CO41: As “contas” na vida de um Bairro
Darlinda Moreira
Universidade Aberta - Lisboa


Resumo
Num bairro social da cidade de Lisboa fortemente influenciado pelo padrão cultural urbano, a escolaridade e o nível económico são baixos e muitas crianças não são bem sucedidas na matemática escolar. Observando-se que no seu quotidiano estas crianças contactam com várias situações onde conceitos matemáticos estão subjacentes e ao  analisar-se a lógica social do uso destes conceitos, emerge o contexto emotivo e uma racionalidade conjuntural como principais agentes definidores das decisões.  É assim também na metodologia própria da lógica social que a problemática da matemática do Bairro urbano se constitui em questão da Etnomatemática.

Palavras- Chave: Etnomatemática - urbanidade - teoria

Objectivos: Discutir os contributos da etnomatemática  em meios urbanos.
 
 O Bairro:  enquadramento social, escolaridade e urbanidade
O Bairro onde decorre esta investigação situa-se na freguesia de Carnide, em Lisboa, a qual tem sido palco de várias modificações urbanísticas que fazem destacar ainda mais os contrastes sociais, económicos e arquitectónicos. É um local onde a diversidade quotidiana impera! A origem do Bairro é pouco conhecida mas sabe-se que em 1974 foram construídos 354 habitações pré-fabricadas para alojar a população que vivia, até então, em barracas. Esta construção de 1974 foi, em consequência do seu estado de desagregação, posteriormente demolida e em seu lugar surgiu o bairro “novo” com 407 apartamentos constituídos por um, dois, três e quatro quartos. Do bairro “velho” não resta nada. O processo de realojamento, que nem sempre foi pacífico, decorreu no período entre 1990-1995 e realojou todos os antigos habitantes.
Numa primeira visita ao Bairro, à excepção do grande número de crianças pequenas que andam na rua a brincar, dos adultos que se agrupam em pequenos grupos, durante dia e noite e da densidade multi-étnica com que o visitante se pode cruzar, a aparência é semelhante a qualquer outro bairro de Lisboa que não seja considerado de luxo. Isto é, neste Bairro como em tantos mais, nota-se alguns sinais de degradação, a necessidade de pinturas exteriores e contentores de lixo a abarrotar. Mas, uma visão mais aproximada revela a grande heterogeneidade étnica e cultural onde os conflitos sociais e pessoais são frequentes, como se pode observar na seguinte caracterização proveniente de uma criança de cerca de dez anos, esquecendo, que muitos dos moradores do Bairro vive em função do trabalho.
“O Bairro onde vivo é muito feio, porque escrevem nas paredes e não respeitam as outras pessoas, nem os polícias. Se fosse polícia prendia-os a todos. Este Bairro é um bairro de Racismo.  Os escorregas estão partidos, também não há supermercados de jeito neste bairro, este bairro é todo reles.
Não gosto deste bairro, porque são só pretas e batoteiros que andam sempre a jogar à batota. O meu  bairro está todo sujo, mas não é só o meu bairro (...). O meu irmão trabalha numa Pisaria, quando vão para lá roubar ele tem uma navalha e vira-se a eles. Em Telheiras só há drogados e vêm da Escola Pedro de Santarém para este bairro para estragar tudo.”  (no Jornal do CRIARTE, nº2 , Fevereiro de 1999)
Constituído maioritariamente por uma população jovem (idade média na ordem dos 29 anos), sabe-se que cerca de 65%  da população tem no máximo os primeiros quatro anos de escolaridade (o 1º ciclo). E que cerca de 27.8% dos jovens da faixa etária dos 16 aos 25 anos só tem o 1º ciclo. Ou seja, na realidade, um quarto dos jovens são analfabetos. O abandono e insucesso escolar existe no 1º ciclo, (6 - 10 anos) mas, é sobretudo no decorrer do 2º ciclo (11-12 anos) que começa mesmo a ser preocupante. Regra geral, os pais vão à escola do 1º ciclo, que se situa no Bairro, sempre que esta os convoca, mas, quando as crianças têm de frequentar a escola do 2º ciclo que se localiza fora do Bairro, é comum desistirem de ir à escola mesmo quando são convocados.
São, sobretudo os jovens do Bairro, aqueles que mais experiência têm da vida urbana que os segrega mas também inclui de forma distanciada. Efectivamente os jovens são segregados, por exemplo, pelos moradores dos bairros vizinhos e nas escolas fora do Bairro, quando se "descobre" onde habitam  mas, podem quase que passar despercebidos quando vão, e vão muitas vezes, para as várias catedrais de consumo que existem na vizinhança, ou para as zonas nobres da cidade. Encontra-se, assim, na população juvenil um contacto frequente com a exterioridade do Bairro que, se acentua a consciência da diferença e da desigualdade da distribuição de riqueza, proporciona também um saber sobre a forma como esta diferença pode passar despercebida, conhecimento que é usado com habilidade cuidada e de acordo com os diferentes afins a que se propõem realizar. Isto é, os jovens conhecem a possibilidade de um certo mimetismo social que pode ser usado ou para a integração ou para a demarcação, conflito e resistência.
É assim, neste vaivém por entre universos culturais de referências distintas que os jovens vão construindo a sua identidade e participando na modernidade tecnológica e urbana que os circunda, e, nomeadamente, aprendem a relativizar os saberes escolares e o valor da escolaridade, para o bem e para o mal.

