Helena Dória Lucas de Oliveira
Quando nos afastamos dos grandes centros urbanos e atravessamos os municípios
do interior do Estado do Rio Grande do Sul, cruzamos por rodovias com placas
nas quais se pode ler a inscrição “Fim do Perímetro
Urbano”. Essa expressão denota o início de zonas ou de comunidades
rurais, alertando para a mudança na paisagem. Embora, sociologicamente
falando, as fronteiras entre o urbano e o rural estejam cada vez mais borradas
e embaçadas, geograficamente as placas estão ali para demarcar
limites entre esses territórios, anunciar diferenças entre
esses espaços. Essas diferenças são produtos de modos
de viver distintos e estão intimamente conectadas com a cultura.
Uma questão passível de ser colocada é se as escolas
presentes nesse mundo rural consideram, valorizam, interrogam, historicizam
esses modos de viver.
No entanto, não se trata de celebrar o meio rural como um ambiente
calmo, tranqüilo. Um mundo rural que, no dizer de Jurjo Santomé
(1994, p.146), é visto “como reinos da natureza incontaminada e
virgem, onde os animais e o homem vivem, em perfeita harmonia, uma vida
tranqüila e despreocupada, sem barulho nem contaminação”.
Esse é o mundo rural representado pela publicidade, pelas emissoras
de televisão, pelas revistas. Não se trata de perenizar uma
comunidade camponesa pretérita. A cidade tem-se imposto sobre o
campo, subordinando-o, absorvendo-o, e em muitas situações,
dissolvendo-o. Assim, o mundo rural é um espaço que
se modifica, que se transfigura, “um objeto fugaz” como diz Octavio Ianni
(sd, p.7), que se impregna de signos do mundo urbano.
Contudo, esses espaços caracterizados como meio rural não
são homogêneos, fixos, únicos, mesmo que se identifique
peculiaridades e singularidades da população que neles habita.
É um mundo que tem conflitos. É um mundo diverso, plural,
em que aspectos como etnia, geração, gênero, classe,
entre outros, chamados por Dagmar Meyer (1998, p.374) de “marcadores sociais”,
estão envolvidos “com a produção de identidades ou
diferenças culturais e com os mecanismos de inclusão ou exclusão
social e política que operam nos diversos grupos ou processos sociais”.
Esses marcadores permeiam a vida do campo e, principlamente, cruzam
-se, concretizam-se nas atividades produtivas rurais.
As atividades produtivas rurais são uma das especificidades
da cultura do campo que tomo como objeto de análise aqui, baseada
numa recente pesquisa que realizei. Tal pesquisa esteve conectada com a
minha trajetória de educadora matemática, na qual estive
trabalhando em cidades do interior do Rio Grande do Sul contribuindo com
o Setor de Educação do Movimento Sem Terra. Especialmente,
tenho atuado na formação de educadoras e educadores da Reforma
Agrária, em um Curso de Magistério de Férias vinculado
ao MST. Esse curso forma professores, de diferentes estados brasileiros,
para atuarem nas séries iniciais do Ensino Fundamental. O objeto
empírico da investigação foi um trabalho pedagógico
que planejei e desenvolvi com a turma VI desse curso. Dessa forma, não
analisei práticas educativas realizadas por outros profissionais.
Tampouco construí uma prática pedagógica isolada do
que faço a cada ano letivo. Foi meu próprio fazer profissional,
inserido num movimento social com o qual já trabalho há 8
anos, que tomei como objeto de problematização. Foram as
interrogações brotadas das práticas vividas nesses
anos e fomentadas pelo estudo que deram origem ao problema de pesquisa.
Meu foco foi investigar as potencialidades e obstáculos de um processo
pedagógico centrado em atividades produtivas, orientado em uma perspectiva
da Etnomatemática, que formava professores para atuarem na Educação
Básica do Campo
Decidi desenvolver um processo pedagógico centrado em atividades
produtivas do campo por dois motivos. O primeiro foi a importância
dada pelo MST para a qualificação da produção
nas áreas de assentamentos. Uma das dimensões na luta pela
Reforma Agrária está exatamente no impacto econômico
que a produção das famílias assentadas consegue imprimir
nos municípios ou Estados onde são estabelecidas. O segundo
motivo, para tomar as atividades produtivas rurais como centro do processo
pedagógico, foi por considerar que no mundo rural, freqüentemente,
as crianças acompanham suas famílias no trabalho agropecuário,
sendo responsáveis por pequenas tarefas que exigem menos esforço.
