Educação escolar em comunidades indígenas kanhgág da bacia do tibagi

Chateaubriand Nunes Amancio


RESUMO
O processo histórico não deixa dúvidas quanto às transformações que tiveram que sofrer as comunidades kanhgág. A educação, entendida aqui como a ‘educação escolar’, atuou neste processo de maneira fundamental e com interesses alheios à cultura indígena. Aqui, procuramos nos ater aos Kanhgág da bacia do rio Tibagi, região norte paranaense e tecemos algumas considerações sobre a disciplina de matemática.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Escolar Indígena; Etnomatemática; Kanhgág

OS KANHGÁG
Uma análise histórica dos últimos 150 anos de contato dos Kanhgág da bacia do rio Tibagi, norte do Estado do Paraná, com a sociedade não-indígena ajuda-nos a compreender as mudanças que ocorreram, sempre acompanhadas de imposições à dinâmica cultural do grupo, obrigado a submeter-se às novas exigências.
 A bula do papa Paulo III, de 1537, considerava os índios Guarani homens como os outros e, portanto, possuidores de alma. Assim, os esforços dos jesuítas espanhóis voltam-se para a ‘recondução’ dos índios à fé cristã - em latim, reductione. Então, eles passam a fundar as chamadas reduções, lugares onde viviam a população indígena e, geralmente, dois jesuítas, sendo um deles o encarregado da administração da redução (Maxime, 1990, p. 15). Nessa época, o estado do Paraná chamava-se Guayrá, e entre 1620 e 1640 foram fundadas várias reduções jesuíticas espanholas, chegando a contar com 17 reduções, abrigando mais de 200 mil índios guaranis (Mota, 1994, p. 69). Apesar de as reduções terem abrigado mais índios guaranis, é possível encontrar afirmações de que também chegaram a ter pequenos grupos de Kanhgág, sendo considerado o contato mais duradouro desse grupo com a sociedade colonial (cf. Veiga, 1994). Os índios kanhgág, então chamados pelos jesuítas espanhóis de Gualachos, continuaram a viver embrenhados nas florestas dos campos guairenhos, procurando resistir aos ataques dos bandeirantes paulistas.
 Na segunda metade do século XVIII, várias expedições militares foram aos territórios orientais do rio Paraná, seguindo orientações do marquês de Pombal. Somente com um decreto de 1831, o imperador brasileiro revoga as cartas régias que legalizavam a guerra aos índios e a sua escravidão. Nessa época, é fundado o primeiro aldeamento no norte do atual estado do Paraná, que recebeu o nome de Aldeamento São Pedro de Alcântara e foi povoado pelos índios kayoá (Tommasino, 1995, p. 107). Em 1840, missionários capuchinhos chegam à província do Paraná, vindos da Itália, para ministrar a catequese aos indígenas.
 João da Silva Machado, que mais tarde se tornaria o Barão de Antonina, envia em 1845 homens para os territórios adjacentes aos rios Paranapanema, Tibagi, Paraná e Ivaí. A expedição registra evidências da presença indígena nas margens do rio Tibagi, documentando inclusive que encontraram um alojamento kanhgág, que comportava cerca de 250 índios. Intensifica-se a ocupação da região norte do Paraná, e através do Decreto Imperial n.º 751, de 2 de janeiro de 1851, é criada a Colônia Militar de Jataí, nas margens do médio rio Tibagi, sendo que em 1853 o atual estado do Paraná deixa de ser a 5ª Comarca de São Paulo, tornando-se uma província com uma população indígena respeitável. Zacarias de Goes, o primeiro governador da então província do Paraná, reúne esforços para incentivar a colonização do interior da província que, na época, nada mais era que passagem entre São Paulo e o Rio Grande do Sul. No dia 21 de março de 1855, é baixada a lei 29, que tem como objetivo promover a imigração estrangeira (Mota, 1994, p. 32).
 Em abril de 1857, o governo imperial promulga o chamado Regulamento das Colônias Indígenas, que regularizava e determinava a criação de quatro colônias indígenas na província do Paraná e quatro na do Mato Grosso. Localizada na margem oposta à da Colônia Militar de Jataí, a já existente colônia indígena de São Pedro de Alcântara, a partir de então, adapta-se às normas do novo regulamento.
 Os Kanhgág, nessa época, possuíam uma imagem de selvageria e ferocidade, devido à resistência que faziam para conter a expansão colonial em seus territórios, e  eram conhecidos por Coroados, pois raspavam a cabeça em forma de coroa. A partir de dezembro de 1858, nas margens do rio Tibagi, intensificam-se os contatos entre eles, “brancos” e os índios guaranis kayoá.

