Chateaubriand Nunes Amancio
RESUMO
O processo histórico não deixa dúvidas quanto
às transformações que tiveram que sofrer as comunidades
kanhgág. A educação, entendida aqui como a ‘educação
escolar’, atuou neste processo de maneira fundamental e com interesses
alheios à cultura indígena. Aqui, procuramos nos ater aos
Kanhgág da bacia do rio Tibagi, região norte paranaense e
tecemos algumas considerações sobre a disciplina de matemática.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Escolar Indígena; Etnomatemática; Kanhgág
OS KANHGÁG
Uma análise histórica dos últimos 150 anos de
contato dos Kanhgág da bacia do rio Tibagi, norte do Estado do Paraná,
com a sociedade não-indígena ajuda-nos a compreender as mudanças
que ocorreram, sempre acompanhadas de imposições à
dinâmica cultural do grupo, obrigado a submeter-se às novas
exigências.
A bula do papa Paulo III, de 1537, considerava os índios
Guarani homens como os outros e, portanto, possuidores de alma. Assim,
os esforços dos jesuítas espanhóis voltam-se para
a ‘recondução’ dos índios à fé cristã
- em latim, reductione. Então, eles passam a fundar as chamadas
reduções, lugares onde viviam a população indígena
e, geralmente, dois jesuítas, sendo um deles o encarregado da administração
da redução (Maxime, 1990, p. 15). Nessa época, o estado
do Paraná chamava-se Guayrá, e entre 1620 e 1640 foram fundadas
várias reduções jesuíticas espanholas, chegando
a contar com 17 reduções, abrigando mais de 200 mil índios
guaranis (Mota, 1994, p. 69). Apesar de as reduções terem
abrigado mais índios guaranis, é possível encontrar
afirmações de que também chegaram a ter pequenos grupos
de Kanhgág, sendo considerado o contato mais duradouro desse grupo
com a sociedade colonial (cf. Veiga, 1994). Os índios kanhgág,
então chamados pelos jesuítas espanhóis de Gualachos,
continuaram a viver embrenhados nas florestas dos campos guairenhos, procurando
resistir aos ataques dos bandeirantes paulistas.
Na segunda metade do século XVIII, várias expedições
militares foram aos territórios orientais do rio Paraná,
seguindo orientações do marquês de Pombal. Somente
com um decreto de 1831, o imperador brasileiro revoga as cartas régias
que legalizavam a guerra aos índios e a sua escravidão. Nessa
época, é fundado o primeiro aldeamento no norte do atual
estado do Paraná, que recebeu o nome de Aldeamento São Pedro
de Alcântara e foi povoado pelos índios kayoá (Tommasino,
1995, p. 107). Em 1840, missionários capuchinhos chegam à
província do Paraná, vindos da Itália, para ministrar
a catequese aos indígenas.
João da Silva Machado, que mais tarde se tornaria o Barão
de Antonina, envia em 1845 homens para os territórios adjacentes
aos rios Paranapanema, Tibagi, Paraná e Ivaí. A expedição
registra evidências da presença indígena nas margens
do rio Tibagi, documentando inclusive que encontraram um alojamento kanhgág,
que comportava cerca de 250 índios. Intensifica-se a ocupação
da região norte do Paraná, e através do Decreto Imperial
n.º 751, de 2 de janeiro de 1851, é criada a Colônia
Militar de Jataí, nas margens do médio rio Tibagi, sendo
que em 1853 o atual estado do Paraná deixa de ser a 5ª Comarca
de São Paulo, tornando-se uma província com uma população
indígena respeitável. Zacarias de Goes, o primeiro governador
da então província do Paraná, reúne esforços
para incentivar a colonização do interior da província
que, na época, nada mais era que passagem entre São Paulo
e o Rio Grande do Sul. No dia 21 de março de 1855, é baixada
a lei 29, que tem como objetivo promover a imigração estrangeira
(Mota, 1994, p. 32).
