CO42: “Priscila, Antônio, Capoeirinha, Camila...”
Mônica Mesquita


RESUMO

O presente estudo discuti a noção de espaço das crianças que “moram” na Casa Arte e Vida, na cidade de São Paulo. Considerando que o homem e suas ações manifestam-se em total dependência de seu ambiente natural, social, cultural e emocional, foco, dentro da noção de espaço, o tema orientação para reconhecer a visão de mundo dessas crianças, assim como, por meio desde tema procuro motivar essas crianças à apreenderem mais sobre a realidade que as cercam.

PALAVRAS CHAVE
Criança em situação de rua
Etnomatemática
Sociologia da Matemática.

O COMEÇO
Este projeto nasceu da fusão de um trabalho voluntário com crianças em situação de rua e a necessidade de tentar minimizar o processo de exclusão resultante da educação, em geral veiculada pela escola. Fui iluminada para esta fusão ... fui iluminada por Ubiratan D’Ambrósio. Baseada nas reflexões desse autor, procuro abordar o problema mente-corpo do ponto de vista da sociologia holística do conhecimento, tendo como instrumento a Etnomatemática. Ao meu ver,  os problemas mente-corpo desapareceram da educação.
Começo falando na minimização do processo de exclusão resultante da educação pois, acredito que este projeto busca uma alternativa social e política para minimizar os desvarios que, segundo D’Ambrósio (1999), resultam da nossa sociedade colonialista, imperialista e capitalista.
Das minhas observações, leituras e reflexões pude constatar a necessidade de trabalhar com as crianças em situação de rua a visão global da visão de mundo e, para tanto, procurei uma forma espontânea de educação, amparada em visões do homem como um todo integrado no cosmos. Parafraseando D’Ambrósio (1999), as distorções frente a maneira como o homem tem-se acreditado induz-se a poder, prepotência, ganância, inveja, avareza, arrogância, indiferença, o que me levou a pender a hipótese de que as violações da paz são frutos destas distorções, ou seja, as violações da dignidade humana e a eliminação do indivíduo, a inviabilidade de uma sociedade eqüitativa e uma agressão demasiada contra a natureza. Considero, assim, que é preciso refletir na forma com que o homem tem-se acreditado ao longo de sua história.
Busquei em Restivo (1993) esta reflexão, quando afirma que a perspectiva da construção social mostra quão profundo a política, a educação e outros fatores sociais estão implicados no mundo matemático e no conhecimento matemático e quando afirma que, como uma instituição social, a matemática é por ela mesma um problema social. Este autor ressalta que esta perspectiva da construção social sugere que devemos focar em caminhos transformando a vida, os relacionamentos sociais e os valores na sociedade como um todo.

Para quê

De modo geral, este projeto trata com a noção de espaço entre crianças em situação de rua – pernoitando em um albergue noturno chamado “Casa Arte e Vida” na cidade de São Paulo/Capital – e tem como perspectiva sócio-político promover/praticar a paz em suas várias dimensões: paz interior, paz social e paz ambiental. Chamo de crianças, neste artigo, adolescentes e crianças, pois trabalho com um grupo de crianças de 3 à 16 anos, parte de um dos grandes grupos de excluídos do nosso país.
É importante salientar que o número de crianças em São Paulo, em situação de rua é assustador. Não colocarei, neste artigo, nenhum dado numérico, pois reconheço que pelo fato da rotatividade destas crianças entre suas casas, as instituições e a rua ser muito alta torna-se, qualquer dado a esse respeito, vago. Portanto, posso afirmar apenas que visualmente pode-se encontrar centenas de crianças nesta situação.
Uma das minhas preocupações, neste trabalho, é focalizar na noção de espaço (considerando o senso geométrico do cotidiano dessas crianças), pois acredito que, por meio desta noção, é possível estabelecer uma visão global da visão de mundo entre essas crianças. Minha intenção é usar seus pontos de vista como um ponto de partida para estimulá-las em seus desejos de entender a realidade que as cercam, observando e analisando suas trajetórias. Busco uma abordagem sociológica para a matemática da vida cotidiana (especialmente a matemática do espaço), tirando deste projeto o caráter puramente social.
Para esta particular conjuntura na historia mundial e cultural, é nossa prioridade restabelecer um padrão moral e o mais alto compromisso ético, trabalhando sempre com três valores que, segundo D’Ambrósio(1999), constituem uma ética maior: respeito pelo outro...solidariedade com o outro...cooperação com o outro. Desenvolver e aplicar essas idéias de tal maneira que a criança apreende o verdadeiro valor da individualidade e tenha a oportunidade de praticar sua individualidade: vale por que é, não pelo como é; a necessidade absoluta do outro – sem o qual se decreta a extinção da espécie e a sua integração no cosmos – como parte essencial de um todo (D’Ambrósio, 1999) é a nossa real intenção.