ASSIMILAÇÃO E INTEGRAÇÃO
É também na segunda metade do século XIX que se inicia uma educação baseada numa política de assimilação cultural e integração econômica das populações indígenas. Em 1876, registrou-se a freqüência de índios nas escolas dos aldeamentos de São Pedro de Alcântara e São Jerônimo. Estas escolas atendiam a crianças não-índias, filhos de funcionários dos aldeamentos e da Colônia Militar de Jataí, e dos moradores dos arredores (apud Lemos, 1997, p. 13).
No início do século XX, a invasão da sociedade ocidental nos territórios kanhgág intensifica-se com o propósito de explorá-los, por exemplo, através da extração predatória de madeira. O Serviço de Proteção ao Índio - SPI, criado em 1910, objetiva reformular a política indigenista, a partir das idéias do General Cândido Rondon, influenciadas pelas concepções positivistas, as quais valorizavam a prática e seus resultados. Vinte anos depois de sua criação, o General Rondon, já desgastado e enfraquecido devido a várias polêmicas, é afastado da chefia do órgão pelo governo revolucionário que se instalou no país.
O órgão passa a incorporar em seu discurso a diversidade cultural e lingüística dos povos indígenas, procurando mostrar uma preocupação que começa a ter um espaço maior a partir de 1940, tentando, com isso, a recuperação de sua imagem e a conquista de certo prestígio. Interessante é que esse tipo de preocupação era reforçado pelas discussões que envolviam o receio de que ocorresse o processo de aculturação que supunha a perda da cultura de um dado grupo quando em contato com outro tecnologicamente superior  (Thomaz, 1995, p. 438).
O SPI passa a contratar intelectuais como Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro, que resulta em trabalhos de elevada qualidade (cf. Oliveira, 1975). No entanto, esta qualidade não consegue chegar no mesmo nível às escolas que funcionavam nas aldeias. A escola, dentro dessa nova política, mantém seus propósitos assimilacionistas e de integração, através de uma educação distante da interculturalidade, e mais ainda de uma educação bilíngüe, já que todos os professores eram não-índios e preocupavam-se em atender aos alunos não-índios. Diante disso, encontramos um quadro natural de falta de professores, ‘desinteresse’ e desistência das crianças indígenas de freqüentarem as aulas, precariedade de condições materiais, repetência (Tommasino, 1997, p. 118). Um dos resultados da atuação desse tipo de escola foi a perda da língua materna pelos alunos índios que a freqüentavam, e a sua integração marginal no sistema econômico da região.
Em 1964 o SPI sofre mais uma crise irremediável, entrando num processo de decomposição que culmina com a criação da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, através da Lei nº 5371, de 05.12.67. Com isto, a FUNAI aglomera o SPI e todos os órgãos que se encarregavam de executar a política indigenista oficial.

VALORIZAÇÃO DA LÍNGUA MATERNA E ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS
A questão da preservação da língua materna ganha corpo no início da atuação da FUNAI, e, nesse sentido, a escola desempenharia um papel importante. Nesse período, várias escolas foram construídas nas áreas indígenas. Segundo pesquisa feita pelo antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, publicada em 1975, que abrangeu 19 áreas indígenas da região sul, existiam 28 unidades escolares, sendo que todas elas obedeciam ao padrão da escola isolada rural brasileira.
A Lei 6001 - O Estatuto do Índio de 1973 - é baseada na Convenção nº 107, que tratava da proteção e integração das populações indígenas, adotada em Genebra, em 26 de junho de 1957. No Estatuto, o ensino bilíngüe é entendido como uma forma de respeitar os valores tribais,  e o ensino da língua materna em escolas indígenas torna-se obrigatório. De acordo com o presidente da FUNAI, no ano de 1975, foi criado o que ele chamou de uma filosofia nesse campo: alfabetizar inicialmente na língua indígena e posteriormente em português, cumprindo o disposto no Estatuto do Índio, que preconiza a educação bilíngüe (Oliveira, 1975, p. 10). Esta filosofia acaba levando à situação do bilingüismo de substituição, no qual gradativamente abandona-se a língua materna em favor do uso exclusivo da língua portuguesa (apud Lemos, 1997, p. 23),  o que na prática foi mais uma situação contraditória; a educação era pautada em um dos mecanismos utilizados para fazer avançar o processo integracionista, com mais um agravante: neste processo, desempenha papel decisivo o SIL: aliando métodos lingüísticos e proselitismo religioso. (Silva & Heck, 1994, p. 22)
O SIL - Summer Institute of Linguistics, vinculado à Missão do Cristianismo Decidido - MDC, chega ao Brasil em 1956, patrocinado por uma fundação norte-americana que tinha como principal objetivo a tradução da bíblia para diferentes línguas e que, a partir da década de 70, é chamado pelo governo brasileiro, a fim de que pudesse cooperar na pretendida "educação bilíngüe". Assim, o Instituto passa a realizar, de certa forma oficial, os estudos da língua de determinados grupos indígenas, que resultaram na confecção de cartilhas e preparo de monitores índios escolhidos pelos chefes dos postos indígenas.