Esse fato aponta para uma das peculiaridades do modo de vida rural. As
crianças, antes de freqüentarem a escola ou ao mesmo tempo
em que nela ingresam já começam a participar do trabalho
na roça junto com seus pais. Essa participação dá-se
na condição de aprendizes. Jonas e Deusamar, aluno e aluna
da turma mencionada, relembram sua participação nesse trabalho
da roça.
(...) Meu pai, um dia ele colocou uma enxadinha num cabo e disse: Olha,
este ano você vai pra roça e também vai começar
estudar. A gente carpia arroz, feijão, milho, uns pezinhos de café
também que tinha plantado. E no mais ajudava a coletar alimentos,
a ração, né, para tratar do porco, a mandioca, inhame,
abóbora, esse tipo de trabalho que a gente fazia. [Jonas]
(...) O meu pai ensinou nós a trabalhar muito cedo. Claro que
o trabalho que a gente fazia era de acordo com a nossa idade, com as nossas
condições. (...) Ajudava a plantar, capinar. Lá no
Maranhão tem que fazer cerca que é pra os bois do patrão
não comer [a plantação], então, ajudava a carregar
madeira, pra ajudar a fazer a cerca. [Deusamar]
O mundo do trabalho, do qual as crianças de famílias agricultoras
participam, constitui-se assim, em um espaço educativo central nas
experiências de vida das crianças, é um espaço
fervilhante de saberes, com o qual estas entram em contato cotidianamente.
Ricardo Abramovay (1998, p.34) mostra que é o convívio na
agricultura familiar que produz, que gera novos agricultores. É
nesse espaço de convivência e socialização de
saberes que os futuros agricultores ou futuras agricultoras vão
se formando. Em sua pesquisa, o autor constatou que todos os agricultores
entrevistados eram filhos de agricultores. E que isso, é uma característica
generalizada internacionalmente, o que é difícil ocorrer
em outra profissão.
Apresentarei aqui uma das três situações do processo
pedagógico desenvolvido que analisei na pesquisa. Esse trabalho
ocorreu nos meses de férias escolares dos anos de 1997, 1998 e 1999.
A situação que analisarei refere-se a um planejamento elaborado
pelas alunas e alunos e posteriormente examinado em aula. A atividade pedagógica
proposta à turma consistia em, depois da leitura de partes selecionadas
do texto “A Produção de Sementes de Melancias” , identificar
situações em que apareciam conhecimentos matemáticos
que as famílias agricultoras construíram em sua experiência
cotidiana de trabalho. Também solicitei às alunas e aos alunos
que planejassem formas de trabalhar com esses conhecimentos matemáticos
em sala de aula. Meu objetivo era evidenciar outros tipos de relações
matemáticas, diferentes do conhecimento que a escola privilegia.
Também estava interessada em oportunizar uma discussão sobre
trabalhos pedagógicos centrados na Matemática da vida rural
diária, conservando seu caráter situado e contextualizado,
buscando evitar sua descaracterização, evitando revesti-la
com uma roupagem que não lhe era própria.
Ainda, solicitei aos estudantes que identificassem as situações
em que houvesse possibilidades de propor atividades que ampliassem o conhecimento
matemático das crianças. Com essa questão, pretendia
que os estudantes tivessem oportunidade de, ao problematizarem e questionarem
a atividade produtiva, pensar em outras atividades, como: organizar dados
em tabelas, construir gráficos e fazer comparações.
Dessa forma, estaríamos contestando a simplificação
que é feita do princípio de que a base da produção
do conhecimento é a realidade. No comentário desse princípio
no Caderno de Educação do MST (MST, 1996, p.13), consta que
“Tem aluno que anda dizendo por aí: ‘Chega de estudar a realidade!
Quero ver coisas novas!”. Tal comentário aponta de forma clara para
a superficialidade com que as experiências de vida dos estudantes
são analisadas quando se tornam foco de estudo. Refletir sobre essa
prática foi meu objetivo com a solicitação feita à
turma. Na etapa de aulas seguinte, a turma refletiu coletivamente sobre
suas produções escritas. Baseada na reflexão dos estudantes
sobre seus próprios trabalhos, identifiquei três tendências
presentes nas produções escritas dos mesmos: Elaboração
de Problemas, Listagem de Conteúdos e Problematização
da Atividade Produtiva. A seguir apresento e problematizo tais tendências.