Em abril de 1857, o governo imperial promulga o chamado Regulamento
das Colônias Indígenas, que regularizava e determinava a criação
de quatro colônias indígenas na província do Paraná
e quatro na do Mato Grosso. Localizada na margem oposta à da Colônia
Militar de Jataí, a já existente colônia indígena
de São Pedro de Alcântara, a partir de então, adapta-se
às normas do novo regulamento.
Os Kanhgág, nessa época, possuíam uma imagem
de selvageria e ferocidade, devido à resistência que faziam
para conter a expansão colonial em seus territórios, e
eram conhecidos por Coroados, pois raspavam a cabeça em forma de
coroa. A partir de dezembro de 1858, nas margens do rio Tibagi, intensificam-se
os contatos entre eles, “brancos” e os índios guaranis kayoá.
ASSIMILAÇÃO E INTEGRAÇÃO
É também na segunda metade do século XIX que se
inicia uma educação baseada numa política de assimilação
cultural e integração econômica das populações
indígenas. Em 1876, registrou-se a freqüência de índios
nas escolas dos aldeamentos de São Pedro de Alcântara e São
Jerônimo. Estas escolas atendiam a crianças não-índias,
filhos de funcionários dos aldeamentos e da Colônia Militar
de Jataí, e dos moradores dos arredores (apud Lemos, 1997, p. 13).
No início do século XX, a invasão da sociedade
ocidental nos territórios kanhgág intensifica-se com o propósito
de explorá-los, por exemplo, através da extração
predatória de madeira. O Serviço de Proteção
ao Índio - SPI, criado em 1910, objetiva reformular a política
indigenista, a partir das idéias do General Cândido Rondon,
influenciadas pelas concepções positivistas, as quais valorizavam
a prática e seus resultados. Vinte anos depois de sua criação,
o General Rondon, já desgastado e enfraquecido devido a várias
polêmicas, é afastado da chefia do órgão pelo
governo revolucionário que se instalou no país.
O órgão passa a incorporar em seu discurso a diversidade
cultural e lingüística dos povos indígenas, procurando
mostrar uma preocupação que começa a ter um espaço
maior a partir de 1940, tentando, com isso, a recuperação
de sua imagem e a conquista de certo prestígio. Interessante é
que esse tipo de preocupação era reforçado pelas discussões
que envolviam o receio de que ocorresse o processo de aculturação
que supunha a perda da cultura de um dado grupo quando em contato com outro
tecnologicamente superior (Thomaz, 1995, p. 438).
O SPI passa a contratar intelectuais como Eduardo Galvão e Darcy
Ribeiro, que resulta em trabalhos de elevada qualidade (cf. Oliveira, 1975).
No entanto, esta qualidade não consegue chegar no mesmo nível
às escolas que funcionavam nas aldeias. A escola, dentro dessa nova
política, mantém seus propósitos assimilacionistas
e de integração, através de uma educação
distante da interculturalidade, e mais ainda de uma educação
bilíngüe, já que todos os professores eram não-índios
e preocupavam-se em atender aos alunos não-índios. Diante
disso, encontramos um quadro natural de falta de professores, ‘desinteresse’
e desistência das crianças indígenas de freqüentarem
as aulas, precariedade de condições materiais, repetência
(Tommasino, 1997, p. 118). Um dos resultados da atuação desse
tipo de escola foi a perda da língua materna pelos alunos índios
que a freqüentavam, e a sua integração marginal no sistema
econômico da região.
Em 1964 o SPI sofre mais uma crise irremediável, entrando num
processo de decomposição que culmina com a criação
da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, através
da Lei nº 5371, de 05.12.67. Com isto, a FUNAI aglomera o SPI e todos
os órgãos que se encarregavam de executar a política
indigenista oficial.
VALORIZAÇÃO DA LÍNGUA MATERNA E ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS
A questão da preservação da língua materna
ganha corpo no início da atuação da FUNAI, e, nesse
sentido, a escola desempenharia um papel importante. Nesse período,
várias escolas foram construídas nas áreas indígenas.