Coube à missionária e lingüista Ursula Wiesemann o estudo da língua kanhgág, a posterior classificação de cinco dialetos e a sistematização do ensino bilíngüe nas aldeias. A preparação para esse ensino era realizada na Escola Indígena Clara Camarão, localizada no Posto Indígena Guarita, no Rio Grande do Sul, que teve suas atividades iniciadas em 1970, formando em 1972 a primeira turma composta por 18 alunos, titulados monitores bilíngües e, com exceção dos que não quiseram, aproveitados nos quadros de funcionários da FUNAI. Passavam, então, a desenvolver suas atividades nas escolas das aldeias de origem, em contato constante com a Escola Indígena Clara Camarão que os orientava em relação aos conteúdos e uso do material. Os monitores da primeira turma, ao retornarem às suas aldeias, encontraram muitas dificuldades e falta de apoio de seus superiores, pois eram os primeiros a enfrentarem esta luta. (Silveira, s/d, p. 12) As dificuldades continuaram a ser enfrentadas pelos monitores formados nas turmas seguintes, com agravante para a terceira turma, quando a efetivação nos quadros da FUNAI não era mais garantida.
A segunda turma começou em 1973, e em 1976 12 monitores foram formados. Já em 1977, as atividades da Escola passam a ser desenvolvidas em outro estabelecimento, na mesma área indígena, e a escola passa a chamar-se Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão - CTPCC, iniciando um grupo de 43 alunos, divididos em duas turmas: uma destinada à formação de monitores bilíngües e outra à formação de monitores agrícolas. Desse grupo, 36 alunos formaram-se em 1980, sendo 13 monitores agrícolas e 23 monitores bilíngües.
Para Silva e Azevedo,
Os objetivos do S.I.L., (...) nunca foram diferentes dos de qualquer missão tradicional: a conversão dos gentios e a salvação de suas almas. (...) No quadro deste modelo ‘alternativo’, a questão não era mais abolir grosseiramente a diferença, mas sim domesticá-la.(...) Neste quadro as línguas indígenas passaram a representar meios de ‘educação’ desses povos a partir de valores e conceitos ‘civilizados’ (1995, p. 151).
O SIL fazia parte do conjunto de organizações não-governamentais, posteriormente conhecidas por ONG's, mas que nesse período começavam a surgir com o objetivo de apoiar as causas indígenas através da execução de projetos ditos ‘alternativos’. As ações dessas organizações acabam proporcionando encontros entre as lideranças indígenas em diversas regiões do país, propiciando uma mobilização mais ordenada dos líderes em suas reivindicações junto ao governo e suas entidades.

COMPROMISSOS POLÍTICOS E NOVOS RUMOS
As reivindicações se fizeram presentes durante a Assembléia Nacional Constituinte, através das inúmeras visitas que as lideranças indígenas fizeram aos parlamentares, vigílias e manifestações, conquistando destaque na mídia que abordava questões ligadas aos índios, principalmente à questão da demarcação de terras e ao andamento dos trabalhos da Sub-comissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minoria . Com a promulgação da Constituição em 1988, asseguram-se às comunidades indígenas os direitos genéricos que toda a população brasileira tem em relação à educação, com destaques ao respeito aos valores culturais, uso da língua materna e processos próprios de aprendizagem, bem como à garantia de proteção das manifestações culturais.
