Educação Matemática e Ambiental: Uma perspectiva pragmática?



João Frederico C. A. Meyer



"Meus olhos são os únicos que tenho para ver o universo" - esta frase de um personagem de Saul Bellow serve para todos nós. E foi dita de modo muito poético por Adauto Santos que escreveu (para que cantássemos, em "Triste Berrante"...) que seus olhos, mesmo vendo gente e carros passando, ainda estavam enxergando a velha boiada a passar. É desse modo que registro aqui o que vejo - e do jeito que vejo, uma contribuição para que outros vejam a seu modo, e sem a pretensão da expressão de uma verdade objetiva, imutável. Uma verdade minha, sim, e também, espero, um caminho para que outros possam ver as suas verdades.

Ainda refletindo nessa linha dos olhos que vêem como seus donos pensam, registro que a Educação ambiental se inicia com o reconhecimento de que o quotidiano e as relações com o meio estão sempre  presentes na sala de aula, e na escola. Não só, evidentemente, mas também. Nem o professor nem o aluno deixam de lado seu dia-a-dia, seus problemas, seus saberes, suas preocupações e medos ao entrar na sala de aula de matemática. Reconhecer que somos assim é um passo inicial. Do ponto de vista etnomatemático, a educação ambiental se inicia com o reconhecer que nas relações sociedade-aluno, escola-aluno, professor-aluno fazem-se presentes os poderes políticos de uns e de outros, as suas competências, suas paixões  e compromissos, sua sobrevivência.

 Mais de uma vez recorri à palavra reconhecer. Conhecer de novo, a re-cognição, o saber de novo (podemos escrever o re-saber?) não é necessariamente algo que nos deixe ressabiados, o que é tristemente comum quando a cada ano voltamos aos dados de impacto ambiental, aos dados econômicos de nossas sociedades ibero-americanas, à distribuição de renda. Este reconhecer implica numa ampliação do quadro, tanto "para fora", quanto "para dentro". "Para fora" descreve o ato de usar o que já conhecemos para incluir mais dados - com valor. O professor Rodney Bassanezi sempre afirma que, quando não sabemos o que fazer com uma situação, como alunos e professores de matemática, podemos começar medindo e fazendo contas. Ora, estas contas não são em geral operações novas, são conhecidas, mas a quantificação de diferentes aspectos do objeto estudado pode nos levar a uma compreensão melhor - quando não muito melhor! - do que estamos estudando - e tentando compreender. Por outro lado, "para dentro" indica que essa quantificação em geral modifica o valor dado ao problema estudado, à sua importância ou às suas conseqüências. Ole Skovsmose, definindo três aspectos fundamentais de educação matemática identificou entre eles o que chamou de conteúdo crítico - neste caso, o julgamento de valor que fazemos com os resultados das operações de quantificação de fenômenos ambientais. E sua importância, e suas conseqüências...

 De fato, como professores sempre soubemos que alunos trazem consigo para a escola, para a sala de aula, para as atividades de aprendizagem de matemática todas as suas bagagens multiculturais, históricas, familiares. Isto é, sempre soubemos que o ato de ensinar não tem como sujeito único o "professor-que-ensina", pelo contrário, o ato de aprender é que tem os muitos "sujeitos-que-aprendem". Isto nós o sabíamos de nosso tempo de alunos (é claro que alguns professores podem achar que não se lembram, mas dificilmente não guardamos com carinho a memória de alguns desses nossos momentos de redescoberta...). Também é verdade que os alunos também têm consciência dos problemas imediatos de qualidade de vida no bairro, na cidade, na região. Algumas vezes estes alunos não crêem que seus saberes e a consciência de suas dificuldades sejam relevantes para processos de aprender matemática, mas em geral os alunos "sabem que sabem". Em sua tese de doutorado, o professor Ademir Caldeira descreve uma experiência em que os alunos, colocados diante do desafio de identificar, enunciar, categorizar e escolher o problema de qualidade de vida de sua região, nunca deixaram de escolher aquela situação reconhecida por autoridades locais como o problema do lugar...

 Reconhecer a Educação ambiental num ambiente de Educação matemática é, então, aceitar que sentimento e consciência étnicos são parte fundamental da aprendizagem de conceitos matemáticos, abstratos ou práticos, teóricos ou concretos, úteis de imediato ou a longo prazo. São, portanto, parte fundamental a ser considerada em seu ensino. O outro lado da mesma moeda consiste em reconhecer que a Educação ambiental não aceita ser só de Matemática, ou só de Biologia ou História ou Estudos Sociais: por excelência é alheia às divisões que temos feito de disciplinas, matérias, séries (uma vez o Prof. Ubiratan D'Ambrósio mencionou a "anti-disciplinaridade", algo que descreve bem o contexto em que ocorre a Educação ambiental).

