Colóquio: A noção de cultura



 
 

APRESENTAÇÃO:

Estão aqui  presentes os professores doutores

Antonio Joaquim Severino da Faculdade de Educação da USP
Eduardo Sebastiani Ferreira da Universidade Federal de Ouro Preto / MG
Neusa Maria Mendes de Gusmão da Faculdade Educação UNICAMP
Marta Kohl de Oliveira da Faculdade de Educação da USP
 

A NOÇÃO DE CULTURA

Sebastiani - Continuando dentro da informalidade que foi a abertura, desse encontro, tanto é que estamos aqui reunidos com uma mesinha com flores, etc. É um bate papo, é mais um bate papo ... foi uma idéia que surgiu quando estavamos conversando, Maria do Carmo e eu, sobre a formação deste encontro.
Um conceito que trabalhamos na Etnomatemática e nos preocupa muito, que é o de cultura. É básico, é dinâmico, tanto a cultura é dinâmica como o conceito é dinâmico e para nós para ser sincero, ficamos às vezes “pisando em ovos” ao  se falar de cultura.
Então pensando nisto, convidamos três especialistas de renome que pudessem, dentro de suas áreas respectivas, falar um pouco para nós como eles entendem cultura, seu conceito de cultura, como é que trabalham. Estamos aqui com Marta Kohl, Neusa Gusmão e com Antonio Severino. Temos então uma psicóloga, uma antropóloga e um filósofo.
São pessoas que já pensaram neste conceito e que podem dar um esclarecimento um pouco melhor. Então, eu pediria à Marta para nos falar um pouco do seu conceito de cultura e cada um vai falar na sua área, depois vamos começar  o bate papo.

Marta - Bem, eu sou pedagoga de formação e trabalho com psicologia da educação; é do lugar da psicologia que vou falar, portanto, a respeito da cultura. Cultura é um conceito que não é central na psicologia dominante, ou seja, na psicologia o conceito de cultura não é um conceito proeminente. Ele é proeminente em determinada abordagem da psicologia na qual eu trabalho: a abordagem histórico-cultural justamente privilegia a cultura como um componente constitutivo da formação do psiquismo. Sendo assim, dentro da psicologia que interessa para a educação (que seria principalmente a psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem) a cultura entra como objeto relevante ao ser considerada como constitutiva da formação do psiquismo.
É difícil dar uma definição de cultura concisa, rápida e não sujeita a discussão: é mais fácil a gente cercar o conceito por várias entradas. Talvez uma coisa importante para dizer do ponto de vista da psicologia é que a gente pensa em cultura não como um conjunto de itens macroscópicos, itens sociológicos, como por exemplo a pertinência a uma classe social, o número de livros que a pessoa tem em casa, a escolaridade dos pais, o nível de prestígio da profissão da mãe, etc. A cultura que interessa para a psicologia é muito mais próxima do conceito da antropologia. É toda produção humana, material e simbólica, que circunda o sujeito, que é produzida por ele próprio e pelo grupo no qual ele está inserido. O sujeito interage o tempo inteiro com essa produção – artefatos, valores, modos de viver, práticas culturais, atividades. O sujeito de uma certa cultura é consumidor e produtor da cultura. Do ponto de vista da psicologia a cultura é a fonte principal da formação do psiquismo. Quer dizer, o psiquismo não nasce com o sujeito, não é construído por ele isoladamente, mas é internalizado a partir da cultura. Eu acho que essa seria uma primeira aproximação; talvez a gente possa passar para a Neusa e depois a gente vai voltando e aprofundando a discussão.

Sebastiani - Vou passar então para Neusa, que vai falar do ponto de vista da  antropologia.

