Construindo competências pela etnomatemática na escola


Eduardo Sebastiani Ferreira*





 Em primeiro lugar quero ressaltar que quando falo em Etnomatemática, falo de conhecimento científico no sentido a que se refere Kuhn:

  “...o conhecimento científico é intrinsecamente  um produto de grupo e é impossível entender tanto a sua eficácia peculiar como a forma de seu desenvolvimento, sem fazer referência à natureza especial dos grupos que a produziram. Nesse sentido, o trabalho desses grupos tem profundas raízes sociológicas, mas não de uma maneira que permita separar o sujeito de epistemologia.”

 O que faz, então esse grupo de Etnomatemáticos? Que ciência é essa que eles produzem? Para responder essas questões me reporto à Paulus Gerdes:

  “Etnomatemáticos salientam e analisam as influências de fatores sócio-culturais sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento da matemática”.

 Outra questão, que é levantada pelo título do presente trabalho, é esta Etnomatemática na escola. Aqui eu me apoio no que escreveu Ubiratan D´Ambrosio, quando propõe o Programa Etnomatemática:

  “A metodologia do programa de pesquisa denominado Etnomatemática deve ser muito amplo. Ele focaliza a geração, organização e difusão dos conhecimentos, e é no difundir que entra a parte da Educação. Estes quatros ramos correspondem ao que usualmente é estudado  como: cognição, epistemologia, história e sociologia do conhecimento, incluindo a Educação.”

O mesmo autor, fazendo um estudo etimológico da palavra Etnomatemática, dá uma aproximação do seu pensar sobre seu programa:
“ é a arte ou técnica (techné = tica) de explicar, de entender, de se desempenhar na realidade (matema),  dentro de um contexto cultural próprio(etno).”

 Meu esquema abaixo dá uma idéia do caminho a seguir no trabalho pedagógico:
 
 
 

 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 

E é num sentido de espiral o caminho a seguir, onde a Realidade vai se tornando cada vez mais abrangente, a situação-problema mais complexa e as competências crescendo quer em abrangência, quer em aprofundamento.
 Hoje a educação está toda voltada no sentido de construir competências, não mais na transmissão pura e simples de conteúdos. Pois,  o trabalho escolar tradicional estimula a mera apresentação de resultados, enquanto a abordagem por competências torna visíveis os processos, os rítmos e os modos de pensar e agir.
 Vejamos como Perrenoud, no seu livro: Construindo as Competências desde a Escola, publicado pela ARTMED em 1997, define o conceito de Competência:
  “Eu definirei aqui (competência) como sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação; apoiada em conhecimentos”
Mais adiante, no mesmo texto, afim de clarificar seu conceito de competência, ele escreve:
“Uma competência nunca é a implementação “racional” pura e simples de conhecimentos, de modelos de ação, de procedimentos. Formar em competências não pode levar a dar as costas à assimilação de conhecimento , pois a apropriação de numerosos conhecimentos não  permite, ipso facto, sua mobilização em situação de ação”.
 Perrenoud cita Étienne e Lerouge nesse assunto:
“A construção de uma competência depende do equilíbrio de dosagem entre o trabalho isolado de seus diversos elementos e a integração desses elementos em situação de operacionalização. A dificuldade didática está na gestão, de uma maneira dialética, dessas duas abordagens. É uma utopia, porém, acreditar que a aprendizagem seqüencial de conhecimentos provoca espontaneamente sua integração operacional em uma competência” (Étienne e Lerouge, appud Perrenoud p. 10)
 Podemos perguntar: Competência é conteúdo? Até que ponto esses dois conceitos estão interligados? Digo que medir competência não rejeita nem os conteúdos, nem as disciplinas, mas sim acentua seus valores.
 Para Perrenoud:

 “A competência situa-se além dos conhecimentos. Não se forma com a assimilação de conhecimentos suplementares, gerais ou locais, mas sim com construção de um conjunto de disposições e esquemas que permitem mobilizar os conhecimentos na situação, no momento certo e com discernimento.” (p. 31)