Segundo pesquisa feita pelo antropólogo Sílvio Coelho dos
Santos, publicada em 1975, que abrangeu 19 áreas indígenas
da região sul, existiam 28 unidades escolares, sendo que todas elas
obedeciam ao padrão da escola isolada rural brasileira.
A Lei 6001 - O Estatuto do Índio de 1973 - é baseada
na Convenção nº 107, que tratava da proteção
e integração das populações indígenas,
adotada em Genebra, em 26 de junho de 1957. No Estatuto, o ensino bilíngüe
é entendido como uma forma de respeitar os valores tribais,
e o ensino da língua materna em escolas indígenas torna-se
obrigatório. De acordo com o presidente da FUNAI, no ano de 1975,
foi criado o que ele chamou de uma filosofia nesse campo: alfabetizar inicialmente
na língua indígena e posteriormente em português, cumprindo
o disposto no Estatuto do Índio, que preconiza a educação
bilíngüe (Oliveira, 1975, p. 10). Esta filosofia acaba levando
à situação do bilingüismo de substituição,
no qual gradativamente abandona-se a língua materna em favor do
uso exclusivo da língua portuguesa (apud Lemos, 1997, p. 23),
o que na prática foi mais uma situação contraditória;
a educação era pautada em um dos mecanismos utilizados para
fazer avançar o processo integracionista, com mais um agravante:
neste processo, desempenha papel decisivo o SIL: aliando métodos
lingüísticos e proselitismo religioso. (Silva & Heck, 1994,
p. 22)
O SIL - Summer Institute of Linguistics, vinculado à Missão
do Cristianismo Decidido - MDC, chega ao Brasil em 1956, patrocinado por
uma fundação norte-americana que tinha como principal objetivo
a tradução da bíblia para diferentes línguas
e que, a partir da década de 70, é chamado pelo governo brasileiro,
a fim de que pudesse cooperar na pretendida "educação bilíngüe".
Assim, o Instituto passa a realizar, de certa forma oficial, os estudos
da língua de determinados grupos indígenas, que resultaram
na confecção de cartilhas e preparo de monitores índios
escolhidos pelos chefes dos postos indígenas.
Coube à missionária e lingüista Ursula Wiesemann
o estudo da língua kanhgág, a posterior classificação
de cinco dialetos e a sistematização do ensino bilíngüe
nas aldeias. A preparação para esse ensino era realizada
na Escola Indígena Clara Camarão, localizada no Posto Indígena
Guarita, no Rio Grande do Sul, que teve suas atividades iniciadas em 1970,
formando em 1972 a primeira turma composta por 18 alunos, titulados monitores
bilíngües e, com exceção dos que não quiseram,
aproveitados nos quadros de funcionários da FUNAI. Passavam, então,
a desenvolver suas atividades nas escolas das aldeias de origem, em contato
constante com a Escola Indígena Clara Camarão que os orientava
em relação aos conteúdos e uso do material. Os monitores
da primeira turma, ao retornarem às suas aldeias, encontraram muitas
dificuldades e falta de apoio de seus superiores, pois eram os primeiros
a enfrentarem esta luta. (Silveira, s/d, p. 12) As dificuldades continuaram
a ser enfrentadas pelos monitores formados nas turmas seguintes, com agravante
para a terceira turma, quando a efetivação nos quadros da
FUNAI não era mais garantida.
A segunda turma começou em 1973, e em 1976 12 monitores foram
formados. Já em 1977, as atividades da Escola passam a ser desenvolvidas
em outro estabelecimento, na mesma área indígena, e a escola
passa a chamar-se Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão
- CTPCC, iniciando um grupo de 43 alunos, divididos em duas turmas: uma
destinada à formação de monitores bilíngües
e outra à formação de monitores agrícolas.
Desse grupo, 36 alunos formaram-se em 1980, sendo 13 monitores agrícolas
e 23 monitores bilíngües.