Neusa - Bem, é sempre muito difícil de falar em um só lugar, professor, creio que, é pela própria fala da professora Marta se percebe isso. E a antropologia, diferente da psicologia como lembrava a professora Marta, tem como seu centro o conceito de cultura. Fundamentalmente, o conceito de cultura é central de todos as ciências humanas de um modo geral, mas é ela constitutiva dessa ciência chamada antropologia. Agora é muito difícil falar sobre um conceito de cultura. Na verdade, se acompanharmos a história da antropologia teremos inúmeros conceitos, a cada época, a cada momento. E cada um desses conceitos, tem atrás de si um momento histórico determinado, tem por trás de si um conjunto de idéias que nesse momento se instaura como necessárias para pensar as diferenças sociais, a imensa diversidade de formas e modos de ser humano. E nesse sentido nós diríamos também que a cultura, se preocupa efetivamente com a diversidade social humana. Com as diversas formas de pensar, existir, construir a vida, elaborar enfim pensamentos, constelações, que tanto fazem parte daquilo que são as necessidades concretas da vida em sociedade. Necessidades concretas dos homens e a produção da sua vida material como trata a professora Marta Kohl, mas que não se restringe a isso. Dela também fazem parte a produção das idéias, a produção do universo simbólico, de universos de sentidos e significados. As ações dos homens resultam, enfim, do modo como se ordena a vida no interior de seu grupo social e, em razão desse universo de significados que orientam a conduta humana.
 Nesse sentido é muito difícil dizer de se definir um conceito em particular, de modo absoluto. O que a gente pode dizer é que efetivamente não se pode falar de cultura, sem, se remeter a essa produção do mundo simbólico, principamente na antropologia. A cultura não se restringe aos modos de fazer, pensar e sentir, ela vai para além disso na medida em que criando seus símbolos, seus significados, criam linguagens particulares, criam sentidos diversos para poder explicar as diferenças entre os homens.
O que é importante, no conceito além de compreender que é na produção da vida material, que emerge todo esse contexto, na rede de significados, enfim, todo esse universo de práticas sociais simbólicas, é que no caso da antropologia, no início da teoria antropológica, nos clássicos digamos assim, a cultura foi pensada como algo muito integrado, como algo em equilíbrio, como se as sociedades humanas fossem inteiramente ajustadas. Como se elas vivessem em relações perfeitamente ajustadas num todo. E desde essa tradição até aos dias de hoje houve, um avanço significativo no sentido de fazer com que ao pensar na diversidade, não pensemos na humanidade de forma unitária, única, mas também, se pense nessa diversidade como produto da ação humana, como produto das relações entre os homens e como tal, um campo que não é, digamos, de equilíbrio, mas é um campo de tensão, é um campo constitutivo de disputa de interesses e que envolve por tanto, uma dimensão política, que envolve uma dimensão que não está restrita aos modos de fazer e sentir, mas tem a ver com determinações históricas de cada momento, com as exigências da realidade social. Isto é, que têm a ver com a posição que cada grupo, cada indivíduo, enquanto membro de um grupo ocupa numa determinada sociedade e nesse sentido o termo, o conceito de cultura para nós, para chamadas sociedades modernas, para chamadas, sociedades de classes como a que nós vivemos hoje, é algo que não pode ser pensado em separado de um conceito de ideologia. Isso significa que a cultura não se expressa por si mesma, nem somente enquanto a produção dos homens, mas enquanto a produção dos homens numa situação de vida compartilhada, dentro das suas micro realidades, tal como o exemplo que acabamos de ver aqui, na expressão do Nordeste... mas esse Nordeste não se isola nele mesmo e não constitui sua vivência cultural nela mesma, se não com relação com outros grupos, com outras sociedades e nesse sentido, a gente tem que pensar em sociedade como um todo na qual o homem está é na qual ele ocupa uma situação, uma posição. Nesse contexto, nem sempre, as relações entre os homens, são constituídas por relações de igualdade O que vimos aqui, por esse exemplo, mostra claramente as relações desiguais entre sujeitos e é ai que a cultura tem uma função primordial de não apenas significar, mas de permitir a reelaboração constante dinâmica daquilo que é posto por uma tradição com o algo que é visto no e pelo presente e que projeta também uma perspectiva de futuro. Não sei se me fiz clara, mas enfim, ver a cultura exige ver o contexto.

Sebastiani - Muito obrigado, então vamos passar para o Sr. Severino. Quais as características que pode levantar para nós do seu conceito de cultura no seu trabalho?

Severino - Muito bem, eu queria cumprimentar a todos e dizer também que estou sendo pego de improviso. Eu, como filósofo acadêmico, tinha me preparado com todo o formalismo de praxe e eu também acabei não recebendo o e-mail a que o professor Sebastiani se referiu, informando como é que seria esse nosso primeiro momento aqui. Mas, vamos então praticar um diálogo espontâneo, sem muita formalidade, o que é, sem dúvida, uma experiência muito interessante .
  Muito bem, minha formação básica é em filosofia, nas últimas três décadas, eu acabei caminhando para a Filosofia da educação, como uma opção, um projeto de tentar exatamente praticar, vivenciar a filosofia, vinculando-a a uma dimensão bem concreta da existência humana, qual seja, a educação. Mas não se pode trabalhar a educação, sem trabalhar a cultura e essas três grandes categorias --- cultura, educação e filosofia, --- estão intimamente vinculadas. E, como é próprio da filosofia, que hoje, de maneira alguma, se contrapõe, se opõe ou disputa terreno com as ciências, a filosofia procura abordar essas experiências pelas quais a existência humana vai se realizando, no tempo histórico, de uma maneira abrangente, já que ela não tem que seguir as delimitações que o método das ciências objetivas impõe. Assim, toda a expressão histórica da filosofia, pelo menos no ocidente sempre teve esta preocupação com o ser, com o existir das coisas, e acabou até gerando um vocabulário complexo, mas na verdade é o homem se perguntando sobre sua própria existência.
 Mas afinal, quem sou eu? Essa pergunta recebeu nos últimos 3.000 anos de nossa história ocidental, respostas muito imaginativas, muito transcendentais. E nós poderíamos afirmar que hoje, quando a filosofia está vivendo um momento de uma certa maturidade, costuma-se dizer que o homem é fundamentalmente cultura. A cultura pode ser definida então, tal como vem sendo trabalhada atualmente pela filosofia, como sendo a morada do espírito. Quer dizer: tudo se torna humano, ou tudo se torna humano exatamente na medida que se torna cultura. E se torna cultura exatamente a partir daquele momento em que a natureza, as nossas relações objetivas, enfim, a nossa vida orgânica, o lado objetivo da nossa existência, adquirem uma significação subjetiva. Pode-se então afirmar que a culturalidade é exatamente o  próprio tecido da nossa existência; é pela cultura que nós, de fato, nos tornamos humanos. Essa cultura não é apenas o exercício da nossa subjetividade, não é essa sensação terna que nós temos graças a nossa subjetividade de poder intencionalizar as coisas, dar sentido as coisas, de fluir esse sentido das coisas, mas também aquele sentido que vai sendo concretizado, que vai sendo incorporado, que vai impregnando todas as coisas. Desde, por exemplo, quando se faz uma construção, quando se manipula alguma pedra, ou quando se faz uma pintura, ou quando se compõe uma partitura, ou quando se faz um espetáculo de arte, tudo isso o que está acontecendo graças à impregnação das significações de nosso espírito naqueles objetos naturais, tudo se transformando, como se a natureza se duplicasse em si mesma ganhando uma significação que é fruto disso que também a filosofia contemporânea chama de a prática simbolizadora do homem. Não é sem razão que um dos principais filósofos da atualidade, Paul Ricoeur, diz, parafraseando ou se contrapondo a Aristóteles, que o homem é um animal simbólico. Obrigado.

