CO44: A Cultura de hortaliças e a matemática na comunidade de Gramorezinho: uma pesquisa em Etnomatemática
Francisco de Assis Bandeira ,
Bernadete Barbosa Morey.



Resumo
 O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa mais ampla em andamento, que está sendo desenvolvida junto à comunidade de agricultores de Gramorezinho, no litoral norte de Natal, na tentativa de desvendar o conhecimento matemático detido por esta comunidade. É também uma tentativa de incorporar esse conhecimento matemático, em uma perspectiva etnomatemática, ao projeto pedagógico oficial, objetivando a superação dos obstáculos do ensino-aprendizagem da Matemática acadêmica  do ensino fundamental e a valorização dos aspectos histórico-sócio-culturais da comunidade.

Palavras-chave: Conhecimento matemático; Etnomatemática; Projeto pedagógico.

Introdução

A comunidade de Gramorezinho.

 Gramorezinho é uma comunidade que hoje é composta aproximadamente por 800 famílias provenientes do êxodo rural e que se instalou há mais de 40 anos no litoral norte da cidade de Natal, a uma distância de 30 quilômetros do centro.
 Segundo um dos moradores mais antigos da comunidade, o surgimento da cultura de hortaliças (alface, coentro, cebolinha, pimentão, etc.), que até hoje é o principal recurso econômico para a sobrevivência da comunidade, originou-se devido à experiência do campo como agricultores no manuseio com a terra, à necessidade de sobrevivência “na cidade grande” e à existência de duas lagoas perenes próximas à comunidade.
 A comercialização das hortaliças é feita pelos próprios agricultores que os vendem sem a interferência de intermediários nas feiras livres, mercearias e supermercados de Natal e de outras cidades circunvizinhas.
 Hoje em dia a comunidade conta com três escolas municipais de ensino fundamental.
 Nosso primeiro contato com a comunidade de Gramorezinho deu-se em 1981 por ocasião em que cursávamos a Licenciatura em Técnicas Agrícolas na qual se deu ênfase ao cultivo de hortaliças. No entanto, foi durante o curso de Especialização em Ensino de Matemática realizado pela UFRN, ao conhecer os trabalhos fundamentais do professor Ubiratan D’Ambrósio (1990, 1996) e o trabalho com a horta do professor  Marcelo Borba (1987) que ficamos motivados a pesquisar a comunidade de Gramorezinho agora já de um novo ponto de vista, o da Etnomatemática. Foi quando demos início ao nosso projeto de pesquisa  que tem os seguintes objetivos:
? investigar o conhecimento matemático utilizado por agricultores de Gramorezinho na cultura de hortaliças e analisá-lo do ponto de vista Etnomatemático;
? analisar o ensino da Matemática escolar desenvolvida atualmente na comunidade de Gramorezinho;
? selecionar os elementos do conhecimento dos agricultores que sejam adequados para a elaboração de uma proposta pedagógica do ensino fundamental.

Desenvolvimento do tema
No período de agosto de 1998 a maio de 1999, visitamos a comunidade Gramorezinho e a fim de coletar elementos do conhecimento da comunidade, relevantes do ponto de vista da Etnomatemática.
Esses conhecimentos foram coletados metodologicamente mediante uma pesquisa qualitativa em uma abordagem etnográfica. Foi então por nós detectado um conhecimento matemático específico da comunidade, um etnoconhecimento, na elaboração de seu saber-fazer diário com o manuseio de hortaliças. Percebemos, ainda que parcialmente, numa visão d’ambrosiana de etnomatemática, que significa “ reconhecer que todas as culturas, todos os povos, desenvolvem maneiras de explicar, de conhecer, de lidar com a sua realidade, e que isto está em permanente evolução. A idéia básica é a de não rejeitar modelos à sua tradição e reconhecer como válidos todos os sistemas de explicar, de conhecer, construídos por outros povos” (1993, p. 10). Significa também reconhecer as “matemáticas praticadas pelas distintas culturas e por povos diferentes nas várias épocas da história, e por muitos ainda hoje praticadas” (1999, p. 35).
Através da observação participante e de entrevistas não-estruturada, que são técnicas da abordagem etnográficas, e que se realizam em contato direto do pesquisador com o pesquisado em seu próprio contexto (cf. Carlos Brandão, 1990), percebemos  que “aparece uma forma de matemática, aquela elaborada pelas pessoas da comunidade, elaborada em código muitas vezes diferente da ‘ciência matemática’. Essa elaboração mais próxima à vida cotidiana da comunidade assenta raízes em seus usos culturais e tem-se mostrado eficiente na solução de inúmeros problemas que o cotidiano apresenta” (Marcelo Borba, 1987, p. 72). É um etnoconhecimento que se manifesta
no cálculo da quantidade de adubo a ser utilizado pelos agricultores nas hortaliças: medido em latas de querosene de 18 litros, um “metro” de adubo que contém 48 latas, custa 37 reais. Três latas são o  suficiente para adubar uma horta ;
no cálculo do custo mensal do adubo;
na medição do espaçamento devido entre as mudas: o palmo é usado para medir o espaçamento entre as mudas de alface, entre os pés de pimentão e entre as fileiras de semeadura de coentro e de cebolinha;
na escolha da quantidade proporcional de hortaliças a ser plantada a fim de maximizar o lucro;
na observação do tempo decorrido desde o plantio de determinada hortaliça até sua colheita;
no cálculo do preço a ser fixado para a venda de cada unidade de seu produto (pé de alface,  unidades de pimentão, molho de coentro ou cebolinha) no ato da comercialização.
Os agricultores dessa comunidade mesmo não registrando o movimento de entrada e saída das hortaliças, calculam mentalmente os seus lucros, prejuízos. Sabem que o melhor período para essas culturas é o verão, momento em que a produção é maior e o custo, menor.
São esses e outros, os etnoconhecimentos que ainda não fazem parte das escolas dessa comunidade, o que faz com que Paulo Freire (1996, p. 46) lamente que o “caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber”.
Seguindo os passos de Borba (1987), Knijnik (1996) e Monteiro (1998) almejamos elaborar uma proposta de incorporação desses etnoconhecimentos ao projeto pedagógico dessa comunidade, no sentido de que possam  repensar sua prática educacional a partir das habilidades desenvolvidas na vida cotidiana da comunidade (cf. Gelsa Knijnik, 1996).
Analisando esses estudos acima mencionados, e outros, em uma visão d’ambrosiana de etnomatemática, podemos dizer que todos têm uma característica comum: as demais matemáticas consideradas, como a da comunidade Gramorezinho, além da escolar e da acadêmica, são reconhecidas enquanto tal a partir de sua legitimidade ou eficácia na vida social de cada comunidade.

Conclusão

 Nossas preocupações no momento giram em torno da ampliação e aprofundamento de nossos estudos, procurando esclarecer questões como:
 De onde, quando e como se  originou o (etno)conhecimento na comunidade de Gramorezinho? Como se dá sua transmissão? Esse conhecimento é estático ou dinâmico? Quão representativo da comunidade é este conhecimento?
 Quais conhecimentos matemáticos dessa saber-fazer dos agricultores podem ser usados no ensino da matemática escolar? Como descontextualizar-recontextualizar esses conhecimentos? Quais as implicações deste conhecimento escolar?
É respondendo a essas interrogações que pretendemos, em uma perspectiva etnomatemática, incorporar ao projeto pedagógico matemático, como forma de dinamizar o ensino-aprendizagem em sala de aula, e ao mesmo tempo, valorizar os aspectos histórico-sócio-culturais dessa comunidade.
 

BIBLIOGRAFIA
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