca.
Os quipucamayocs, espécie de escribas, registravam as colheitas, impostos e, até mesmo a história inca nos quipus. É evidente que um quipu não era inteligível senão para o quipucamayoc que o fez, ou para aquele a quem houvesse transmitido oralmente o significado de cada uma das cordas e seus respectivos nós. Eles possuíam grande conhecimento matemático para poder construir, interpretar e transmitir as informações contidas nos quipus, que permitiam registrar qualquer informação de interesse Inca, sendo usado como uma espécie de banco de dados e não como calculadora. Assim, o armazenamento de grande quantidade de dados em quipus poderia ter servido como uma forma de escrita, e tal uso explicaria, parcialmente, a falta de evidentes formas familiares de escrita.
Apesar de não terem usado um sistema de escrita que representasse a palavra falada, especula-se a existência da escrita Runa Simi na cultura inca, até então considerada oficialmente como ágrafa. Esta escrita fundamenta-se na tríplice equivalência entre os números, que são representados por nós (laços) nos quipus, certos caracteres geométricos desenhados em tecidos e cerâmicas e as dez consoantes do idioma inca, Quechua. Esta hipótese, faz desta linguagem, por sua característica alfanumérica, algo inexplicável até agora e de grande importância na investigação etnomatemática e antropohistórica, porque permite avançar na decodificação dos quipus (Acevedo, 1994).

 
 Quipu completo.
(Fonte: Ascher & Ascher, Code of the Quipu)