Sebastiani - Portanto, já tivemos aqui cada um dos três se colocando. Gostaria de levantar algumas questões que surgiram agora na fala de vocês. Primeiro lugar, o olhar do psicólogo em relação a cultura, então, fica para mim uma questão que vou colocar para ela, até onde vai a ação do psicólogo. Até onde vai a ação do antropólogo? Parece que o conceito de cultura ficou aí. É de quem? Quem é que vai trabalhar no que chamamos de cultura, que já se tentou chamar de culturologia, que não pegou. Mas quem é o dono dessa pesquisa, dessa ciência?
Olha cultura é isso, não é aquilo. Vou dizer assim, será que a cultura, como falaram, a cultura é a própria existência do ser, quer dizer assim que eu sou eu, eu sou minha cultura, podemos comparar as duas?
Então isto é um problema muito sério para nós que trabalhamos com a Etnomatemática, falamos com a educação indígena. Quer dizer assim, a gente vai falar respeitando toda cultura indígena, mas será que a gente pode compará-la com uma cultura digamos ocidental, entre aspas, então foram questões que me apareceram na forma de consciência. Deixo, agora, aberta a discussão da mesa.

Marta - Como eu falei, a cultura não é um conceito proeminente na psicologia predominante, mas se você tem uma abordagem histórico-cultural dentro da psicologia ela é, por definição, uma ciência humana, não é uma ciência natural, não é uma ciência exata. A cultura passa a ser, então, um conceito central, porque na ciência do homem a cultura é um conceito essencial.
Nessa concepção, a psicologia é necessariamente cultural: não dá para você falar em uma psicologia que não seja cultural; não dá para falar da questão da constituição do indivíduo como uma questão da ciência psicologia e a cultura como um acessório, um cenário onde as coisas acontecem ou alguma coisa que se acrescente externamente, de forma não essencial. Quer dizer, cultura nessa concepção de psicologia é muito central, faz parte do cerne mesmo da ciência e da construção do conhecimento nessa área. E como tinha falado inicialmente, para entender o psiquismo a gente tem que entender o homem como um ser cultural. Então, construir a psicologia com essa concepção é construir uma psicologia cultural, aproximada da antropologia, com necessidade de um conhecimento aprofundado da cultura onde o indivíduo está inserido. Essa psicologia não está olhando para um indivíduo, compreendendo uma mente isolada, mas está compreendendo a formação do psiquismo que se dá, por definição, no interior da cultura: então você tem que entender a cultura. Essa psicologia é uma ciência limítrofe: podemos falar em psicologia antropológica ou em antropologia psicológica. Acho que a Etnomatemática está transitando nessa mesma área interdisciplinar.
O que se passou aqui, nessa apresentação das crianças, faz a gente pensar muito. Eu diria que o que aconteceu aqui, se tratou muito mais de uma exibição da cultura escolar do que da cultura nordestina. A cultura do nordeste foi lida e elaborada dentro da escola, dentro da sala de aula, por aquela professora, que trabalha com aquelas crianças (que são crianças nordestinas na origem, mas moram em São Paulo, numa condição social específica). Me parece que aquilo que foi contado aqui passa por uma concepção de espetáculo, uma concepção de cultura que é própria da escola, que passa pela idéia do folclore, do acúmulo de manifestações culturais de um certo tipo (mas não de todo e qualquer tipo). Houve uma fragmentação de informações, que não estão juntas em nenhum lugar: elas só estão juntas aqui, neste palco, aqui, neste momento, ou na escola.
Acho interessante a gente pensar sobre o que significa em termos culturais aquela elaboração, aquela leitura, na negociação dos fabricantes da cultura. Como está a cabeça daquelas meninas que estavam aqui em cima, o que para elas é o nordeste, sua cultura de origem, o que é fazer teatro, o que é matemática.