Como
Partindo do pressuposto de Bishop(1999), que a estruturação espacial tem sido muito importante no desenvolvimento das idéias matemáticas – distinguindo este processo como “localizar” – acredito que tal desenvolvimento é essencial para o princípio da busca universal. Digo isso pois a necessidade do ser humano de conhecer bem o próprio terreno, de buscar alimento, de explorar o terreno ao redor – terra e mar – e do auto-conhecer são necessidades tão básicas que poderíamos justificar o “localizar” como prioritário...digamos até mesmo antes do “contar”.
Todas as sociedades tem desenvolvido, através dos anos, métodos mais ou menos sofisticados para codificar e simbolizar sua estruturação espacial. Noto, por meio de estudo bibliográfico, que a atividade de localizar tem recebido menos atenção que a atividade de contar, logo, por conseqüência é muito menos documentada nos estudos culturais das idéias matemáticas.
Pinxten(1983) apresenta um estudo que examina, com detalhes, a maneira de conceitualizar o espaço de uma cultura determinada. Este autor faz referência, neste estudo, a três níveis de espaço: espaço físico, espaço sociogeográfico e espaço cosmológico.
Analisando este estudo observei a importância que o mundo espacial tem na perspectiva das idéias matemáticas, não só pelas noções geométricas evidentes, mas, também, pelas noções de direção (interna e externa), posição (intra e interpessoal), finitude (visão global)...que estão estreitamente relacionadas com nossa própria imagem. Da análise deste estudo, escolhi o tema orientação para começar a trabalhar com as crianças pois, tenho como hipótese, que este tema está estreitamente ligado a integração pessoal dessas crianças, como indivíduo....o que considero o primeiro passo para o respeito, ou seja, para a paz interior.
Desde maio de 2000, comecei a trabalhar, neste projeto, com estas crianças duas vezes por semana. Na “Casa Arte e Vida” há espaço para abrigar 30 crianças, por noite, porém contei, em nossas sessões, com 14 crianças fixas...o que pelo alto grau de rotatividade pensei ser impossível...e aproximadamente 10 crianças com um alto grau de rotatividade. Os dados presentes neste relato se referem as 14 crianças fixas.
Não precisei despender nenhuma sessão para minha sociabilização com as crianças, visto que já trabalho com elas, como voluntária, a 3 anos. Todas as nossas sessões foram, além de gravadas, documentadas por um educador. Esta casa conta com duas turmas de educadores que se revezam, em dias alternados, na elaboração e aplicação de atividades para estas crianças.
Os educadores, que são funcionários da prefeitura do Estado de São Paulo, participam ativamente deste projeto. Fizemos entrevistas abertas com todos os educadores desta casa, aliás, com todos os funcionários. Da análise destas entrevistas colhemos dados preciosos para fundamentar o nossas atividades.
Relatarei, aqui, apenas uma pequena parte das sessões referente ao tema orientação. Na primeira sessão, referente a este tema, sentamos em círculo e, por meio de entrevista aberta e coletiva, observamos o que representava para cada criança o noção de orientação. Escolhemos este tema com o objetivo de apreender as perspectivas diferentes que esta cultura possa ter este a respeito. Nesta discussão houve uma questão, a nosso ver,  muito interessante:
? “O que vocês fazem quando se perdem?”
A resposta de todas as crianças foi:
? “Voltamos para casa”
Após discutirmos esta resposta, observei que estas crianças não tem a noção de “perder-se”. Sustentados, aqui, pelo estudo de Lewis (1976), da  capacidade do ser humano para encontrar a rota e orientar-se no espaço, levanto a hipótese de que estas crianças possuem uma espécie de “bússola interiorizada”.
Desenvolvi assim, para as próximas sessões, uma atividade de fazer pães, para trabalharmos com maquetes de pães, em duplas. Foi escolhido esta atividade, pois há a necessidade de se fazer pães para o café da manhã. Optei por trabalhar com maquetes, pois gostaria de observar qual era a organização intelectual dessas crianças com relação a esta “bússola  interiorizada”, tentando trilhar, assim, um caminho para compreender a noção de orientação dentro desta cultura.
Estas crianças mostraram profundo conhecimento da paisagem topográfica urbana e construíram as maquetes de pães, nos tabuleiros, com orientações, manifestadas, significativamente, por meio de preposições como atrás, na frente, em cima,abaixo, perto, longe. Conforme iam se orientando em suas maquetes, as crianças manifestavam, também, um conhecimento sobre o sol, as estrelas e o vento. Cada dupla construiu uma maquete com o tema: “Qual é o caminho para você voltar para a sua casa?”.