 Afirmei acima que como professores, "já sabemos" que, embora textos e práticas de matemática descartem a vida, a cultura, a história dos alunos, tudo isto é parte do ambiente escolar, da aula de matemática, do processo de aprendizagem desenvolvido. E os alunos "já sabem" quais os principais problemas ambientais de suas comunidades. Tanto saber exclui a aprendizagem? Não, é preciso ir além. Faz-se necessário quantificar diferentes aspectos dos problemas de qualidade de vida, locais, regionais, nacionais. É necessário construir e desenvolver ferramental matemático para permitir a avaliação dos fenômenos. Um exemplo seria o cálculo de quantos alunos há, na escola, por vaso sanitário, ou quantos metros quadrados de espaço de recreação cabem a cada aluno da escola. Quantificar estas situações permitem avaliar (dar valor) aos seus aspectos. Desse modo se pode, também, "dar valor" a muitos outros aspectos do ambiente escolar, seja no aspecto físico (altura dos degraus, espaço de ventilação, iluminação, carteiras em bom estado versus carteiras quebradas) seja em aspectos sociais, históricos, políticos...

 Há aqui um problema grave para professores que, como eu, têm uma formação em matemática: até bem tarde nossos textos, nossas aulas, nossa prática nos ensinaram que os problemas matemáticos têm uma resposta única, verdadeira, exata e absoluta (no sentido de sua atemporalidade). E, se o número da pergunta fosse par, essa reposta estaria no final do livro - e a gente poderia conferir. Por outro lado, trabalhando profissionalmente com Ecologia Matemáticas, na área de Impacto Ambiental, re-descubro o que todos os nossos alunos constatam ao pisar fora da escola: os verdadeiros problemas na sociedade vêm, muitas vezes sem a pergunta! Que dirá as respostas. Sim, porque esse tempo da matemática imaculada, perfeita e verdadeira, universal e exata foi-se há muito. Ferramentas diferentes ou de diferentes conveniência levam a resultados distintos, quase sempre aproximados, com prazo de validade e exigindo para seu uso criteriosa avaliação.

 No parágrafo acima não se identifica essa aprendizagem, essa pedagogia de tentativa-e-erro, do experimental, do aprendizado a partir de "becos-sem-saída", e da aproximação crítica e consciente das soluções obtidas, e da avaliação desses resultados tanto no universo matemático quanto em sua aplicação. Mas isto de fato corresponde à Modelagem matemática. Com a Modelagem matemática incorporamos na prática de sala de aula o saber do aluno. Incluímos a necessidade de conceitos matemáticos abstratos e seu uso criterioso. Chegamos à avaliação de aproximações de soluções como úteis (ou não!) nos problemas anteriormente definidos. Aqui temos a aprendizagem de matemática com trabalhos de campo a partir dos quais a matemática entra em função de sua real relevância prática (ao contrário dos conceitos "congelados" a que se refere Paul Gerdes, e que Mary Harris "descongelou", relativamente aos quais primeiro se vai atrás do conceito matemático para só depois sair à caça de alguma aplicação em geral mais teórica do que qualquer outra coisa...), junto com outros assuntos e temas, cada um sua real relevância, também. Embora isto possa ser enunciado de modo a parecer o óbvio, está bem distante dos usos da Matemática tradicional, em que primeiro se aprende a Matemática, para depois - e só então - poder aplicá-la!

 No entanto, o trabalho de campo consiste em um dos primeiros passos, mas não encerra nem contém Educação ambiental e matemática. Integram esta pedagogia os trabalhos em salas de aulas, em que, além dos conceitos matemáticos e dos conceitos de outros assuntos a serem aprendidos e manejados, há a postura crítica com relação aos aspectos sociais, históricos, culturais dos temas buscados e escolhidos. Esta análise exige, por certo, o conhecimento de matemática e, muitas vezes cobra a aprendizagem de novos conceitos, necessários para avaliar aspectos quantitativos ou qualitativos do que se estuda, mas vai muito além em sua transdisciplinaridade.