Neusa - Bem professor, eu não diria que é possível comparar uma cultura e outra, as culturas conformam a particularidade de um grupo social. Toda e qualquer cultura elabora nos seus próprios termos, aquilo que é sua vida. Então toda e qualquer comparação de uma cultura e outra implica supor algo de idito, que não, pode ser comparado. Ao sermos colocados na condição de avaliar uma e outra, eu penso que a questão é pensarmos se a cultura nos dá a possibilidade, de pensarmos as diferentes e imensas diversidades humanas que nos caracterizam como Ser Humano que nos humanizam, como bem disse o Prof. Severino. Nós temos que pensar que cada cultura, se organiza de modo a garantir as formas de ser, de construir o seu espaço, de marcar e produzir os significados que orientam a vida, e que neste sentido, elas são essencialmente únicas. São elas que convocam os sujeitos que ali estão, que ali compartilham um modo de ser, por meio deste conjunto de sentidos e significados com que podem pensar a si mesmos, pensar aquilo que o professor bem lembra, quem eu sou, quem o outro é, e ainda, quem é o outro, aquele que está fora do meu mundo . Aquele que não comunga comigo o meu modo de ser, o meu modo de pensar, meu modo de andar, enfim aquele não faz parte das coisas que dizem de modo claro quem eu sou ou penso que sou. Neste sentido, eu diria que a diversidade social humana e a diversidade de modo geral como diz um texto que li recentemente, é fruto das relações entre os homens, pois as diferenças se nos apresentam em qualquer forma de vida no planeta e estas diferenças não colocam hierarquia em ordem nenhuma. Quem hierarquiza as diferenças são os homens. Então nesse caso podemos falar das culturas em seus próprios termos, mas pelo menos, temos também que pensar, de onde falamos, quando nos colocamos a partir de um campo teórico, de um campo de saber como a antropologia por exemplo ou a psicologia como a professora lembrava ou mesmo a filosofia.
E que falamos de um lugar outro, que não é aquele dos nossos sujeitos, então o que somos resulta do nós e eles, posto que somos sujeitos que intermediam um conhecimento que se produz na relação com o outro, e o fazemos para dizer a nós próprios, isto é, entre os nossos iguais, o que aquela cultura significa, quer dizer para traduzir na nossa linguagem nos nossos termos e logicamente quando fazemos isso, já talvez, não tenhamos mais a cultura na sua expressão, se é que podemos dizer que a cultura exista numa expressão pura, neste sentido eu diria que quando comparamos culturas, nós só o fazemos por que entendemos o eu e outro como uma relação que não está marcada pela diferença, mas por aquilo que eu dizia no momento anterior. Esta marcada por relação entre sujeito portadores, digamos, até mesmo de força desiguais.
Neste sentido, existe uma tentativa de hierarquizar o diferente. Quem hierarquiza é o homem, a partir daquilo que ele coloca para si como sendo necessário, legitimo ou válido. Então comparar culturas é impossível como prática. Mas no fundo quando nós tentamos traduzir a cultura do outro para o nosso mundo, esse é um pouco o papel do antropólogo, ele se coloca como meio, não, na verdade, ele se coloca como um tradutor do mundo do outro para o seu próprio mundo, mas isso não significa que traduz como o mundo é, mas tal como se apresenta aos olhos, mediatizado por uma série de outros elementos que nem sei como podemos dar conta.
Então o que muitas vezes o pesquisador que vai a um grupo pode contar, falar, sobre o que este grupo é como ele vive, como ele pensa como ele age, enfim como ele estrutura seu universo, suas práticas sociais e como o outro, índio por exemplo conta, pode ser de uma forma totalmente diferente porquê? Porque quando vamos pesquisar, levamos conosco aquilo que somos, a nossa própria história de vida, a nossa história como sujeito, formados por uma disciplina, pela psicologia, pela antropologia e não só por uma área de saber de modo geral, mas por um determinado foco teórico que nos leva a olhar determinadas coisas e não outras, então neste sentido fazemos comparação, mas não uma comparação que seja no sentido de dizer esta ou aquela cultura é melhor ou mais avançada, mas no sentido de codificar seus termos para poder então, numa outra linguagem, a nossa, compreender minimamente o que ela significa e nunca a apreendemos como um todo, apenas partes dela, aquilo que o nosso olhar, recortado por nosso interesse, nosso objetivo e nossa disciplina, permite recortar, permite contar. Então, é neste sentido, que temos que pensar numa provocação feita pela professora Manuela Carneiro da Cunha que é uma antropóloga, quando diz que: se a cultura é toda essa centralidade na vida humana, quando nós tratamos de sociedades como as nossas, dividida por classes sociais marcadas por um processo de desigualdade e tudo mais, nós temos que parar e pensar que são as sociedades que produzem a cultura e não é a cultura que produz a sociedade. Embora sejam ambas constitutivas uma da outra, isto quer dizer que se quisermos conhecer uma cultura temos antes que olhar a sociedade na qual os sujeitos sociais que comportam essa cultura vivem, porque é em relação a vida que se constrói, marcada por diferentes interesses, por relações de poder. Somente assim é que vamos compreender como é que esta cultura se  manifesta e que como essa cultura se expressa.

Severino - Vou me pronunciar só para acrescentar mais alguns elementos a estas colocações, obviamente concordando com o enfoque dos colegas. Eu estava dando uma olhadinha rápida no Programa do Congresso e, certamente, há um fantasma assombrando todas as nossas intenções, nossas propostas de conhecimento, quando tratamos deste tema.
     Eu diria o seguinte: sem dúvida, o espírito é universal mas ele nunca se realiza a não ser no particular, ao contrário do que pensava a filosofia tradicional... E que nós teríamos assim uma identificação universal, decorrente de nossa condição seres "espirituais", mas, na verdade, trata-se de uma dialética muito concreta, pois só podemos encontrar o espírito em forma de cultura particular. É isto que justifica a pluralidade das culturas, quer dizer o multi-culturalismo, os homens, os grupos humanos vão criar a cultura mediante sua cultura particular e, portanto, vão intencionalizar o seu mundo e vão se humanizar em situações absolutamente concretas, particulares quando não singulares. Mas isso não elimina a dimensão universal. Agora eu faria um gancho com que a Marta comentou a respeito do espetáculo, que é exatamente onde a educação entra. A educação é um esforço, é um investimento que a humanidade faz sobre si mesma no sentido exatamente de buscar aquele horizonte de plena humanização, mas esta plena humanização, ela não se faz abstratamente. Um exemplo bem concreto: na época da escravidão, muitas vezes, a própria Igreja dizia aos escravos: aceitem essa situação e depois vocês serão compensados na eternidade.
Ora, dizer isso é um absurdo, porque no concreto, é na prática histórica concreta que nós nos humanizaremos ou nos desumanizaremos, porque todas nossas relações concretas e nossas práticas existencial e simbólica são ambíguas, elas nos humanizam, de um lado, e nos desumanizam, do outro. Eis então o fio da navalha, a educação está tentando buscar a humanização de tal modo que as diferenças não signifiquem desigualdade. E aqui cabe um gancho com o que a Neusa estava dizendo, porque há um elemento novo que interfere nesse processo todo: é a questão do poder, como ela lembrou em sua fala inicial com a decorrente presença da ideologia. Quer dizer, a própria cultura, o conhecimento, a ciência, a filosofia, a religião e a arte, podem estar sendo manipulados de forma ideológica, ou seja, se exercendo como suposta dimensão espiritual para dominar, para consagrar os níveis de desigualdade.
  Quando consideramos uma sociedade como a brasileira, que é uma sociedade heterogênea, em relação à qual dificilmente podemos falar de identidade cultural, constatamos que, na verdade, o Brasil está construindo, buscando, investindo intencionalmente, conscientemente ou não, na constituição de uma identidade cultural.
  Mas, o que nós ainda vivemos é um desnível social extremamente heterogêneo, fragmentado e sobretudo hierarquizado, essa sociedade brasileira, se ainda tem problemas para resolver na ordem de saber ou na ordem do fazer, ela tem muito mais problemas na ordem do poder, nas relações entre os homens, entre as pessoas. Aqui nós não somos apenas diferentes, mas também desiguais. Diante de uma sociedade como esta, com tecido social como este, evidentemente que a educação, no seu papel de produtora, de multiplicadora, de difusora de cultura, o que ela deve buscar é exatamente não impor uma identidade, porque isso seria totalmente impossível, mas, antes, construir historicamente uma significação cultural que pudesse dar uma unidade a nossa experiência cultural, buscando ver como é que nós vamos concretizar a nossa unidade, a nossa identidade cultural. Esses esforços, como a Marta falou, da cultura, da escola, visam exatamente isso, expressar que, por trás das nossas diferenças, não deve haver desigualdades, mas sim uma promessa de um horizonte de construção de um sentido que elimine a hierarquização do poder, pois é a dominação e a opressão que mais nos desumanizam.