As produções escritas que agrupei sob a denominação
de Elaboração de Problemas tinham como caracterísitca
marcante a presença de problemas matemáticos, cujos enunciados
tratavam da atividade produtiva em questão. Alguns problemas tratavam
de situações que, de fato, eram importantes no contexto da
produção agrícola e traziam também uma pergunta
final relevante, uma pergunta coerente com as necessidades dos produtores
de sementes de melancias. Outros, no entanto, no dizer dos alunos, “eram
problemas talvez desnecessários ou que talvez não vão
ser utilizados pelos agricultores”, problemas que traziam “perguntas sem
uma utilidade prática”. Eram problemas que chamamos em sala de aula
de artificiais, ou seja, era criada uma situação apenas para
se fazer “uma conta”; “uma conta” sem relevância para a atividade
produtiva. Um exemplo é o problema que segue:
Sabemos que 1 ha de terra mede 10000 m2. As covas para o plantio da
melancia ficam a 1,5 m de distância cada. Quantas covas serão
necessárias para plantar um ha de terra? Em cada cova plantamos
4 sementes. Quantas sementes serão necessárias para 1 ha
de terra?.
O debate gerado em sala de aula a partir desse problema foi longo.
Várias questões foram levantadas. Um agricultor precisa fazer
esse cálculo antes de começar a plantar? Ele já não
tem a noção da quantidade de semente de que vai precisar?
De que forma ele compra a semente? É possível chegar num
mercado e pedir no balcão: “Quero levar 17.800 sementes de melancias?”.
O vendedor de semente sabe dar a informação de quantas sementes
há em cada pacotinho? A aluna Marilene ressaltou que “as sementes
não precisam ser contadas, pois, dependendo do tempo que a pessoa
trabalha, ela já terá uma média” da quantia de sementes
necessárias. No entanto, a conclusão discutida em aula foi
que a situação do problema era importante. Conhecer a quantidade
de semente de que se necessita para plantar em 1 ha é uma indagação
relevante nesse contexto. Mas a pergunta do problema estava mal-posta.
Saber que se precisaria de 17.800 sementes não ajudava, pois não
é assim que se compram sementes. Nas embalagens, não consta
o número de sementes, e sim sua massa. Dessa forma, a pergunta do
problema deveria ser outra: Quantos quilos de sementes vamos precisar?.
Um aluno ainda argumentou que, mesmo assim, o problema não seria
necessário, pois ele já tinha visto embalagens que indicavam
essa relação: quantidade (em gramas ou quilos) de sementes
necessária por área a ser plantada. Discutimos que, de igual
forma, era importante estudar tal questão na escola, para que as
crianças aprendessem quais cálculos os técnicos faziam
para indicar essa especificação nas embalagens. Concluímos
que é nessas situações que ampliamos o conhecimento
das crianças, fornecendo-lhes novas informações sobre
a atividade produtiva na qual elas e suas famílias trabalham. Não
apenas ampliamos seus conhecimentos matemáticos, mas também
seus conhecimentos acerca das relações de produções
nas quais suas famílias estão inseridas. Ressalto que as
famílias agricultoras que trabalham para uma empresa integradora
? como era o caso das famílias que acompanhei no Assentamento Nossa
Senhora Aparecida ? não decidem quantos hectares de terra de uma
determinada cultura vão plantar. Essa é uma decisão
da empresa. E, fixada a extensão de terra a ser plantada, a quantidade
de sementes já está definida. Dessa forma, tais relações
de produção limitam os espaços de decisão dos
agricultores.
É importante destacar a menção do aluno para as
informações contidas nas embalagens. Fez parte do trabalho
pedagógico desenvolvido com a turma uma problematização
de duas embalagens de sementes selecionadas de melancias e de sacos de
adubos. Analisar as embalagens, comparar o que estava escrito em cada uma,
discutir a porcentagem de umidade e de germinação de cada
uma das variedades foram atividades que demandaram muito estudo por parte
do grupo de estudantes e possibilitaram fazer conexões com a atividade
produtiva estudada. Outro material utilizado como fonte de problematização
foi uma Ficha de Entrada de Produto de que a ISLA fazia uso para o controle
das sementes que os agricultores entregavam. Essa ficha foi um material
privilegiado para, ao aprenderem cálculos de porcentagens, os estudantes
conhecerem como a empresa fazia seus arredondamentos e como se davam as
relações com os agricultores assentados. Esses artefatos
ordinários, habituais nas práticas diárias das crianças
e jovens do meio rural, converteram-se em materiais didáticos, concretos
e estruturados. Concretos, porque transitavam pelas casas das crianças
e jovens, porque eram comprados, eram vendidos, causavam dívidas.