Para Silva e Azevedo,
Os objetivos do S.I.L., (...) nunca foram diferentes dos de qualquer
missão tradicional: a conversão dos gentios e a salvação
de suas almas. (...) No quadro deste modelo ‘alternativo’, a questão
não era mais abolir grosseiramente a diferença, mas sim domesticá-la.(...)
Neste quadro as línguas indígenas passaram a representar
meios de ‘educação’ desses povos a partir de valores e conceitos
‘civilizados’ (1995, p. 151).
O SIL fazia parte do conjunto de organizações não-governamentais,
posteriormente conhecidas por ONG's, mas que nesse período começavam
a surgir com o objetivo de apoiar as causas indígenas através
da execução de projetos ditos ‘alternativos’. As ações
dessas organizações acabam proporcionando encontros entre
as lideranças indígenas em diversas regiões do país,
propiciando uma mobilização mais ordenada dos líderes
em suas reivindicações junto ao governo e suas entidades.
COMPROMISSOS POLÍTICOS E NOVOS RUMOS
As reivindicações se fizeram presentes durante a Assembléia
Nacional Constituinte, através das inúmeras visitas que as
lideranças indígenas fizeram aos parlamentares, vigílias
e manifestações, conquistando destaque na mídia que
abordava questões ligadas aos índios, principalmente à
questão da demarcação de terras e ao andamento dos
trabalhos da Sub-comissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minoria . Com a promulgação da Constituição
em 1988, asseguram-se às comunidades indígenas os direitos
genéricos que toda a população brasileira tem em relação
à educação, com destaques ao respeito aos valores
culturais, uso da língua materna e processos próprios de
aprendizagem, bem como à garantia de proteção das
manifestações culturais.
Através de Decreto Presidencial, em 1991 o governo retira grande
parte das responsabilidades da FUNAI, dividindo-as entre os respectivos
ministérios. Ao Ministério da Educação foi
transferida a responsabilidade de coordenar as ações referentes
à educação indígena. Tais ações
deveriam ser desenvolvidas pelas Secretarias de Educação
dos Estados e Municípios em consonância com as Secretarias
Nacionais de Educação do Ministério da Educação.
(Artigo 1 e 2 do Decreto Presidencial, nº26 de 04.02.91)
A reação contrária das lideranças indígenas
a este Decreto Presidencial fez com que o Governo Federal baixasse uma
Portaria Interministerial regulamentando as ações do Ministério
da Educação e colocando, entre outros, o seguinte objetivo:
que as ações educacionais destinadas às populações
indígenas fundamentem-se no reconhecimento de suas organizações
sociais, costumes, línguas, crenças e nos seus processos
próprios de transmissão do saber. (Portaria Interministerial
559, de 16.04.91) Além disso, juntamente com mais duas portarias,
as de nº 60/92 e 490/93, institui-se o Comitê de Educação
Escolar Indígena com a finalidade de ‘subsidiar as ações
e proporcionar apoio técnico-científico às decisões
que envolvem a adoção de normas e procedimentos relacionados
com o Programa de Educação Escolar Indígena’ (MEC,
1994, p.10). Outra conseqüência dessas portarias foi a criação
de Núcleos de Educação Indígena - NEI’s - em
diversas Secretarias de Estado da Educação como, por exemplo,
na do Estado do Paraná, cabendo a eles a tarefa de formular as políticas
estaduais de educação indígena.
No ano de 1987, um convênio é firmado entre a Universidade
Estadual de Londrina – UEL - e a FUNAI (administração regional
de Londrina), com a finalidade de atender às reivindicações
das lideranças indígenas preocupadas em melhorar as condições
de vida de suas comunidades. Entre os projetos de pesquisa e extensão
criados a partir desse convênio, um estava relacionado à educação
escolar indígena.
Cria-se, então, um grupo multidisciplinar composto por
professores ligados às áreas de matemática, letras,
psicologia e ciências sociais e uma pedagoga da FUNAI, a fim de repensar
o formato das aulas que, naquela ocasião, seguiam as mesmas linhas
pedagógicas elaboradas para as escolas rurais dos municípios
próximos às terras indígenas e que, assim, não
levavam em consideração, entre outros fatores, o ensino bilíngüe
(cf. Tommasino, 1993, p.21). O grupo passa a chamar-se Mig, onça
na língua kanhgág, realizando cursos para os professores
indígenas, procurando produzir materiais didáticos próprios
para as escolas das aldeias, sempre valorizando a participação
dos professores e das comunidades.