Sebastiani - Como foi levantada a questão da dominação e foi bem levantada num momento oportuno, no meu ponto de vista, a matemática é a ciência mais dominadora que existe. Basta ver que qualquer exame que se faz para selecionar as pessoas, uma primeira prova é a prova de matemática, é que vai eliminar quem vai ou não vai participar.
 Um medo, pelo menos nosso de educadores, que isso permaneça e que se concretize cada vez mais. Nós temos ainda uma tradição da escola ocidental, que esta matemática usada, onde a etnomatemática está propiciando um outro olhar para esta dominação, sei que isto é difícil, sei que não é fácil, e relembrando aqui o que a Neusa falou lembrei-me de uma frase de Paulo Freire: “Você tem que emergir da sua cultura, mas ainda molhado dela e olhar a cultura do outro, mas você nunca sai seco.”
Nós somos fruto de uma cultura, nós temos um cultura milenar em cima, uma história vivida.
Quando vou para uma aldeia indígena, eu não posso me desfazer do meu olhar de matemático, infelizmente eu procuro minimizar isto e com exceção que se aparece. Já que a Marta levantou a questão da escola, como fazer isto dentro da sala de aula esta é a grande preocupação da Etnomatemática. Quer dizer, como trazer este conhecimento do saber, nós vamos trazer a realidade da criança. A criança entra na sala de aula com sua realidade, faz parte dela, como se valer disso na sala de aula?
O professor Severino levantou exatamente isto. Quer dizer, a cultura é minha, não posso pegar uma cultura e trazer para cá eu levo junto comigo. Agora como fazer isto dentro de uma sala onde estão grupos sociais mais variados?
A Marta foi extremamente feliz na análise dela. Eles representaram uma cultura escolar, exatamente como vimos aqui, eu gostaria de convidar vocês a pensarem um pouco como educadores, na escola, sobre o conhecimento etno.