    Por Fim

Tentando estimular cada criança a atingir sua potencialidade criativa e, também, estimulando e facilitando a ação comum em nossas atividades, pude analisar que estas crianças tem por essência uma orientação mais dinâmica do que estática. Estas crianças distinguem objetos e percebem as relações entre eles mas, em essência, para elas “tudo se move”. É impressionante a facilidade que estas crianças demonstraram, nas atividades, para encontrar a sua rota, o seu caminho.
Das observações de nossas atividades analisamos que existe, dentro deste grupo, uma transmissão de conhecimento por meio das gerações. Os mais velhos, "pais e mães de rua", ensinam os mais novos a se orientarem não só por meio dos objetos estáticos – prédios, estações de trem, ruas, placas mas, também, por meio dos objetos da natureza – sol, lua, estrelas, vento. Notemos que estes objetos são dinâmicos, porém cíclicos.
Concluímos que estas atividades trouxeram a este grupo de crianças à cooperação na preservação do patrimônio comum pois enquanto iam se orientando em suas maquetes deram significado, por meio de discussões, para os objetos que estavam em sua rota, ou melhor, em seu caminho.
Concluímos, também, que estas crianças tem um sistema espacial complexo e próprio, sendo assim, ressaltamos alguns temas que podem ser de interesse para a continuidade deste projeto: distância, parte/todo, interno/externo, central/periférico.

Referências

Bishop, A.J.(1999) – “Enculturación Matemática – La educación matemática desde uma perspectiva cultural” – Ed.Paidós – Barc./Espanha.
D’Ambrósio, U.(1999) – “Educação para uma sociedade em transição” – Ed.Papirus – São Paulo/Brasil.
Lewis, D. (1976) – “Observations on Route-finding and Spatial Orientation Among the Aboriginal peoples of the Western Desert of Central Australia” – Periódico “Oceania”, nºXLVI
Pinxten, R., van Dooren, I. e Harlvey, F., (1983) – “The Antropology of Space” – University of Pennsylvania Press – Pensilvania/USA.
Restivo, S. (1993) – “”Math worlds – Philosophical and Social Studies of the Mathematics and Mathematics Education” – State of University of NY – Albany – NY.