A formação de outro grupo disposto a aproximar-se
das questões ligadas à educação escolar indígena
ocorre em 1997, quando a ONG Apeart - Associação Projeto
Educação do Assalariado Rural Temporário - observando
o aumento do número de alunos indígenas nas salas de aula
das escolas próximas às aldeias, destinadas à educação
de jovens e adultos da região rural de Londrina, acaba montando
um projeto piloto voltado para os alunos indígenas, utilizando-se
da estrutura das escolas das aldeias, para levar o ensino supletivo de
5ª a 8ª série. O projeto passa a chamar-se PERI - Projeto
Educação Reviver Indígena, nome escolhido pelas pessoas
envolvidas, alunos e professores, e envereda na discussão da elaboração
de um projeto pedagógico próprio, específico e bilíngüe.
O que se percebe na atuação desses dois grupos
é a preocupação de evitar que as comunidades sejam
vítimas da ignorância de 'agentes simpáticos à
causa'. A dificuldade encontra-se em conciliar ação pedagógica
com pesquisas e, nesse sentido, as palavras de Silva caracterizam bem o
que isso pode significar:
(...) Os assessores e técnicos em Educação Escolar
Indígena, assim como suas agências (do governo e das ONGs),
precisam compreender, antes de mais nada, o que são organizações
sociais, costumes, crenças e tradições dos povos indígenas.
(...) Caso contrário, os programas de Educação Escolar
Indígena poderão ser pautados por uma ideologia de indianidade
genérica, onde noções como organizações
sociais, costumes e tradições dos povos indígenas
são desprovidas de um sentido mais profundo e tomadas como detalhes
pitorescos.(...) (1994, p. 49)
A ESCOLA REAVALIADA
A gênese do conhecimento matemático kanhgág
está na estrutura de sua organização social e é
resultado de um processo histórico, no qual foram adquirindo e acumulando
observações e experiências através de interações
com o ambiente, onde foram criando estratégias, técnicas
e classificações. Buscavam explicações e ordenação
do mundo e de suas realidades que diante da necessidade de alterações
exigiram um processo de reavaliação. Nesse processo, conotações
são atribuídas, em certos casos, com sentidos bem diferentes
dos que tinham antes da transformação (Ver Sahlins, 1997).
A educação escolar reavaliada pelos indígenas, a partir
de seus referenciais, surpreendeu as pessoas envolvidas com as atividades
escolares civilizatórias ou religiosas e, certamente, os próprios
indígenas, resultando em atitudes que nunca foram, nem serão,
de adaptação, mas sim de resistência, quando através
de imposição, e de criação, quando resultado
de diálogo.
O aspecto alienígena das escolas em áreas indígenas
é algo obviamente perceptível, mas demorou séculos
para ser admitido. Num espaço chamado escola, duas maneiras de educação,
próprias de culturas distintas, e, portanto, com historicidades
diferentes. As influências naturais das especificidades culturais
ganham importância e passam a ser aceitas, na tentativa de fazer
com que as escolas sejam um ambiente no qual as comunidades que as freqüentam
possam reproduzir suas culturas, já que a transformação
de uma cultura também é um modo de sua reprodução
(Sahlins, 1997, p. 174).
Diante de ameaças provenientes do movimento da sociedade
majoritária que, como vimos, é historicamente constante,
os indígenas passam a ver na educação escolar uma
forma de aprender a se movimentar melhor no mundo de fora das aldeias,
buscando garantir o exercício de seus direitos. Hoje, a necessidade
de tomar decisões é devida a projetos de barragens hidrelétricas
que, caso venham a ser construídas, alagarão regiões
de importância cultural incalculável; é, igualmente,
devida à preocupação com doenças como a tuberculose,
a AIDS, o alcoolismo. O espaço escolar tornou-se o lugar onde se
podem discutir estratégias de ações capazes de intervir
na melhoria das condições de vida das comunidades,
capazes de lidar com os malefícios à saúde causados
pelo contato com a sociedade circundante e capazes de registrar a história,
a cultura e a língua, fazendo uso de outros recursos.