Através de Decreto Presidencial, em 1991 o governo retira grande parte das responsabilidades da FUNAI, dividindo-as entre os respectivos ministérios. Ao Ministério da Educação foi transferida a responsabilidade de coordenar as ações referentes à educação indígena. Tais ações deveriam ser desenvolvidas pelas Secretarias de Educação dos Estados e Municípios em consonância com as Secretarias Nacionais de Educação do Ministério da Educação. (Artigo 1 e 2 do Decreto Presidencial, nº26 de 04.02.91)
A reação contrária das lideranças indígenas a este Decreto Presidencial fez com que o Governo Federal baixasse uma Portaria Interministerial regulamentando as ações do Ministério da Educação e colocando, entre outros, o seguinte objetivo: que as ações educacionais destinadas às populações indígenas fundamentem-se no reconhecimento de suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e nos seus processos próprios de transmissão do saber. (Portaria Interministerial 559, de 16.04.91) Além disso, juntamente com mais duas portarias, as de nº 60/92 e 490/93, institui-se o Comitê de Educação Escolar Indígena com a finalidade de ‘subsidiar as ações e proporcionar apoio técnico-científico às decisões que envolvem a adoção de normas e procedimentos relacionados com o Programa de Educação Escolar Indígena’ (MEC, 1994, p.10). Outra conseqüência dessas portarias foi a criação de Núcleos de Educação Indígena - NEI’s - em diversas Secretarias de Estado da Educação como, por exemplo, na do Estado do Paraná, cabendo a eles a tarefa de formular as políticas estaduais de educação indígena.
 No ano de 1987, um convênio é firmado entre a Universidade Estadual de Londrina – UEL - e a FUNAI (administração regional de Londrina), com a finalidade de atender às reivindicações das lideranças indígenas preocupadas em melhorar as condições de vida de suas comunidades. Entre os projetos de pesquisa e extensão criados a partir desse convênio, um estava relacionado à educação escolar indígena.
 Cria-se, então, um grupo multidisciplinar composto por professores ligados às áreas de matemática, letras, psicologia e ciências sociais e uma pedagoga da FUNAI, a fim de repensar o formato das aulas que, naquela ocasião, seguiam as mesmas linhas pedagógicas elaboradas para as escolas rurais dos municípios próximos às terras indígenas e que, assim, não levavam em consideração, entre outros fatores, o ensino bilíngüe (cf. Tommasino, 1993, p.21). O grupo passa a chamar-se Mig, onça na língua kanhgág, realizando cursos para os professores indígenas, procurando produzir materiais didáticos próprios para as escolas das aldeias, sempre valorizando a participação dos professores e das comunidades.
 A formação de outro grupo disposto a aproximar-se das questões ligadas à educação escolar indígena ocorre em 1997, quando a ONG Apeart - Associação Projeto Educação do Assalariado Rural Temporário - observando o aumento do número de alunos indígenas nas salas de aula das escolas próximas às aldeias, destinadas à educação de jovens e adultos da região rural de Londrina, acaba montando um projeto piloto voltado para os alunos indígenas, utilizando-se da estrutura das escolas das aldeias, para levar o ensino supletivo de 5ª a 8ª série. O projeto passa a chamar-se PERI - Projeto Educação Reviver Indígena, nome escolhido pelas pessoas envolvidas, alunos e professores, e envereda na discussão da elaboração de um projeto pedagógico próprio, específico e bilíngüe.
 O que se percebe na atuação desses dois grupos é a preocupação de evitar que as comunidades sejam vítimas da ignorância de 'agentes simpáticos à causa'. A dificuldade encontra-se em conciliar ação pedagógica com pesquisas e, nesse sentido, as palavras de Silva caracterizam bem o que isso pode significar:
(...) Os assessores e técnicos em Educação Escolar Indígena, assim como suas agências (do governo e das ONGs), precisam compreender, antes de mais nada, o que são organizações sociais, costumes, crenças e tradições dos povos indígenas. (...) Caso contrário, os programas de Educação Escolar Indígena poderão ser pautados por uma ideologia de indianidade genérica, onde noções como organizações sociais, costumes e tradições dos povos indígenas são desprovidas de um sentido mais profundo e tomadas como detalhes pitorescos.(...) (1994, p. 49)

A ESCOLA REAVALIADA
 A gênese do conhecimento matemático kanhgág está na estrutura de sua organização social e é resultado de um processo histórico, no qual foram adquirindo e acumulando observações e experiências através de interações com o ambiente, onde foram criando estratégias, técnicas e classificações. Buscavam explicações e ordenação do mundo e de suas realidades que diante da necessidade de alterações exigiram um processo de reavaliação. Nesse processo, conotações são atribuídas, em certos casos, com sentidos bem diferentes dos que tinham antes da transformação (Ver Sahlins, 1997). A educação escolar reavaliada pelos indígenas, a partir de seus referenciais, surpreendeu as pessoas envolvidas com as atividades escolares civilizatórias ou religiosas e, certamente, os próprios indígenas, resultando em atitudes que nunca foram, nem serão, de adaptação, mas sim de resistência, quando através de imposição, e de criação, quando resultado de diálogo.