Objetivos
Investigar as possibilidades de um desenvolvimento matemático independente dentro de cada tradição cultural, assim como a importância das diversas formas de difusão criadas por determinados grupos culturais, baseando-nos no enfoque apresentado por Joseph (1996), sobre a visão eurocêntrica do conhecimento matemático. Em nosso caso, temos como objeto de estudo a cultura inca e seus quipus.
Desenvolvimento do tema
Metodologia fundamentada em pesquisa historiográfica segundo a concepção de D'Ambrosio (1999, p.98), ou seja, "visa recuperar a presença de idéias matemáticas em todas as ações humanas", e para isso aplicamos o Programa Etnomatemática focado na cultura, tradições e costumes incas, bem como nas relações matemáticas registradas nos quipus, em especial as aritméticas, e os esquemas usados para essa codificação. Neste sentido, partimos da análise descritiva que Marcia Ascher faz dos quipus, levantando aspectos relativos à utilização de frações e decimais nos quipus e as operações aritméticas envolvendo esses conceitos.
O sistema de numeração usado por eles era o decimal (base 10) e duas características importantes desse sistema devem ser ressaltadas: o sistema decimal é posicional, ou seja, os algarismos admitem valores posicionais em potências de 10 e, o uso do símbolo zero (0) para representar a ausência de unidades na ordem em que está colocado. Nos quipus, os nós possuíam valor posicional, sendo escritos como potências da base decimal, assim, considerando as duas extremidades de cada uma das cordas pendentes, as maiores potências estavam representadas na extremidade presa à corda principal. A ausência de nós em alguma posição significava a ausência de valor.
Quando queremos representar a metade de algum valor, escrevemos como a fração ½ ou como a fração decimal 0.5. Estes símbolos, mesmo que em diferentes sistemas de notação, representam o mesmo valor.
Uma fração decimal (0.75, 0.25, 0.4444...), por sua vez, faz parte da notação posicional da base 10, sendo o ponto decimal usado para separar números inteiros de frações decimais. Começando no ponto decimal, movendo-se para a esquerda, o valor de cada símbolo é multiplicado por uma potência de 10; começando no ponto decimal, movendo-se para a direita, o valor de cada símbolo é dividido por uma potência de 10. Por exemplo, 456.248 tem esse valor: (4 x 100) + (5 x 10) + (6 x 1) + 2/10 + 4/100 + 8/1000. Toda fração pode ser escrita com a notação posicional da base 10, mas nem todo número decimal pode ser escrito como uma fração.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS ESTUDOS REALIZADOS
Observamos que um quipu tem uma corda que é mais grossa que as demais, denominada corda principal e da qual estão suspensas outras cordas. Quando se estende a corda principal sobre uma superfície plana, a maioria das cordas direcionam-se para baixo, estas denominam-se cordas pendentes.
Às vezes, algumas das cordas suspensas direcionam-se para cima e por isso denominam-se cordas superiores. Suspensas de algumas ou de todas as cordas pendentes ou superiores existem outras cordas denominadas subsidiárias. Estas podem conter cordas suspensas delas, de maneira que podem haver subsidiárias de subsidiárias e assim por diante.
Um tipo especial de corda pode ser conectada ao final da corda principal e por esse motivo recebe o nome de pendente final.
Quanto aos nós, observamos três tipos: simples, que representam a base decimal; alongados, que representam dígitos entre 2 e 9; e nós em formato oito, que representam o número 1. O conceito de zero era subentendido.
As idéias de divisão em partes fracionárias e de razões comuns podem existir com ou sem um esquema para representação de frações. E partes das frações podem ser combinadas e modificadas de maneira sistematizada que não envolvam manipulação de representação simbólica.
Apesar de não haver evidências da representação de valores fracionários nos quipus, pudemos concluir que os Incas podiam trabalhar com frações sem fazer uso de qualquer tipo de representação para as mesmas, mas não temos conhecimento de como ou onde os cálculos foram realizados.
Considerando os resultados da divisão por números inteiros, com a restrição que somente números inteiros possam aparecer, se 12 for dividido sempre em 3 partes, o resultado é 4, 4 e 4, se 13 for dividido em 3 partes, o resultado não poderá ser 4 1/3, 4 1/3 e 4 1/3, deverá ser 4, 4 e 5.
Para a análise matemática dos quipus, é importante perceber que a divisão e a multiplicação estão intimamente relacionadas. Por exemplo, descrevendo-se a relação entre os números 8 e 4, o 4 pode ser visto como a metade de 8 ou o 8 pode ser visto como sendo o dobro de 4.
O fato do resultado da divisão ser números inteiros, justificaria denominar tanto 4 ser a metade de 8 ou 9 e dizer que o dobro de 4 pode ser 8 ou 9. Em outras palavras, multiplicação e divisão não são operações inversas quando os números envolvidos são inteiros e estão representados em quipus.
Outro aspecto importante observado está em um quipu especial que enfatiza o número 19, contendo múltiplos de 19 e somas positivas que são múltiplos de 19, o qual sugere a possibilidade de associação ao calendário lunar.
O número 19 é de grande importância porque está relacionado ao alinhamento de ciclos baseados na Lua. Num calendário baseado nos aparecimentos da Lua, os meses possuem 29 ou 30 dias até que as mesmas fases da Lua ocorram no mesmo período do mês. Num calendário baseado nas revoluções da Terra em torno do Sol, um ano tem 365 ou 366 dias até que os solstícios ou equinócios ocorram na mesma época do ano. Se ambas relações são consideradas, o tempo que leva para voltar à mesma fase lunar, terrestre e solar é de 19 anos solares ou 235 meses lunares. Para ter a mesma sincronia com os meses lunares e as estações do ano, meses lunares são combinados em anos lunares. Mas os anos lunares têm que variar, com alguns anos tendo 12 meses e outros 13. Se tivéssemos, basicamente 12 meses lunares num ano, então num ciclo de 19 anos, 7 meses teriam que ser acrescidos. As 7 últimas pendentes somando 19 sugerem um esquema que divide o ciclo de 19 anos em 7 partes desiguais para que ocorra a adição dos 7 meses adicionais.
Mesmo que esta idéia possa parecer precoce, devem haver consideráveis evidências antes que algum quipu possa ser especificamente interpretado. Todavia, é plausível que alguns quipus sejam arquivos astronômicos ou outros valores fixados estejam relacionados à ocorrências naturais.
 

Bibliografia

ACEVEDO, C.L.H. La yupana incaica: elemento histórico como instrumento pedagógico. In: NOBRE, Sérgio (org.). Reunião do grupo internacional de estudos sobre relações entre história e pedagogia da matemática, 1994, Blumenau. Proceedings. Blumenau: AMS-TEX, 1994. p.77-89.
ASCHER, M., ASCHER, R. Code of the Quipu: A study in media, mathematics, and culture. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1981. p.1-79.
D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: Arte ou técnica de explicar e conhecer. São Paulo: Editora Ática, 1998. 88p.
_______ . A História da Matemática: Questões historiográficas e políticas e reflexos na Educação Matemática. In: BICUDO, Maria A. V. (org.) Pesquisa em Educação Matemática: Concepções e perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 97-115.
de LEÓN, P.C. Grandeza de los Incas. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1997. 79p.
EVES, H. Introdução à história da matemática. Campinas: UNICAMP, 1995. p.25-51.
FERREIRA, E.S. Etnomatemática: Uma proposta metodológica. Rio de Janeiro: MEM/USU, 1997. 101p. (Reflexão em Educação Matemática, 3).
FOMIN, S. Sistemas de numeração. São Paulo: Atual, 1995. 41p.
JOSEPH, G.G. La cresta del Pavo Real: Las matemáticas y sus raíces no europeas. Madrid: Pirámide, 1996. p. 23-93