A participação dos professores indígenas e das
comunidades vem tornando-se maior e mais efetiva. Através de erros
e acertos, sempre é possível um pequeno e valorizado avanço.
A prática, através de iniciativas simples, leva a reflexões
que questionam e desqualificam posturas teóricas, bem como processos
de avaliação desconexos com a realidade das comunidades.
Somente nos últimos anos, transcorrido tanto tempo de uma prática
imprópria, é que se busca responder de modo apropriado à
necessidade de vincular os projetos educacionais aos projetos de suas comunidades.
Segundo depoimento do professor kanhgág Bruno Ferreira, do Rio Grande
do Sul,
(...) Primeiro, acho que em qualquer parte do país, quando se
coloca uma escola para dentro de uma comunidade indígena, os índios
não sabem para que serve uma escola: eles não conhecem a
escola; não sabem quais os objetivos da escola; o que ela quer fazer
lá; o que ela está tentando fazer lá. Se ela quer
melhorar ou quer piorar, ou quer afundar ou quer acabar ou quer exterminar
os índios, ninguém sabe. Mas quem coloca a escola, sabe o
que quer com a escola. E hoje os índios começam a tomar as
rédeas da escola.(...) (Ferreira, 1997, p. 214)
SABER FAZENDO, FAZER SABENDO
A educação escolar indígena requer não
apenas uma intensa experiência em desenvolvimento curricular, mas
também métodos de investigação e pesquisa para
compreender as práticas culturais do grupo (MEC, 1994, p. 13). Esta
compreensão fará com que educadores, geralmente não
falantes da língua materna dos educandos, levem em consideração
modos específicos de percepção, de afetividade, de
sociabilidade, o que deverá resultar na reavaliação
de noções que já trazem arraigadas, como a noção
de inteligência e de capacidades cognitivas.
No cotidiano das comunidades kanhgág a idéia de
que, se alguém sabe, faz, e para fazer é preciso saber (D'Ambrosio,
1990, p. 61) orienta a relação entre ensino e aprendizagem.
As crianças aprendem segundo um ritmo próprio e individual,
sempre cercadas por outras pessoas da família, geralmente numerosa,
participando das mais variadas atividades, desde que dentro de suas limitações.
Os mais velhos, sejam irmãos, tios, avós ou pais, assumem
uma atitude de acompanhamento e incentivo no processo de aquisição
de novas habilidades.
Os que ocupam posição que lhes confere a capacidade de
ensinar o fazem sempre realizando aquilo que desejam que a criança
aprenda como: cortar lenha, cozinhar, pescar, trançar as fitas da
taquara e socar grãos no pilão dentre tantas outras tarefas.(...)
(Pereira, 1998, p. 121)
A ação pedagógica escolar deve ser acompanhada
de uma prática que contribua para a elaboração de
novos significados, no caso, significados da disciplina de matemática.