Neusa - É difícil a gente falar sobre esta questão assim como estamos aqui, mas eu vou tentar falar da minha experiência como professora, porque eu venho tentando trabalhar, pensar nesta linha, e é uma questão muito difícil de ser levada, mesmo porque a sociedade em que estamos, por sua própria natureza, ela efetivamente hierarquiza pessoas e hierarquiza coisas e ao hierarquizar ela se transfere idéias, valores para um social, naturalizando as práticas e estabelecendo as desigualdades. Aqui, bem lembrado pelo professor Severino, isto não está imune de acontecer no processo pedagógico, esse processo não está ausente da prática do professor e muitas vezes, o que nós temos é que o professor  tem uma sala de aula que na sua formação é múltipla e diversa. São indivíduos que vem contando cada um uma história singular própria, da família, mas também da classe social a que pertence e vive. Tal conjuntura é desafiante para qualquer pessoa e por outro lado, ela se debate com um conteúdo formal de saber que muitas vezes se coloca de forma abstrata, carregada de valores tidos como válidos e gerais. Desse modo, a função desse conteúdo é a de transmitir o conhecimento por meio de um processo avaliativo que supõe que a criança deva, que o jovem deva chegar a um grau de conhecimento para então passar para etapa seguinte. O que acaba acontecendo é que os processos de aprendizagem que acontecem ao longo de nossas vidas, desde que nascemos e que morrem conosco e continuam ocorrendo depois de nós, não encontram na escola espaços para se expressarem como produto da vida vivida. Na escola ocidental, na cultura ocidental que herdamos, há uma sizão, digamos, entre os processos de ensino e os processos de aprendizagem. Nós tratamos de ensino-aprendizagem e até construímos na grafia o hífen, como se as coisas andassem juntas, mas na prática pedagógica estas coisas não são simples de acontecer, mesmo porque, não só a criança traz a sua história e a história do seu grupo social para sala de aula e a escola não se limita a sala de aula e aos seus muros, vai muito mais além. O professor também traz a sua história e vivência para dentro dessa relação de troca, sem ter consciência de quanto essa sua história, essa biografia de vida que ele traz consigo influi no desempenho da sua atividade pedagógica e de que forma ela se comunica ou não com a biografia de seu (s) aluno (s). De que forma, isso tudo, encontra espaços de comunicação e diálogo com aquele outro que é igual ou que trás consigo uma história comum que, muitas vezes, ela própria, a professora ou o professor, tenta negar e por negá-la, que acaba por ser um desafio e uma barreira que nega, não compreende o outro, que é seu aluno. Então, a imensa diversidade de coisas e  situações vividas em sala de aula não sendo potencializadas como reflexão do mesmo modo que os conteúdos formais exigidos e junto com eles, nem pelo professor nem pela criança, transforma a relação pedagógica num discurso de surdos.
 Estabelece aí um muro de incomunicabilidade, e a cultura ao meu ver, antes de mais nada, é comunicação. Isto quer dizer que uma estrutura de comunicação, que envolve estas histórias de vidas que são vividas por nós e que seguem com nós juntos com as disciplinas que nos formam e que ensinamos, como um saber erudito que nós trazemos para sala de aula, exigem uma relação de troca, de comunicação. O que acaba acontecendo ou que muitas vezes acontece, é que o professor usa de todos os recurso para criar os estímulos pedagógicos, mas estes recursos também são igualmente afastados da realidade dele professor e dela criança que ali está no processo de aprendizagem. Fundamentalmente neste processo de comunicação é que o que a criança traz consigo, muitas vezes, aflora na sala de aula, aflora nas mais diversas formas, por vezes numa linguagem explosiva - a violência de que falávamos aqui um pouco antes - afloram às vezes em silêncios que gritam, como eu costumo dizer, silêncios esses que gritam, também nas mais diversas formas, nas expressões, nos movimentos, nas formas gráficas onde as crianças desenham, nós poderíamos ai até pensar um pouco o que é o grafite na periferia. Enfim nas várias formas que dizem, mas nós não sabemos ler, nós adultos não fomos alfabetizados nessa linguagem que traz à tona não apenas o imaginário cativo hierarquizado da sociedade de classes, com relações de dominação enfim, que tentam contar a própria cultura frente a cultura dominante. Mas ela aflora também, em formas que nós absolutamente sabemos ler, então, quando tratamos de conteúdos mais abstratos nós  deixamos de fora o saber outro que é um saber extremamente rico e tão legítimo, quanto ao saber erudito, no caso da matemática, puxando um galhinho, embora eu não domine, mas todos nós sabemos existe um mito que a matemática ser difícil, de não se gostar da matemática, de não ser fácil aprender matemática.
 Ontem mesmo estávamos numa banca, onde a fala da criança dizia: Chega de xizinho e y. Quer dizer chega dessa linguagem abstrata, importa trazer a vida para a sala de aula, trazer a vida para os contextos a serem ensinados e para fazer isto é preciso que a gente supere uma coisa que a escola foi exímia em fazer: separar a oralidade e a escrita, separando e causando uma descontinuidade entre o que é a vida vivida pela criança desde a hora que nasce até o momento que ela ingressa na escola. É como se tudo ficasse lá fora e ela passa a ser aluna, uma coisa geral, abstrata que não diz dela, que perde a identidade como bem lembrado pelo professor, então é preciso recuperar estas coisas. Aí o professor vem dizer em que condições, tendo cinqüenta alunos na sala, tendo a escola pública que temos, tendo a formação do professor do jeito, da forma que temos, como ele pode fazer isso?
Então temos um desafio: tentar por meio de métodos que eu traduziria aqui, por métodos comuns, unir todas essas diferenças num debate, numa reflexão que traga sentido a todos e trazer, também, as experiências particulares para dentro de uma reflexão integrada pelo contexto da sociedade de classe, da sociedade em que vivemos e aí que nós vamos encontrar o que nos une. Até agora, a nossa história é em cima dos fatos e valores de uma ordem dominante que insiste em separar. O que nós precisamos encontrar é aquilo que nos possa levar á união e essas são dadas pelas nossas histórias de vida, sejamos nós professores, pesquisadores ou alunos (aplausos).

Severino - Primeiro, o professor não precisa assumir que a matemática é a mais dominadora das ciências. Eu diria assim: todas as produções do conhecimento podem ser utilizadas como instrumentos de manipulação. Obviamente, a matemática também pode ser assim utilizada para dominar as pessoas, até porque ela se tornou uma ciência muito especializada, reforçando então o mito da dificuldade e se investe muito nisso porque é uma coisa que vai gerar distinções, fazer uma separação entre iguais e desiguais na sociedade. A impressão que eu tenho é que esta preocupação da etnomatemática é uma forma de reaproximá-la da vivência cultural das pessoas e mostrar que ela é uma dimensão normal do espírito que todos nós temos de cultivar muito bem.
Na verdade, quanto à escola, voltando para a questão da sala de aula, acho que é aquela ambigüidade de que falava, quer dizer, estou falando de modo geral, da pré-escola ao pós-doutorado, ela pode ser uma reprodutora dessa situação de desigualdade como pode ser uma crítica desta situação, uma iluminadora, uma elucidadora, sendo capaz de mostrar exatamente o sentido mais profundo de tudo isso, colocando-se a serviço da emancipação humana e não a serviço da dominação.
Eu sou professor de filosofia da educação aqui da faculdade de educação e, muitas vezes, nós vamos dar aula no curso de Licenciatura e eu tenho tido nas últimas turmas, alunos do curso de matemática aqui da USP, e eu estou reproduzindo o depoimento deles e não estou fazendo nenhuma crítica concreta porque não fui conferir, mas quando a gente discute essas questões com alunos que vêm da matemática, que estão no 3º ou 4º ano, quando tematizamos a questão do poder, a questão das diferenças das culturas, eles falam que nunca ouviram falar nisso. Então eu me pergunto como uma universidade quer ser educadora, como o jovem que se forma em qualquer curso, como ele pode atravessar este espaço-tempo pedagógico do ensino superior ( que na nossa sociedade é um privilégio extremamente elitizado de uma minoria de 0,56% da população que acessa a Universidade) como que ele pode passar este tempo tão precioso sem ouvir falar, sem sequer ouvir falar que ele é um funcionário da humanidade, que ele tem o compromisso de contribuir para libertar a humanidade, como eu posso formar não apenas um professor mas também um profissional que tenha essa sensibilidade.