Um “concreto” que advinha da materialidade adquirida nas relações
de trabalho das famílias agricultoras. E estruturados, porque tinham
uma lógica que necessitava ser compreendida: a lógica do
mercado, da propaganda, do marketing. A potencialidade que tiveram as atividades
centradas nesses materiais foi exatamente o fato de estudá-los e
problematizá-los sem esquecer seus conteúdos, seus fabricantes
e seus consumidores.
Ainda discutimos outro aspecto referente aos cálculos necessários
às práticas agrícolas. Mesmo havendo alguns cálculos
que os agricultores não façam, talvez possamos nos perguntar:
Para uma maior eficiência na produção, para um menor
desperdício, para diminuir os custos, seria importante fazer esses
cálculos?. Se a resposta for positiva, talvez seja a escola, através
de suas práticas pedagógicas, a responsável em auxiliar
a socialização desse conhecimento às novas gerações.
De acordo com Knijnik (1998, p.281), é possível influenciar
práticas realizadas pelos agricultores através de um trabalho
pedagógico. Isso foi constatado quando agricultores que não
costumavam anotar seus gastos durante as atividades produtivas começaram
a fazê-lo por ocasião das discussões realizadas na
escola durante o trabalho educativo que a pesquisadora coordenou. Nesse
sentido, concretiza-se o princípio da educação do
MST de conectar os processos pedagógicos às exigências
cada vez mais complexas dos processos produtivos dos assentamentos e “desenvolver
habilidades, comportamentos, hábitos e posturas necessários
aos postos de trabalho que estão sendo criados através dos
processos de luta e de conquista das áreas de Reforma Agrária”
(MST, 1996, p.16).
Os problemas elaborados pelos estudantes tinham uma semelhança
em sua estrutura: todos os dados necessários para sua resolução
constavam em seus enunciados. Nas discussões de sala de aula, os
estudantes compreenderam que problemas assim “arrumadinhos” privam
as crianças de momentos de aprendizagem importantes, ou, como disse
a aluna Matilde, “não dá chance para a criança pensar”.
Talvez seja possível proporcionar às crianças momentos
pedagógicos diferentes, em que, diante de questões, tenham
oportunidade de buscar as informações de que precisam, refletir
sobre quais são fundamentais, quais são secundárias,
quem tem essas informações, onde buscá-las, se podem
ser apresentadas de modo aproximado ou têm que ser exatas. São
essas aprendizagens que o cotidiano, às vezes, nos exige.
Uma aluna, durante uma aula, fez uma pergunta que enfatizava a importância
de saber buscar as informações necessárias para a
resolução de um problema. Analisávamos a seguinte
situação elaborada por um grupo de alunos: “Um agricultor
planta em 100 metros quadrados 200 covas de melancia, sendo que cada pé
produzirá 250 gramas de sementes. Quantos kilogramas produzirá
no total?”. A intervenção da aluna veio em seguida: “O que
eu quero mesmo saber é como o agricultor faz as contas para saber
que cada pé produz 250 g de sementes.” Ou seja, a pergunta da aluna
trouxe à tona que o essencial, o difícil, o que não
sabia, nessa situação, era como chegar às informações
do problema e não propriamente sua resposta.
A segunda tendência identificada no planejamento das atividades
pedagógicas realizadas pela turma foi a que chamei de Listagem de
Conteúdos. Em alguns trabalhos, os conteúdos listados conectavam-se
com a produção de sementes de melancias de forma direta;
em outros, isso já não acontecia. Identifiquei duas compreensões
distintas. Uma delas era que primeiro se deveria ensinar os conteúdos
necessários para o entendimento da atividade produtiva, e só
depois de dominá-los é que se poderia estudar e problematizar
a produção. Ou seja, primeiro viriam os conteúdos,
depois sua aplicação. Uma segunda compreensão seria
utilizar a situação da atividade produtiva como motivação
para se introduzirem os conteúdos curriculares de Matemática.
Depois, esses mesmos conteúdos seriam “aplicados” em outros contextos,
distantes da produção. O recorte de um dos trabalhos produzidos
pelos grupos de estudantes apresenta esse aspecto:
Plantadeiras ? poderíamos trabalhar medidas como: mm, decímetro,
metro, cm, hectômetro, km, distância de sua casa à escola,
à cidade, à capital do seu Estado, capital do Brasil, extensão
do assentamento.