A matemática em uso
No Bairro, as situações onde a matemática é utilizada frequentemente podem agrupar-se do seguinte modo: actividades de compras e vendas nas lojas e supermercados, onde as quatro operações aritméticas e cálculos de percentagem são realizados; estimativas e cálculos aproximados em compras de usos domésticos e culinária; contabilidade doméstica nas contas da casa e na divisão do salário; actividades educativas de ajuda às crianças nos seus deveres escolares (não observado para lá do 1º ciclo); medições e estimativas sobretudo relacionadas com actividades de costura e construção e reparação de objectos domésticos. Cálculos de dobros e triplos, metades e terços e quartos  são ainda usuais, bem como cálculos e estimativas relativos ao tempo que determinadas tarefas demoram a executar.
De forma mais esporádica, observam-se situações onde se pode encontrar  uma utilização pragmática de uns tantos conceitos matemáticos. Por exemplo: proporções, relativamente ao uso da gasolina para viagens e no uso culinário; noções de combinatória no levantamento de hipóteses para decidir sobre a divisão do dinheiro; noções de simetria, rotação, ampliação e redução na decoração das casas; equivalências de volumes e reduções no sistema métrico, cálculos de nivelamento que incluem noções de inclinação e ângulos.
A actividade matemática no Bairro, pode ainda observar-se, estritamente relacionada e dependente da actividade profissional. Por exemplo, a D. F, sendo costureira tem uma capacidade geométrica assinalável, nomeadamente, relacionada com a optimização da distribuição das áreas em função dos custos do pano, uma vez que, não só calcula o tecido necessário para fazer a roupa, mas faz este cálculo através das possíveis  decomposições de uma determinada área de tecido em função das medidas dos clientes, do modelo da roupa e das medidas da peça de tecido no mercado. Registe-se, que também os elementos das “Kru” (grupos de graffitis)  se envolvem em operações mentais de proporcionalidade quando ampliam os seus desenhos para realizar os graffiti. Depois, há ainda os elementos que, ou por pertencerem a associações locais ou por empreenderem actividades colectivas de divertimento e ocupação dos tempos livres do Bairro se envolvem em planificações que exigem contabilidades complicadas. Por exemplo, para fazerem excursões, ou bailes, ou jantares ou levarem as crianças em passeios para fora do Bairro. Finalmente, os moradores do Bairro que têm profissões no seu exterior de designers ou de contabilistas também se podem incluir neste conjunto de saber matemático em uso no Bairro.
Relativamente a uso de artefactos a máquina de calcular foi mais vista do que qualquer outro, como por exemplo, réguas, metro, etc. Na realidade fiquei surpreendida pela apropriação cultural deste objecto por parte de pessoas adultas e iletradas. Sem saberem a tabuada e sem saberem ler, algumas pessoas manipulam as calculadoras elementares, em proveito próprio e com destreza, revelando um acolhimento e integração deste objecto no lar, tão natural, bem sucedido e articulado como, por exemplo, o da televisão.
Mas, este saber não só se manifesta de forma  heterogénea no conjunto das actividades do Bairro mas também, heterogeneamente está presente nas experiências dos adultos e, principalmente, das crianças. Efectivamente, pode ser muito comum as crianças fazerem pequenas compras e em consequência lidarem com dinheiro, mas também pode acontecer nunca o fazerem. E o mesmo se pode observar relativamente às outras situações apresentadas.
Por outro lado, no Bairro, o contacto frequente com a cultura globalizante da modernidade, da qual a escola faz parte, (Iturra 1990) parece conduzir a um fluido comunicativo que homogeneíza numa igualdade de procedimentos da matemática em uso que, nomeadamente, se torna idêntica independentemente de uma proveniência étnica ou cultural, se revela semelhante na exteriorização de comportamentos cada vez mais estandardizados, por exemplo, através da máquina de calcular e na apropriação de alguma da matemática escolar que é integrada. Se esta homogeneidade face à cultura global conduz a que, por um lado, seja difícil falar numa tradição matemática "própria" do grupo social que constitui o Bairro, por outro, como apresento de seguida, a especificidade da matemática em uso no Bairro vai surgir de uma outra direcção.