 O aspecto alienígena das escolas em áreas indígenas é algo obviamente perceptível, mas demorou séculos para ser admitido. Num espaço chamado escola, duas maneiras de educação, próprias de culturas distintas, e, portanto, com historicidades diferentes. As influências naturais das especificidades culturais ganham importância e passam a ser aceitas, na tentativa de fazer com que as escolas sejam um ambiente no qual as comunidades que as freqüentam possam reproduzir suas culturas, já que a transformação de uma cultura também é um modo de sua reprodução (Sahlins, 1997, p. 174).
 Diante de ameaças provenientes do movimento da sociedade majoritária que, como vimos, é historicamente constante, os indígenas passam a ver na educação escolar uma forma de aprender a se movimentar melhor no mundo de fora das aldeias, buscando garantir o exercício de seus direitos. Hoje, a necessidade de tomar decisões é devida a projetos de barragens hidrelétricas que, caso venham a ser construídas, alagarão regiões de importância cultural incalculável; é, igualmente, devida à preocupação com doenças como a tuberculose, a AIDS, o alcoolismo. O espaço escolar tornou-se o lugar onde se podem discutir estratégias de ações capazes de intervir na melhoria das condições de vida das comunidades,  capazes de lidar com os malefícios à saúde causados pelo contato com a sociedade circundante e capazes de registrar a história, a cultura e a língua, fazendo uso de outros recursos.
A participação dos professores indígenas e das comunidades vem tornando-se maior e mais efetiva. Através de erros e acertos, sempre é possível um pequeno e valorizado avanço. A prática, através de iniciativas simples, leva a reflexões que questionam e desqualificam posturas teóricas, bem como processos de avaliação desconexos com a realidade das comunidades. Somente nos últimos anos, transcorrido tanto tempo de uma prática imprópria, é que se busca responder de modo apropriado à necessidade de vincular os projetos educacionais aos projetos de suas comunidades. Segundo depoimento do professor kanhgág Bruno Ferreira, do Rio Grande do Sul,
(...) Primeiro, acho que em qualquer parte do país, quando se coloca uma escola para dentro de uma comunidade indígena, os índios não sabem para que serve uma escola: eles não conhecem a escola; não sabem quais os objetivos da escola; o que ela quer fazer lá; o que ela está tentando fazer lá. Se ela quer melhorar ou quer piorar, ou quer afundar ou quer acabar ou quer exterminar os índios, ninguém sabe. Mas quem coloca a escola, sabe o que quer com a escola. E hoje os índios começam a tomar as rédeas da escola.(...) (Ferreira, 1997, p. 214)

SABER FAZENDO, FAZER SABENDO
 A educação escolar indígena requer não apenas uma intensa experiência em desenvolvimento curricular, mas também métodos de investigação e pesquisa para compreender as práticas culturais do grupo (MEC, 1994, p. 13). Esta compreensão fará com que educadores, geralmente não falantes da língua materna dos educandos, levem em consideração modos específicos de percepção, de afetividade, de sociabilidade, o que deverá resultar na reavaliação de noções que já trazem arraigadas, como a noção de inteligência e de capacidades cognitivas.
 No cotidiano das comunidades kanhgág a idéia de que, se alguém sabe, faz, e para fazer é preciso saber (D'Ambrosio, 1990, p. 61) orienta a relação entre ensino e aprendizagem. As crianças aprendem segundo um ritmo próprio e individual, sempre cercadas por outras pessoas da família, geralmente numerosa, participando das mais variadas atividades, desde que dentro de suas limitações. Os mais velhos, sejam irmãos, tios, avós ou pais, assumem uma atitude de acompanhamento e incentivo no processo de aquisição de novas habilidades.
