Gelsa Knijnik
Inicialmente desejo agradecer o convite da coordenação
do CBEm1 pela oportunidade de participar desta mesa redonda junto com educadores
que foram, e continuam sendo, para mim fonte de inspiração
e exemplo. Gostaria, também, de prestar uma homenagem. No sábado,
dia 21 de outubro, aos 106 anos, enquanto dormia, Dirk Struik nos deixou.
Dirk foi um reconhecido matemático e historiados da Matemática,
que aliou de modo exemplar sua densa produção científica
com seu comprometimento político na luta por um mundo mais igualitário.
Muito em breve estará em circulação o número
7, volume 4 da Revista de Educação da UNISINOS, com a tradução
da entrevista dada por Dirk a Arthur Powell e Marilyn Frankenstein. O artigo
foi publicado no número de inverno de 1999 da importante revista
acadêmica estadunidense Harward Educational Review, sob o título
“Na sua plenitude: Dirk Jan Struik reflete sobre 103 anos de atividades
matemáticas e políticas”. As referências que Dirk faz
à Etnomatemática nesta entrevista nos inspiram e dão
força para prosseguir em nossa trajetória. Com o pensamento
em Dirk, inicio minhas considerações sobre Etnomatemática
e politicidade da Educação Matemática.
Como de há muito vem sendo apontado, o corpo de conhecimentos
denominado “Etnomatemática” é composto por um heterogêneo
conjunto de práticas e abordagens, conectadas a diferentes modos
de significar os tempos que hoje vivemos e entender como a Educação,
em particular a Educação Matemática, está implicada
na construção de um mundo menos desigual e mais solidário.
São, portanto, distintas visões de mundo, distintas compreensões
do papel que a Ciência Ocidental vêm desempenhando na conformação
deste mesmo mundo, associadas a distintos modos de compreender o papel
que a Educação Matemática pode desempenhar nos processos
de mudança social.
O argumento central que desejo desenvolver, nesta fala, diz diretamente
respeito às minhas posições frente a estas questões.
O argumento pode ser sintetizado do seguinte modo: mais do que olhar com
lentes do relativismo cultural, é preciso olhar para o campo etnomatemático
com lentes sociológicas. Isto significa dizer que estou interessada
em examinar a Educação Matemática nas suas conexões
com a diferença cultural como um campo minado por relações
de poder, isto é, um campo político.
O primeiro alicerce que apresento para meu argumento diz respeito ao
entendimento que estou dando à cultura, caracterizando-a como algo
que as pessoas, os grupos sociais produzem, que não está
de uma vez por todas fixo, determinado, fechado nos seus significados.
Cultura aqui não é entendida como algo consolidado, um produto
acabado, homogêneo. Este modo de conceituar cultura implica em entendê-la
como um terreno conflituado, tenso, em permanente disputa pela imposição
de significados. Também implica questionar aquele velho chavão:
“Nossa função como professoras e professores é trazer
para o currículo, ensinar na escola a Matemática que foi
acumulada pela humanidade.” Exatamente isto está em jogo para a
Etnomatemática: qual Matemática que tem sido chamada de “Matemática
acumulada pela humanidade”? Diferentemente de posições defendidas
pela “Pedagogia crítico-social dos conteúdos”, argumento
que a assim chamada “Matemática acumulada pela humanidade” é
somente uma parcela de uma ampla e heterogênea produção,
precisamente a parcela produzida pelos grupos hegemônicos. Que grupos
têm ficado silenciados, escondidos, não representados no currículo
escolar, também na área da Matemática?
Ao nos fazermos estas perguntas, estamos estabelecendo estreitos vínculos
entre Matemática e cultura, entre Matemática e os modos das
pessoas significarem o mundo, tentando problematizar aquilo que autores
como Ubiratan D’Ambrosio (1999), Valerie Walkderdine (1988), Marilyn Frankenstein
e Arthur Powell (1997) apontaram como as características da
Matemática escolar: suas marcas de eurocentrismo, branquidade, da
classe média, de masculidade e eu tenho destacado, de urbanidade.
Quem tem ficado escondido? Os povos não europeus, não-brancos,
as mulheres, os gays, lésbicas e bi-sexuais, os camponeses do meio
rural. São as produções culturais destes grupos que
têm sido sistematicamente excluídas, ficado de fora dos currículos
escolares (Knijnik, 2000).