Marta - Eu gostaria de levantar um outro aspecto com relação ao que já falamos. Eu concordo bastante com o que o Eduardo falou sobre trazer para dentro da escola, de a escola estar aberta para outras possibilidades de forma de construção do conhecimento, de lidar com a realidade e coisa e tal, mas eu acho que há um outro lado da questão que complementa e que traz toda a dificuldade para a relação entre escola e conhecimento étnico.
O fato é que a escola é representante de uma modalidade específica de construção do conhecimento e não qualquer modalidade. A escola é um espaço onde interagem escrita e ciência. A ciência como modalidade de construção de conhecimento e a escrita como instrumento para isso ou como um sistema simbólico. A ciência é um produto cultural não universal: nem todas as culturas têm ciência. A escola também não é um produto universal,. a escrita também não é um produto universal, isto é, são produtos culturais.
Eu diria que é consensual a idéia de que  a escola é um lugar específico. Neste sentido é importante que, além da preocupação em lidar com a diversidade, de valorizar outras formas de acesso ao conhecimento e de produção do conhecimento, a gente lide com o fato de que a escola tem o compromisso com esse âmbito cultural específico e não com qualquer outro. Isto é, eu não vou ensinar dentro da escola a fazer parede de tijolos, isso é aprendido em outro lugar. É claro que esse é um conhecimento valioso, pode ser pensado na matemática, ser portador de um saber matemático (que não é o mesmo saber da escola) e pode dialogar com o conhecimento da escola. Mas não podemos abrir mão do conhecimento escolar, do conhecimento científico, do conhecimento letrado, senão desmoronamos o sentido da escola.
Acho que existe, sim, uma ruptura da escola com relação à rua, àquilo que não é escola, e que nós, do lugar da escola, devemos preservar essa ruptura. Se tudo aquilo que eu posso fazer dentro da escola é a mesma coisa que o sujeito pode obter em casa, na rua, nas várias esferas do senso comum, a escola deixa de ser um lugar específico, deixa de ser necessária, de ter sentido. Não estou propondo um retorno a uma escola tradicional, que despreze outros modos de construção do conhecimento. A questão central é justamente como você se apropria, dialoga, como respeita, valoriza a diversidade e, ao mesmo tempo, mantém um lugar cultural próprio da escola. Quer dizer, tem um pouco a ver com o que o Severino vem falando: o papel da escola é extrair de todos nós o que temos de comum, humanizar as vias do conhecimento. E não é só dizendo: todos somos iguais, todos produzimos conhecimento, qualquer saber é igualmente válido; isso não é suficiente. Estamos em plena discussão dessa questão com a proposta dos PCNs sobre a diversidade cultural dentro das escolas. Precisamos fazer mais do que apenas colocar todos os diferentes lado a lado.

Sebastiani - As coisas que a Marta levantou são extremamente polêmicas. Mas eu recebi um bilhetinho, dizendo que está na hora. Acho que seria uma discussão que levaria muito tempo. Vou pedir que cada um fale um pouquinho só para nos fecharmos, porque ainda temos um coquetel.
 

Questão formulada da plenária


Boa noite! Bom, o que assistimos esta noite aqui, embora não concorde muito com a colega psicóloga, assistimos uma aula de cultura, mesmo que seja escolar. As pessoas que participaram aqui dentro desta aula, tiveram o convívio pré de significação, convivemos com elas e agora este convívio vai continuar o que eles significaram aqui vai marcar sua vida, nem nós também.
 Então, dessas valorização a muitas perguntas que eles colocaram de maneira dispersas. Acho que houve, não que sou psicólogo, sou antropólogo, sou filósofo, sou ou não sou, coisas assim uma integridade total, uma globalidade que não vou deixar separar.
Surge então, uma pergunta: A  mídia, televisão, rádio, jornal, está invadindo tudo isso que foi colocado com o nome de cultura entre aspas tem gente que chama de aculturação. Essa cópia que fazemos dos gringos do norte ou do sul ou dos índios da Bolívia. Embora nos permita ser chamado de  índios, porque foi assim que os chamaram na descoberta de Cristóvão Colombo.
 Minha pergunta é: Será que podemos chamar de cultura, isto que não estamos conseguindo definir como cultura. E chamamos de culturação esta influência da mídia? Será que temos que chamar de reaculturação.

Sebastiani - Vou pedir para os representantes aqui possam falar um pouco para tentar responder. Porque acho que você levantou uma outra polêmica.