 As dificuldades não devem nos desanimar a priori. Seria bom se todas as dificuldades aqui mencionadas ou subentendidas agissem mais como agente motivador, ou até catalisador, visto que uma vez disparado o processo, ele ganha uma dinâmica própria (voltando a citar Ole Skovsmose, resultado do que ele denomina de compromisso crítico, o engajamento com o tema, o tema dos alunos e sua comunidade...). De onde poderiam advir essas dificuldades? Das escolhas feitas pelos alunos, quando, em função de seus quotidianos, de suas famílias, de suas histórias, selecionam um tema, um objeto de análise, uma situação de qualidade de vida. Nem sempre a Matemática é a primeira ferramenta para a avaliação, embora seja, de início, uma das mais poderosas. Também acontece que estes temas escolhidos deste modo são geralmente temas locais, problemas comunitários, questões de manifestação municipal. Cabe aos professores (e aqui não se trata apenas de professores de Matemática, evidentemente) dirigir o estudo de modo a incluir, a partir das manifestações locais dos problemas, seus aspectos regionais, estaduais e seus aspectos globais. Assim, o problema da queima de lixo pode levar, num cuidadoso caminho e numa criteriosa discussão, às conseqüências globais do efeito estufa, bem como a canalização dos córregos nas aglomerações urbanas podem levar a frutífero debate sobre as bacias hidrográficas, o uso da água e o cuidado com seu tratamento. Neste dois exemplos se ilustra o poder da Matemática na avaliação quantitativa de impactos, no cálculo de custos, de volumes, de desperdício... Analogamente, a Matemática se presta a avaliações qualitativas, ainda que objetivamente expressas, da irresponsabilidade de certos setores públicos, ou da sua ação consciente. Não se afirma aqui que problemas globais não possam ser apresentados per se, como o caso de Chernobyl, ou o aumento do buraco na camada de Ozônio, pelo contrário, nesse caso os professores podem trazer os efeitos desses fenômenos globais para o dia-a-dia da escola, da comunidade e, repito, nesses casos a Matemática serve como ferramenta básica para medir e fazer contas: para avaliar.

 O trabalho profissional em Ecologia Matemática  apresenta dois aspectos que afetam, evidentemente, as opiniões que expresso neste texto. De um lado, um pragmatismo (de resto comum a muitos dos esforços em Matemática aplicada, nos quais interlocutores exigem ou precisam de algum tipo de resposta, ou a indicação de algum caminho de ação). Por outro lado, aplicações em Biomatemática como um todo podem se revestir de um caráter de urgência, e muitas vezes o interlocutor não pode esperar os quatro anos necessários para o desenvolvimento de uma dissertação de doutorado, nem os dois anos do mestrado e, muitas vezes, sequer os doze meses da Iniciação científica... Esta urgência e aquela exigência criam uma tensão que pode também surgir em trabalhos de educação ambiental: a partir de determinado problema de impacto, de uma situação analisada, de um fenômeno quantificado, os alunos vão querer saber o que pode ou o que deve ser feito de imediato! Não é incomum que haja uma tentação para limitar o espaço de aprendizagens matemáticas em função da amplitude do que se estuda, remetendo a classe (professor ou professora e alunos) a outros campos de ciência. Isto pode acontecer quando o paradigma da Matemática do professor é aquele da Matemática absoluta, verdadeira, descoberta, exata, objetiva e distante de nossos problemas diários. Nesse caso aprender Matemática não inclui a política, o ambiental, os contextos sociais e históricos, deixa de lado os cheiros  da vida. Mas, do modo que estamos aqui propondo, incluir os fenômenos de qualidade de vida em atividades que levam à aprendizagem matemática, os sentidos, a memória, as concepções os saberes de alunos e suas comunidades são fundamentais, e as tensões geradas por anseios e angústias não apenas aumentam o interesse e a motivação do grupo aprendiz (incluindo, além dos alunos,  o professor de matemática, os de outras disciplinas, diretor, secretário, funcionários...), aumentam a consciência da relevância de se usar os saberes para a melhoria da vida - e da urgência em fazê-lo agora. O educador suiço Gert Rüppel escreveu certa vez que a educação prepara-nos para o dia de amanhã. Não deixa de ser verdade. Praticamente todas os grandes decisões que levam a impactos poluidores são tomadas por técnicos, profissionais e políticos que foram à escola ontem... Mas trabalhar com Educação matemática e ambiental confere à aprendizagem e ao ensino a urgência do dia de hoje, da educação para o presente.

Referências
Bassanezi, R.C.: Comunicação Pessoal, Campinas, S.P., 1988.
D'Ambrósio, U., apud Gilmore, G. F. in "Afterword ", Powell, A.B. e Frankenstein, M. (ed.) Ethnomathematics - Challenging Eurocentrism in Mathematics Education. State University of New York Press, N. York, 1997.
Gerdes, P.: How to recognise hidden geometrical thinking: A contribution to the development of anthropological mathematics. For the learning of Mathematics 6, no. 2 (June), 1986.
Harris, M.: Na Example of Traditional Women's Work as a Mathematical Resource, in Powell, A.B. e Frankenstein, M. (ed.) Ethnomathematics - Challenging Eurocentrism in Mathematics Education. State University of New York Press, N. York, 1997.
Skovsmose, O.: Towards a Philosophy of Critical Mathematics Education. Dordrecht, Kluwer, 1994.