Em ambas as compreensões, o processo de ensino e aprendizagem
apresenta uma descontinuidade entre o estudo do conteúdo e o estudo
da atividade produtiva. O que direciona o processo educativo é a
aprendizagem do conteúdo da Matemática oficial. Numa perspectiva
etnomatemática, e no recorte que aqui estou fazendo, é a
problematização da atividade produtiva que vai dar a direção
do processo educativo. É em conseqüência desse estudo,
para compreender a dinâmica e as informações desse
trabalho produtivo, que se organiza o estudo da Matemática e das
outras disciplinas. Os conteúdos vão ser estudados dentro
do contexto da prática produtiva e nele inseridos. Não se
precisa sair dele ou se criar outro contexto para ilustrar as explicações.
Estuda-se o conteúdo na própria situação em
que ele se faz necessário, buscando não criar uma situação
artificial. Os conteúdos ficam submetidos à atividade produtiva
e serão estudados em função dela (Knijnik, 1997).
Mas não foram apenas “conteúdos do currículo”
os únicos citados pelas alunas e alunos. Houve conteúdos
de Matemática usualmente ausentes nas práticas escolares
convencionais ocupando lugares em seus planejamentos. Conteúdos
denominados de Orçamento, Custo de Produção, Época
de plantio, Meses para a colheita, Custo das sementes e Adubos figuraram
juntamente com os conteúdos oficialmente legitimados. São,
na verdade, conteúdos estreitamente ligados ao contexto da produção
agropecuária, que a turma, influenciada pelos Princípios
da Educação do MST, chamou de “socialmente úteis”.
A terceira tendência identificada na produção escrita
dos alunos foi a que denominei de Problematização da
Atividade Produtiva. Essa tem como característica “não levantar
problemas, mas fatos relevantes”, questões que, de fato, problematizam
a atividade produtiva. Contrariamente aos problemas “arrumadinhos”, mencionados
quando examinei a primeira tendência, identificamos que, em seus
planejamentos, os alunos elaboraram questões importantes, centradas
na atividade produtiva, que auxiliavam no entendimento dessa. Eram questões
que aprofundavam o conhecimento sobre a produção, fosse ele
matemático ou relacionado a outra disciplina. Alguns exemplos dessas
questões foram:
(...) O que o trator consome para se manter? Graxa, óleo, etc. O que os bois consomem para se manterem? Capim, milho, etc. Qual a diferença entre os gastos? (...) A terra não é medida para plantar, devido já se saber sua metragem através de plantios anteriores; mas será que devido a plantios anteriores a terra não teve alterações? Por que não se pode plantar com a terra seca? (...) Qual o lucro da lavoura? Quanto a indústria ganha com a industrialização e venda no mercado da semente? Qual seria o preço a ser pago ao produtor para que ele tivesse seu trabalho reconhecido? Quanto é que cada integrante da família recebe pelo seu trabalho?.
Os alunos também evidenciaram que compreenderam a multiplicidade de práticas de medir e de formas de produção. Em seus trabalhos, algumas duplas de alunos assim registraram:
(...) Diferentes formas de se calcular a área: a) Proporção (sementes/ha). b) Somando-se as paredes opostas, dividindo por 2, multiplicando os resultados entre si, dividindo por 10 000 = número de ha. c) Cálculo de área. (...) A parte interessante do trabalho é que o mesmo procura questionar os dois lados da situação. Exemplo: “se fosse nosso o trator, será que daria os mesmos gastos?”. (...) Cálculos de produção diferenciados. Exemplo: uso da máquina sendo dono e não sendo. (...) Diferenciação do trabalho com trator e com bois no sentido dos gastos para manter os dois.
As análises que fui fazendo ao longo desta pesquisa mostraram que, de fato, as práticas produtivas agrícolas e os saberes de quem nelas trabalham podem se constituir em temas centrais de estudo, com várias possibilidades de serem incluídos nos currículos das escolas rurais, gerando interessantes e férteis aprendizagens. Constatei que, apesar das práticas produtivas rurais serem muitas e diferentes entre si, a presença de elementos peculiares existentes nelas facilitaram, sem simplificar, a problematização das mesmas. Também surgiram saberes locais e particulares das famílias agricultoras, inclusive saberes matemáticos construídos na cotidianeidade do trabalho agrícola, os quais, na perspectiva Etnomatemática vivenciada, tive possibilidade de inserir no processo pedagógico. Do ponto de vista da Proposta de Educação do MST, essa problematização relacionou o estudo de Matemática com seus princípios e contribuiu “na construção de uma proposta pedagógica para as escolas do meio rural, vinculada aos desafios da luta pela Reforma Agrária” (MST, 1996) .
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