A lógica social da matemática em uso
Trata-se agora,  como diz Gelsa Knijnik (1996:111) de "situar as práticas na lógica das relações sociais onde se inserem, nos contextos específicos onde eram/são produzidos". Assim, à excepção das situações profissionais anteriormente mencionadas que exigem uma matemática declarada, todas as actividade, que  adjectivo de matemáticas, são, na sua grande maioria desenvolvidas sem escrita,  e estão profundamente imbuídas na contextualidade dos problemas que as suscitam. Estas são duas características essenciais que, na minha perspectiva, tornam a actividade matemática no Bairro numa “matemática própria”
 Efectivamente, no quotidiano, a actividade matemática é integrada, sobretudo, no padrão da economia doméstica e esta, não têm a ver somente com objectivos de operações cognitivas de composição ou maximização ou distribuição rigorosa. Antes, é pensada em função, e em conjunção com outros objectivos do dia-a-dia, nomeadamente estéticos, éticos e afectivos. As distribuições do dinheiro são afectadas por imprevistos (passados e futuros) e por uma economia informal onde os ganhos e as perdas podem não ser regrados. Pondera-se os gastos em função de razões ora mais objectivas ora mais subjectivas, como por exemplo, da melhor altura do mês, da necessidade, de poder ser considerado um prémio ou um afecto, de ser útil para um ou para todos. E, mesmo a culinária ou a decoração são pensados em funções de gostos pessoais que sistematicamente alteram o conceito puro matemático subjacente.
Donde, o cálculo e a actividade matemática, em geral, estão imbutidos no tipo de valores  e razões que permeiam os padrões da economia doméstica. Surge como um procedimento sensível às razões do humano – aos valores, necessidades, gostos e afectos - o que leva a que, por exemplo, a aritmética dos fenómenos abstraídos seja sistematicamente entrelaçada com, ou preterida por, questões de natureza conjuntural. Isto é, desaparece enquanto tal. O que se sabe claramente da experiência cultural é que não se divide rigorosamente e de uma vez por todas, quando a economia do lar tem de tirar de um lado para por noutro, pelo contrário,  divide-se aos poucos e muitas vezes, e, sabe-se que se as pessoas não são bem sucedidas no dia-a dia não é por falta de aparato matemático ou de raciocínio matemático mas antes por falta de calculo conjuntural e relacional que equacione minuciosamente prós e contras. E, também, porque não? da sorte.
Em resumo, maioritariamente, a matemática em uso é aquela que a economia doméstica pode gerar. E é subordinada a ela que é transmitida no grupo social através da oralidade.
É neste agir oral e na acção conjuntural que faz com que se aprenda “enquanto se é parte, enquanto se está envolvido” (Iturra, 1990a:121) e que conduz a que o”universo, mesmo particularmente apreendido, tem uma relação personalizada, tem uma marca de experiência” (ob. cit.:53), que a mente cultural é construída e fica  subordinada  a outro tipo de lógica; uma lógica edificada na acção, no pensamento em contexto e onde a abstracção é produzida a partir de categorias que se elaboram num agir que diz respeito a cada situação e onde as interacções e relações de cada um são fruto da experiência. É esta lógica que se apresenta diferente da lógica da mente racional positiva, (presente na matemática académica e na escola), dado que, esta última, é uma lógica de dedução que age por pensamentos e acções sobre símbolos abstractos e formalizações do conhecimento (Iturra, 1990 a e b). Esta diferenciação entre as duas lógicas é ainda acentuada pela particularidades da passagem de uma transmissão de conhecimentos baseada em  textos orais para textos escritos, a qual exige,  igualmente, uma passagem da mente cultural para a mente racional. Deste modo, enquanto o texto oral é personalizado, emotivo e com uma autoridade "que provém do convencimento de que quem faz sabe, porque consegue", (Iturra, 1990a:65), o texto escrito envolve um tipo de pensamento que pode não ser materializado nas acções concretas e imediatas do quotidiano, uma vez que é, ele próprio, um elemento de uma teoria anteriormente elaborada. O texto escrito pressupõe, assim,  raciocínios abstraídos "com base na interpretação do valor da palavra e no seu lugar na frase hermenêutica" (ob. cit.:66).