O segundo alicerce que apresento diz respeito à diversidade
cultural. Aqui, acompanhando autores que têm tratado das questões
do multiculturalismo (como Peter McLaren), argumento que não basta
proclamar a diversidade cultural, assumir uma atitude de benevolência
para com esta diversidade, entendendo-a de um ponto de vista essencialista.
Este posicionamento estaria em consonância com uma perspectiva relativista
ingênua, que sobretudo celebraria a diferença e glorificaria
a diversidade cultural. Aqui é preciso destacar a abordagem de autores
como Claude Grignon (1992, p.50-54) quando examinam as teorias relativistas,
às quais correspondem pedagogias específicas. Segundo estes
autores, as “pedagogias relativistas” se apresentam como menos hostis aos
grupos subordinados, por valorizarem a alteridade e a autonomia simbólica
de suas culturas e práticas. Porém, quando levadas a um processo
de exacerbação, se transformam em pedagogias populistas,
conduzindo à fetichização, à glorificação
de sua cultura, produzindo, sobretudo, o efeito de guetização.
Em um mundo marcado pelos processos de globalização, tal
efeito de guetização antes de tudo, reforça as desigualdades
sociais. Como diz Canclini (1988, p. 71), as teorias relativistas “muito
sensíveis ao específico de cada grupo, tendem a marcar a
diferença sem explicar a desigualdade que os confronta e os vincula
a outros setores”.
Ao não se examinar as relações de poder envolvidas
na diversidade cultural, acaba-se por produzir binarismos do tipo “dominante
tolerante e dominado tolerado, ou a da identidade hegemônica mas
benevolente e da identidade subalterna mas “respeitada”” (Silva, 2000,
p.98). Esta seria a estratégia pedagógica de abordagem da
diversidade cultural que Silva nomeia por “liberal”. O autor descreve ainda
uma outra estratégia pedagógica que se situaria em uma posição
intermediária entre esta estratégia liberal e uma que teria
uma conotação “terapêutica” (que atribuiria às
dificuldades da aceitação da diferença à fatores
psicológicos). Para Silva (ibidem, p. 99) tal estratégia
intermediária “consiste em apresentar aos estudantes e às
estudantes uma visão superficial e distante das diferentes culturas.
Aqui, o outro aparece sob a rubrica do curioso e do exótico. (...)
Em geral, a apresentação do outro, nessas abordagens, é
sempre o suficientemente distante, tanto no espaço como no tempo,
para não apresentar nenhum risco de confronto e dissonância”.
Estamos frente a uma pedagogia que, ao celebrar a diferença, não
questiona as relações de poder nela envolvidas. Portanto,
as reforça. São tais argumentos que contribuem para que eu
considere a insuficiência das lentes do relativismo cultural para
olhar a Etnomatemática.
O que dizer, então, das lentes sociológicas? Olhar a
Etnomatemática com tais lentes sugere múltiplas questões.
Como Ubiratan D’Ambrosio apontou desde suas teorizações iniciais,
na perspectiva da Etnomatemática, o que é enfatizado é
que a Matemática, assim como usualmente a conhecemos, marcada pela
visão ocidental de mundo, é uma das formas de Matemática.
É ela própria, uma Etnomatemática, pois é produzida
por um particular grupo social, a saber, o formado por aquelas pessoas
que estão autorizadas socialmente a produzir ciência, tendo
sua atividade profissional exercida na academia. Por isto, para sermos
mais precisos, deveríamos dizer que aquilo que chamamos tradicionalmente
de Matemática é a Matemática acadêmica. Na perspectiva
da Etnomatemática, existem também outras formas de produzir
significados matemáticos, outras formas que são igualmente
Etnomatemáticas, pois manifestações simbólicas
de grupos culturais, como, por exemplo, as matemáticas das diferentes
nações indígenas, a matemática de distintos
grupos profissionais e aquela praticada pelas agricultoras e agricultores
em suas atividades laborais.