O Ministério de Educação da Bélgica, em 1991, lançou um manifesto, propondo aos seus professores que trabalhassem ao que chamou de “competências transversais” em suas aulas. Diz esse manifesto: “As competências transversais estão “ intimamente ligadas às competências disciplinares, pois encontram-se na intersecção de deferentes disciplinas. Constituem não  só os processo fundamentais do pensamento, transferíveis de uma matéria para outra, como também englobam todas as interações sociais, cognitivas, afetivas, culturais e psicomotoras entre o aluno e a realidade em seu ambiente”. Entre as competências disciplinares  distingue-se: competências globais, ditas de integração. “ que reúnem e organizam um conjunto de conhecimentos, saber-fazer e saber-ser em suas dimensões transversais e disciplinares.” E competências específicas, “a serem desenvolvidas em situações de aprendizado para se chegar, com o tempo, a um domínio maior das competências de integração”

 O trabalho de construir competências é todo calcado em resolver situações-problemas contextualizadas, no sentido em que  Astolfi escreve:

  “Uma situação-problema não é uma situação didática qualquer, pois deve colocar o aprendiz diante de uma série de decisões a serem tomadas para alcançar um objetivo que ele mesmo escolheu ou que lhe foi proposto e até traçado. Pragmático não quer dizer utilitarista: pode-se traçar como projeto entender a origem da vida tanto quanto lançar um foguete, inventar um roteiro ou uma máquina de costura. Entre as dez características de uma situação-problema destacarei que ela:“ está organizada em torno de superação de um obstáculo ..., obstáculo esse previamente identificado”;“ deve oferecer uma resistência suficiente, que leve o aluno a investir seus conhecimentos anteriores disponíveis, bem como suas representações, de maneira que leve ao seu questionamento e à elaboração de novas idéias.”(Astolfi appud Perrenoud p. 58)

Mas como fazer isso em sala de aula? Em primeiro lugar, faz se necessário mudar o professor, ele tem que ter competência, seu ofício é diferente: “O ofício de docente não consistiria mais em ensinar, mas sim em fazer aprender, isto é, criar situações favoráveis, que aumentem a probabilidade do aprendizado visado.”
 As competências são construídas somente no confronto com verdadeiros obstáculos epistemológicos, no sentido de Bachelard, em um processo através de projetos ou resolução de situações-problema contextualizados, como é a proposta metodológica da Etnomatemática.
 Por outro lado, a participação do aluno  é muito maior, pela Etnomatemática, ele é o pesquisador de campo, o criador da situação-problema e junto com o professor busca a solução. Então:
  “Pede-se a ele que em seu ofício de aluno, torne-se um prático reflexivo. O aluno é convidado para um exercício constante de metacognição e de metacomunicação. Esse contrato exige uma maior coerência e continuidade de uma aula para outra, além de um constante esforço de explicitação e de ajuste das regras do jogo. Também passa por um ruptura com a competição e com o individualismo. Isso remete à improvável cooperação entre adultos e ao possível contraste entre a cultura profissional individualista  dos professores e o convite feito aos alunos para trabalharem juntos. “
 Os alunos serão, então, levados a construir competências cada vez de mais complexas, nos sentido espiral, somente confrontando-se, regular e intensamente, com problemas numerosos, complexos e realistas, que mobilizam diversos tipos de recursos cognitivos.
 Como escreveu Martinand, citado por Perrenoud:

  “Uma pedagogia das competências requer uma transposição didática tanto a partir das práticas sociais quanto a partir dos conhecimentos eruditos descontextualizados”

 Finalmente na hora da avaliação, tem-se que levar em conta que:

  “Um avaliação por meio de situações de resolução de problemas só pode passar pela observação individualizada de uma prática, em relação a uma tarefa “

 Nesse sentido, acredito que a Etnomatemática, como proposta pedagógica, é um grande suporte na escola, na construção de competências; e só construindo competências o aluno poderá de fato exercer plenamente a cidadania.