Neusa - Bom, há muita coisa para dizer, mas a situação é mesmo difícil, fica tudo muito fragmentado, mas antes de mais nada, penso como a professora Marta. Como dizíamos antes, temos que pensar no Homem e a cultura de que são portadores, temos que pensar na sociedade em que eles vivem, esta escola não é qualquer escola. É uma escola que  também tem sua história bem lembrada pelo professor em uma de suas falas. É somente neste contexto que podemos discutir. Não vou dizer que a escola tem um papel específico, mas a escola que aí está é herdeira de um humanismo que não é efetivamente apenas valores humanistas. Faz parte de uma ideologia castradora das possibilidades de compreender a dimensão humana na sua completude. Daí a dificuldade da própria atuação no interior da escola.
Não quero dizer que ela não deva ter um processo, ou conteúdo a ser ensinado, mas o aluno que entra na sala de aula ou que entra na escola, ele não faz assim, tira roupa, tira o sapato e deixa tudo lá. Ele traz tudo junto, porque este ensino ou este aparato que tem que ser passado para o aluno pode se embebedar da cultura do outro e se embebedar do conteúdo que tem que ser transmitido. Eu acho que este é o desafio e só pode ser superado se a gente pensar a escola, como instituição, como instituição historicamente datada, numa cultura também datada historicamente, numa sociedade cuja a natureza está centrada na reprodução da desigualdade e nesse sentido, a humanidade que se pretende construir, precisa reconhecer o direito á diferença e reconhecer o direito á diferença, significa pensar que este aluno tem algo a me ensinar.
O professor deve também ter a disposição e a atitude de aprender. Assim como nós que aprendemos ao longo da vida, aprender a aprender é uma atitude da qual falar é fácil, mas não é fácil fazer e não é fácil fazer porque nós trazemos conosco esta história. É mais ainda do que isso, trazemos a idéia que na escola devemos ensinar e ensinar significa reproduzir um conhecimento ou reproduzir em determinadas condições, sem compreender que isso visa formar um sujeito, um ser humano para esta sociedade. E esse modelo de ser humano, somos nós que construímos e, é resultado das relações historicamente constituídas.
Então eu queria dizer, que muito do que se ensina, no sentido de formar um cidadão específico, determinado, exige de nós olhar para a sociabilidade humana, aquilo que nos faz sujeito históricos, capaz de transgredir as regras do instituídos e criar regras novas e nesse sentido, o professor tem todas as armas e o aluno e a escola também tem, por isso mesmo não é tão incomum quando perguntamos para um aluno, para um estudante sobre a escola o que é lembrado são os momentos de transgressão e quase nunca, os momentos de disciplina ou uma relação de sala de aula, porque o que aí acontece é dotado de uma finalidade que esquece que o homem é um ser histórico criador da sua própria existência e ela cria aqui e agora, como cria em relação ao passado e com isso, constrói uma perspectiva de futuro.
 Então eu penso que a escola tem que se transformar sim e esta escola que está aí, tem que, além de tudo, superar esta situação que é pensada num modelo de cidadão para um modelo de sociedade, para um modelo de estado nacional. É preciso não esquecer que temos uma escola que faz parte desta sociedade.
 

Marta - Não estamos falando de qualquer sociedade, estamos falando de uma sociedade científica, tecnológica. Estamos nesta sociedade e não, por exemplo, numa tribo africana, iletrada, há três séculos atrás. A escola é um lugar cultural específico e ela tem um papel. Uma coisa é a preocupação em compreender o outro, que está por trás da Etnomatemática e é uma coisa nobre, valiosa e necessária na sociedade heterogênea em que vivemos. Mas o risco que a gente corre é de uma super valorização do “diferente” que poderá ser uma pseudo valorização: meu modo de fazer matemática é tão bom quanto o seu, só que o meu leva à universidade, a melhores oportunidades de emprego, etc. Então vamos fazer a transmissão de um saber dominante para nossos filhos e a transmissão de um outro saber para outros grupos dentro da nossa cultura? Para um sujeito que vai funcionar numa cultura que é esta cultura, esse saber “alternativo” é, na melhor das hipóteses, “etno” no sentido folclórico. Eu estou exagerando a polarização em questão aqui para poder marcar qual é o ponto, já que não há tempo para maior aprofundamento.
Eu não estou propondo a imposição de uma cultura dominante, mas sim a socialização de uma cultura que é de todos nós. Isto é, o sujeito que está inserido numa sociedade que tem escola, que tem ciência, que tem escrita, tem que ter acesso a essa modalidade de construção de conhecimento, sim. Quer dizer, para o índio, para o menino da periferia, a escola vai retomar as práticas culturais do seu grupo de origem e nunca dar acesso à cultura escolar, enquanto nossos filhos vão ter acesso à cultura escolar plena? Na verdade, por causa de uma boa intenção, estamos muito mais reproduzindo a diferença: para fugir da imposição da cultura dominante a gente acaba sonegando a cultura dominante por a considerarmos perniciosa. Infelizmente não é possível me alongar mais sobre esse ponto, tão polêmico! (aplausos)

Sebastiani - Inauguramos aqui a abertura do Congresso, que foi um “bate papo” entre nós. Digo que foi extremamente útil, e agradeço a vocês por terem vindo, deixado seus afazeres e colaborarem com o  Primeiro Congresso Brasileiro de Etnomatemática, sei que deixou vocês meio apreensivos, porque não sabiam o que ia acontecer, também não sabia o que ia acontecer aqui, mas acho que foi extremamente útil e muito importante pelo menos para mim. Então, queria mais uma vez agradecer Marta, Neusa, Severino, foi ótimo ter vocês aqui e espero encontrá-los várias vezes por aí, muito obrigado.