Assim, a Etnomatemática opõe-se às visões
tradicionais da Ciência, com suas características de homogeneidade
e universalidade, enfatizando não só que a Matemática
é uma construção social mas, mais que isto, que tal
construção se dá em um terreno minado pela disputa
política em torno do que vai ser considerado como Matemática,
o que vai ser considerado como o modo legítimo de raciocinar e,
portanto, quais grupos são os que têm legitimidade para produzir
Ciência (Knijnik, 1996). A Etnomatemática desloca seu foco
de atenção de questões eminentemente psicológicas
e epistemológicas que têm sido tradicionalmente objeto de
estudo na Educação Matemática. Olha para esta
área com um novo olhar, vendo-a como um campo do currículo
também implicado na construção de subjetividades,
produzidas não em um terreno neutro e desinteressado, mas, ao contrário,
em um terreno onde certos grupos acabam por impor o seu modo de raciocinar,
a sua Matemática como a única forma possível de pensar
o mundo matematicamente. Outros modos de lidar com o social, acabam por
ser “naturalmente” desprezados, em uma operação que oculta
as relações de poder envolvidas nestes processos de deslegitimação.
Este olhar sociológico enfatiza que está no cerne da
Etnomatemática a questão do poder. Como de há muito
temos discutido, ao tratar da Matemática não de forma abstrata,
mas como um artefato cultural, diretamente conectado às tradições,
aos modos de viver, sentir e produzir significados dos diferentes grupos
sociais, passa a falar em Matemáticas, no plural, sendo a Matemática
acadêmica — aquela que usualmente chamamos por Matemática
— uma destas diferentes Matemáticas. Uma, mas não uma qualquer.
A Matemática acadêmica, precisamente por ser produzida pelo
grupo socialmente legitimado como o que pode/deve/ é capaz de produzir
"ciência" é a que, do ponto de vista social vale mais.
Portanto, não se trata falar, ingenuamente, em diferentes Matemáticas,
mas sim considerar que tais Matemáticas são, em termos de
poder, desigualmente diferentes (Knijnik, 1996).
É neste sentido que considero a importância do pensamento
etnomatemático, que problematiza a cientificidade, a neutralidade
e assepsia da Matemática acadêmica e traz à cena as
"outras" Matemáticas, usualmente silenciadas na escola, enquanto
produção cultural de grupos não hegemônicos.
Esta não é, no entanto, uma mera atitude de "benevolência"
para com os excluídos.
Nós, educadoras e educadores, que, do ponto de vista ético,
somos co-responsáveis pelos grandes massacres que até hoje
foram e são cometidos pela humanidade, também somos partícipes
de pequenos massacres cotidianos, como os praticados nas nossas salas de
aula, no chão da escola, quando exterminamos com outros saberes
que não os da cultura dominante, quando fazemos de conta que aqueles
saberes sequer existiram ou existem e valorizamos com nossa voz autorizada
de professoras e professores somente os conhecimentos eruditos, da cultura
ocidental, não porque estes sejam em si, do ponto de vista epistemológico,
superiores, mas porque são os praticados pelos grupos que estão
legitimados, na nossa sociedade, como os que podem/devem/são capazes
de produzir ciência. Nós estamos diretamente implicados nos
processos que se opõem ou favorecem aquilo que o sociólogo
Boaventura Souza dos Santos chamou de epistemicídio — a destruição
do conhecimento de determinado grupo social — cuja forma mais radical é
o genocídio, onde não só as mentes e os corações,
mas também os corpos das pessoas são eliminados.
Nosso papel nestes processos de inclusão ou exclusão
de conhecimentos no currículo escolar é, antes de tudo, e
sobretudo, político. Tais processos, definindo quais grupos estarão
representados e quais estarão ausentes na escola são, ao
mesmo tempo, produto de relações de poder e produtores destas
relações: produto de relações de poder, pois
são os grupos dominantes que tem o capital cultural para definir
quais os conhecimentos que são legítimos para integrar o
currículo escolar; são também produtores de relações
de poder, porque influem, por exemplo, no sucesso ou fracasso escolar,
produzem subjetividades muito particulares, posicionando as pessoas em
determinados lugares do social e não em outros. Estes lugares não
estão, de uma vez por todas, definidos. O campo da Educação
Matemática é também um campo possível de contestação.
Por isto, político.
Referências Bibliográficas
CANCLINI, Nestor Garcia. Gramsci e as culturas populares na América
Latina. In:
COUTINHO, Carlos Nelson; NOGUEIRA, Marco Aurélio (Org.)
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São Paulo; Papirus. 1997.
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1996a.
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