CO43: Diferentes culturas, diferentes modos de entender o mundo
Ana Maria Petraitis Liblik

RESUMO
  Relato de uma atividade de sala da aula – 8a série / Colégio Dom Bosco/PR , posteriormente aplicada nas turmas de 2o ano do curso de Pedagogia da PUC/PR, sobre ângulos.  A partir da dobradura de uma folha de papel sulfite para se chegar a um avião, percorre-se um universo cultural muito rico dos imigrantes da região de Curitiba, com atividades que mostram simetria (reflexão e rotação) e translação.

INTRODUÇÃO
 A pesquisa acadêmica, se for feita para entender este universo composto por professores e alunos que temos em nossas escolas, não deveria estar desvinculada do contexto sala de aula. Ensinar matemática não é tarefa fácil.  Mas não apenas porque é difícil equilibrar conteúdos entre teoria e prática, mas principalmente porque nossos professores não foram ensinados a pensar em termos de respeito às diferentes culturas presentes em nossos bancos escolares. O respeito pelo outro, pelas suas idéias, tão falado pela antropologia como alteridade, e que Neusa Gusmão tão bem explica, não parece estar nos currículos das escolas, já que ensinamos uma única matemática e tratamos nossos alunos como se, ao final da escolaridade obrigatória, todos tivessem que se tornar bacharéis em matemática, sem nunca tentar ver o que o outro pensa, o que o outro vê, sonha e deseja.
“No diálogo entre antropologia e educação, a questão parece ser a mesma: a aventura de se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um conhecimento que não é o nosso” (Gusmão, 1997, p. 8).
 Qualquer que seja a disciplina a ser ensinada deveríamos pensar que os conteúdos devem estar a serviço do aluno e de seus projetos pessoais e não apenas para “vencer” a matéria estabelecida por um planejamento obrigatório.  Machado (2000) coloca que:
“A justificativa dos conteúdos disciplinares a serem estudados deve fundamentar-se em elementos mais significativos para os estudantes, e nada é mais adequado para isso do que a referência aos projetos de vida de cada um deles, integrados simbioticamente em sua realização aos projetos pedagógicos das unidades escolares” (p.29).

 Esses projetos individuais foram estabelecidos por influências familiares e através do meio em que os alunos se encontram. Tanto o meio, quanto o grupo familiar, praticam idéias matemáticas “diferentes” daquelas ensinadas nas escolas. E a escola deve considerar e dar valor a estas idéias que os alunos trazem de casa, não negando a importância e a validade destes saberes.
 Matemática e Educação Matemática são ciências diferentes, cujos objetivos nem sempre são bem compreendidos.  Segundo Barton (1996), “o objetivo da educação matemática é o favorecimento de uma compreensão matemática para todos.  Para a realização disto, é necessário mudar o status e as funções da matemática em nossa sociedade”. E logo depois sugere que: “uma concepção etnomatemática para a tarefa da educação matemática auxilia esta mudança” (p.25).
 Pensar etnomatematicamente é recente.  Ubiratan D´Ambrosio discute a dimensão sócio antropológica da própria matemática, o que era impensável até há poucos anos atrás.  E a nossa posição em sala de aula, com esses estudos, muda. O relato que se segue ocorreu nas oitavas séries do Ensino Fundamental do Colégio Dom Bosco, de Curitiba, em 1999.  A escola, apesar do nome, é laica, e tem uma proposta bem aberta em relação à metodologia usada pelos professores de matemática.  Cada vez mais, novos aportes e idéias são analisados e são aceitas contribuições dos familiares, até para valorizar a relação escola – aluno - família. O mesmo momento aula – conteúdo e metodologia - foi repetido em três turmas do curso de Pedagogia da PUC/PR, Campus II, período noturno, no ano de 2000.

ÂNGULOS: ENTENDER, DESENHAR E ENCONTRAR NAS DIFERENTES MANIFESTAÇÕES CULTURAIS PRESENTES EM SALA DE AULA.