Entretanto, é preciso que se diga que os significados encontrados
fora da escola, no cotidiano das famílias das comunidades, não
devem ser utilizados como degraus, facilitadores da aprendizagem, ou pré-requisitos
para a compreensão de algo tido como formalizado. A atenção
deve ser dada à maneira como esses significados, embora diferentes,
são elaborados de forma semelhante. O que se propõe é
a alternativa apontada por Lins e Gimenez, professores preocupados com
os rumos do ensino da aritmética e álgebra, e defendem
(...) que o papel da escola é participar da análise e
da tematização dos significados da matemática de rua
- no caso particular da Educação Matemática -, e do
desenvolvimento de novos significados, possivelmente matemáticos,
que irão coexistir com os significados não-matemáticos,
em vez de tentar substituí-los. (1997, p.18)
Uma estratégia de ensino-aprendizagem pode ser a que envolva
a formulação de problemas. Em uma intervenção
que fiz na escola de uma das comunidades, levei para sala de aula o tema
problema. Os exemplos de problemas surgiram logo, antes de uma idéia
mais consensual do que poderia ser um problema. Em relação
ao cotidiano da aldeia, os problemas citados foram: a falta de água,
bem como de seu tratamento; a falta de material escolar; a falta de casas
para morar; os impactos da construção da usina hidrelétrica;
a condição precária das estradas que dão acesso
à aldeia; o lixo e o esgoto domésticos; a falta de uma ambulância;
a preguiça, falta de iniciativa de alunos e lideranças da
comunidade e a falta de computador, os quais podem ser tratados matematicamente
ou, pelo menos, em suas soluções aparecem características
que necessitam de uma leitura matemática, sendo que surge a necessidade
de quantificar e tabelar dados, criar modelos capazes de nortear as ações,
que apontem ou não para as soluções.
Aqui, valem as orientações de D'Ambrosio (1986,
p. 51), segundo as quais os modelos devem ser vistos como uma estratégia
de ação na fase já socializável do conhecimento,
isto é, possibilitando a utilização de outros modelos,
acumulados na forma de conhecimento tradicional compartilhado pelo grupo
social ou mesmo cultural, valorizando-se a dinâmica da recriação,
o potencial de reutilização em novas situações,
e não os modelos estáticos, limitados a situações
específicas. Além disso, para ele, (...) a transferência
de aprendizagem resultante de uma certa situação para uma
situação nova é um ponto crucial do que se poderia
chamar aprendizado da Matemática, e talvez o objetivo maior do seu
ensino. (D'Ambrosio, 1986, p. 44) A possibilidade de utilização
de outros modelos que já foram incorporados à sua realidade,
e que é a essência do processo criativo, deveria constituir
o ponto focal dos sistemas educativos, incentivando os alunos a escreverem
pois a passagem da etnomatemática para a matemática pode
ser vista como a passagem da linguagem oral para a escrita (D'Ambrosio,
1990, p. 35).
O desenvolvimento da capacidade de interpretar e manejar sinais
e códigos e de propor e utilizar modelos na vida quotidiana do aluno
(un-venh-kanh rãn ti) deve ser uma das preocupações
quando pensarmos em experiências (ki kanhró) a serem propostas
na disciplina de matemática. Elas deverão despertar a curiosidade
(ki kanhrãn sór), a satisfação de aprender
(venh-kanhrãn) e de ensinar (venh-kãggran). Fazer com que
eles exercitem a materacia, que trata do manejo, do entendimento e do seqüenciamento
de códigos e símbolos para a elaboração de
modelos e suas aplicações no quotidiano. O que se espera
com isso é o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de
se desempenhar em situações novas. (D'Ambrosio, 1998)
Enfim, a proposta é de estabelecer um modelo próprio,
e, neste caso, transcultural, possibilitando o diálogo e a criatividade,
ao invés da mera execução de tarefas ligadas a programas
desconexos com a realidade dos alunos e de suas famílias, que, na
maioria das vezes, objetivam a unicidade de diferenças.
A educação escolar indígena tem muito a contribuir
para as discussões relacionadas à educação
escolar não-indígena, principalmente as voltadas para as
minorias étnicas.
NOTA
1. Este texto é parte da dissertação apresentada
pelo autor à Unesp/Rio Claro/SP, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Educação
Matemática, em maio de 1999. O título original da dissertação
é: “Os Kanhgág da Bacia do Tibagi: um estudo etnomatemático
em comunidades indígenas”, trabalho que teve a orientação
do Professor Ubiratan D’Ambrosio. A pesquisa foi realizada com o auxílio
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo - FAPESP.
2. Doutorando em Educação Matemática. Unesp/Rio
Claro – Bolsista CAPES/DS.
E-mail: chateau@rc.unesp.br
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