Conclusão

A maioria das crianças no Bairro, independentemente da sua proveniência social e étnica é detentora de uma "matemática própria", própria no sentido de uma outra metodologia assente numa outra lógica de actuação que submete profundamente à conjunturalidade dos problemas sociais e éticos que se vivem, mesmo que apropriando-se de alguma parte do aparatus simbólico e cognitivo da  matemática académica. Creio, assim, que é também a metodologia que ao ser detentora de uma lógica diferente na forma de proceder e partilhar um conceito, (chamado matemático na minha linguagem descritiva) e ao se fundamentar em princípios, experiências e valores tão únicos e diferenciados, o altera profundamente. Donde, é numa perspectiva  que possa  “incluir maneiras especificas de raciocinar e inferir” (D’Ambrósio, 1990:17) e numa pedagogia que possa re-interpretar, descodificar e comparar, (Knijnik, 1996) que a matemática das crianças do Bairro urbano também se pode constituir numa problemática da etnomatemática.

Bibliografia
D’ Ambrósio, Ubiratan (1990). Etnomatemática. São Paulo: Ática
Iturra, Raul (1990b) A Construção Social do Insucesso Escolar. Memória e Aprendizagem em Vila Ruiva. Lisboa: Escher Publicações.
Iturra, Raul (1990b) Fugirás á Escola Para Trabalhar a Terra. Lisboa: Escher
Knijnik, Gelsa (1996). Exclusão e Resistência. Educação Matemática e Legitimidade Cultural.  Porto Alegre: Artes Médicas.
Moreira, Darlinda(2000a) Texto matemático e interacções Em, Interacções na aula de Matemática.  Org. Monteiro, C. et. al. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação. Secção  de Educação Matemática
Moreira, Darlinda (2000b) Tecnologia, educação e pessoas. Em, Educação  Matemática em  Portugal, Espanha e Itália. Actas da Escola de Verão-1999. Org. Ponte, J. P. e Serrazina, L.  Lisboa: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação. Secção de Educação Matemática