 Os nossos alunos, nesta idade, conhecem bem seis ângulos diversos: nulo, agudo, reto, obtuso, reentrante, giro.  Sempre falamos em dois ângulos sendo construídos ao mesmo tempo: você nunca será capaz de desenhar somente um, por mais que tente fazê-lo !
 Assim, nós iniciamos nosso trabalho dobrando folhas de papel e construindo aeroplanos – aqueles que os alunos adoram atirar em sala de aula. O objetivo era de obter dos alunos, a identificação das medidas de todos os ângulos que eles pudessem encontrar na dobradura de avião, sem o auxílio de um transferidor.
 Em conjunto com todos os alunos, dobramos o primeiro modelo de avião muito simples.  Assim foi fácil para mim, como professora, identificar todos os ângulos.
 Como lição de casa, eles tiveram que dobrar um modelo diferente de avião de papel do que aquele feito nas aulas.  Um dos desafios era o de fazer o modelo de melhor condição de vôo, para planar na sala de aula a maior distância possível.
 Na aula seguinte, tivemos cinqüenta minutos para o vôo dos aviões de todos os alunos,  (desnecessário dizer que todos fizeram a lição de casa....). Aqueles que voaram a maior distância, foram os que estudamos melhor depois.  Isto para entender o porque de voarem uma distância maior e se haveria alguma correlação entre os ângulos no papel dobrado com tal fato.
 Eu imaginei corretamente que alguns dos aviões que voaram um distância maior foram confeccionados pelos pais das crianças e que somente alguns poucos voariam relativamente bem.  Levou uma semana para repassar e completar a experiência com os aeroplanos e atingir o nosso real objetivo que era sobre a influência tácita, nos conteúdos matemáticos, das diferentes culturas presentes em sala de aula.
 Solicitei aos alunos, para que conversassem com seus familiares para descobrir com eles, se as atividades de “dobrar” papel tinham importância cultural em suas origens.  Quais eram as expressões culturais que os avós tinham e também, sobre quais delas habitualmente falavam e executavam com seus netos.  Eu acreditava que a dobradura de papel e/ou o recorte deviam ser as atividades mais populares nos encontros familiares e em algumas outras ocasiões especiais.  Assim iniciamos a aula da semana seguinte falando – via netos, filhos, sobrinhos – se eles somente faziam aviões de papel, ou outras dobraduras diferentes.  Pedi para as crianças, que trouxessem algo feito com papel por seus familiares.  Tentamos então entender como eram feitas algumas das dobraduras para poder repeti-las em sala de aula.  O único modo de explicar como tais “origamis” eram feitos é utilizando-se todo o tempo da explicação, figuras geométricas e ângulos.  Você simplesmente inicia dizendo para começar com um papel em forma de retângulo, ou quadrado e que deve ser dobrado em partes menores com ângulos específicos.  Qualquer um consegue seguir estes passos e realizar o trabalho conjuntamente com o grupo.
 Em um segundo momento, convidamos alguns parentes e pais para virem até a escola e falarem sobre aquilo que eles produziram em papel e qual o seu significado. Japoneses, poloneses e italianos atenderam ao nosso convite.  Foi muito gratificante ver pessoas de mais idade tentando explicar porque e como eles dobravam o papel para decorar suas casas e qual o significado cultural desse tipo de trabalho (obviamente os aviões tinham sido feitos como que uma brincadeira...).
 Alguns dos “origamis” eram muito bonitos mas de uma reprodução muito difícil com um grupo de sessenta alunos.  Alguns eram bem simples, mas as crianças não os apreciaram muito.  Finalizando, solicitei ao grupo que escolhesse as figuras que mais lhes agradava. De longe, aqueles que enfeitavam a cobertura e os beirais das casas foram os favoritos eleitos.  Assim decidi por escolher apenas alguns e tentamos reproduzir seus traçados.  Estudamos muita geometria juntos e as crianças amaram o trabalho!  E o fato mais importante foi descobrir quanta matemática se pode aprender respeitando as diferentes tradições culturais e os diferentes modos de compreender o mundo.  Os alunos da universidade também realizaram os mesmos trabalhos, mas fizeram outras escolhas.  Penso porém que o resultado foi semelhante.
 Ângulos,  figuras geométricas, são imutáveis ao redor do mundo.  Nós estudamos na escola a matemática européia.  Este é a única que nossa crianças aprendem na escola, mas não é a única que existe.  Temos o futuro para entender como melhorar nossas aulas e fazer os alunos tornarem-se, como dizemos aqui no Brasil, cidadãos do mundo em vez de cidadãos apenas de nossa cidade, e isto através da matemática, ou melhor dizendo através da etnomatemática.

BARTON, Bill. Compreendendo os sentidos da Etnomatemática: a etnomatemática é fazer sentido.
     Tradução do Grupo de Etnomatemática da USP, 2000.
GUSMÃO, Neusa. Antropologia e Educação: Origens de um diálogo. In: Cadernos Cedes, nº 43,
      Campinas: Unicamp, 1997.
MACHADO, Nílson José.  Projetos e Valores. São Paulo: Escrituras, 1999.