Os que ocupam posição que lhes confere a capacidade de ensinar o fazem sempre realizando aquilo que desejam que a criança aprenda como: cortar lenha, cozinhar, pescar, trançar as fitas da taquara e socar grãos no pilão dentre tantas outras tarefas.(...)  (Pereira, 1998, p. 121)
 A ação pedagógica escolar deve ser acompanhada de uma prática que contribua para a elaboração de novos significados, no caso, significados da disciplina de matemática. Entretanto, é preciso que se diga que os significados encontrados fora da escola, no cotidiano das famílias das comunidades, não devem ser utilizados como degraus, facilitadores da aprendizagem, ou pré-requisitos para a compreensão de algo tido como formalizado. A atenção deve ser dada à maneira como esses significados, embora diferentes, são elaborados de forma semelhante. O que se propõe é a alternativa apontada por Lins e Gimenez, professores preocupados com os rumos do ensino da aritmética e álgebra, e defendem
(...) que o papel da escola é participar da análise e da tematização dos significados da matemática de rua - no caso particular da Educação Matemática -, e do desenvolvimento de novos significados, possivelmente matemáticos, que irão coexistir com os significados não-matemáticos, em vez de tentar substituí-los. (1997, p.18)
 Uma estratégia de ensino-aprendizagem pode ser a que envolva a formulação de problemas. Em uma intervenção que fiz na escola de uma das comunidades, levei para sala de aula o tema problema. Os exemplos de problemas surgiram logo, antes de uma idéia mais consensual do que poderia ser um problema. Em relação ao cotidiano da aldeia, os problemas citados foram: a falta de água, bem como de seu tratamento; a falta de material escolar; a falta de casas para morar; os impactos da construção da usina hidrelétrica; a condição precária das estradas que dão acesso à aldeia; o lixo e o esgoto domésticos; a falta de uma ambulância; a preguiça, falta de iniciativa de alunos e lideranças da comunidade e a falta de computador, os quais podem ser tratados matematicamente ou, pelo menos, em suas soluções aparecem características que necessitam de uma leitura matemática, sendo que surge a necessidade de quantificar e tabelar dados, criar modelos capazes de nortear as ações, que apontem ou não para as soluções.
 Aqui, valem as orientações de D'Ambrosio (1986, p. 51), segundo as quais os modelos devem ser vistos como uma estratégia de ação na fase já socializável do conhecimento, isto é, possibilitando a utilização de outros modelos, acumulados na forma de conhecimento tradicional compartilhado pelo grupo social ou mesmo cultural, valorizando-se a dinâmica da recriação, o potencial de reutilização em novas situações, e não os modelos estáticos, limitados a situações específicas. Além disso, para ele, (...) a transferência de aprendizagem resultante de uma certa situação para uma situação nova é um ponto crucial do que se poderia chamar aprendizado da Matemática, e talvez o objetivo maior do seu ensino. (D'Ambrosio, 1986, p. 44) A possibilidade de utilização de outros modelos que já foram incorporados à sua realidade, e que é a essência do processo criativo, deveria constituir o ponto focal dos sistemas educativos, incentivando os alunos a escreverem pois a passagem da etnomatemática para a matemática pode ser vista como a passagem da linguagem oral para a escrita (D'Ambrosio, 1990, p. 35).
 O desenvolvimento da capacidade de interpretar e manejar sinais e códigos e de propor e utilizar modelos na vida quotidiana do aluno (un-venh-kanh rãn ti) deve ser uma das preocupações quando pensarmos em experiências (ki kanhró) a serem propostas na disciplina de matemática. Elas deverão despertar a curiosidade (ki kanhrãn sór), a satisfação de aprender (venh-kanhrãn) e de ensinar (venh-kãggran). Fazer com que eles exercitem a materacia, que trata do manejo, do entendimento e do seqüenciamento de códigos e símbolos para a elaboração de modelos e suas aplicações no quotidiano. O que se espera com isso é o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de se desempenhar em situações novas. (D'Ambrosio, 1998)
 Enfim, a proposta é de estabelecer um modelo próprio, e, neste caso, transcultural, possibilitando o diálogo e a criatividade, ao invés da mera execução de tarefas ligadas a programas desconexos com a realidade dos alunos e de suas famílias, que, na maioria das vezes, objetivam a unicidade de diferenças.
A educação escolar indígena tem muito a contribuir para as discussões relacionadas à educação escolar não-indígena, principalmente as voltadas para as minorias étnicas.

NOTA
1. Este texto é parte da dissertação apresentada pelo autor à Unesp/Rio Claro/SP, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática, em maio de 1999. O título original da dissertação é: “Os Kanhgág da Bacia do Tibagi: um estudo etnomatemático em comunidades indígenas”, trabalho que teve a orientação do Professor Ubiratan D’Ambrosio. A pesquisa foi realizada com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.
2. Doutorando em Educação Matemática. Unesp/Rio Claro – Bolsista CAPES/DS.
E-mail: chateau@rc.unesp.br

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