Primeiramente, gostaria de agradecer o convite e circunstanciar minha
diminuta contribuição às discussões dessa mesa-redonda,
dedicada ao tema "minorias e etnomatemática”. Como não sou
um especialista da área, posso correr o risco ? e o farei ? de ser
considerado um "intruso", uma vez que não proporei uma discussão
apurada, mas algumas idéias esparsas, descontínuas sobre
um dos temas em foco: a idéia de “minoria”. E isto sob um viés
muito específico de sua manifestação concreta na contemporaneidade
escolar: o “aluno-problema” ? a minoria, de fato, mais em voga nos discursos
dos agentes escolares.
Nesse sentido, este Congresso como um todo e esta mesa em particular
representam um interessante avanço democrático no país,
uma vez que conhecer cada vez mais e melhor as teorias e práticas
em torno dos modos diferenciados do proceder matemático parece-me
um trabalho digno de louvor. Trata-se, pois, de uma reunião de profissionais
para discutir uma temática incomum até bem pouco tempo atrás,
ou, em outras palavras, um saudável problema, no que diz respeito
à própria imagem social de uma “matemática amplificada”,
para além de uma “matemática clássica”. Matemáticas,
pois, segundo meu olhar de visitante da área.
O minúsculo recorte a partir do qual pretendo, aqui, desenvolver
algumas idéias é o de uma outra imagem que vem assombrando
quase todos os profissionais e alguns teóricos da educação
brasileira atual, o que certamente deve incidir também sobre os
etnomatemáticos: os famigerados “alunos-problema”.
Antes de mais nada, trata-se de uma figura que tem despontado, principalmente
a partir da década de 1980, como uma justificativa corriqueira para
grande parte das inflexões do cotidiano escolar. E o que esse controvertido
"ente" representaria?
Trata-se, em geral, daquele que não apresentaria as supostas
"condições mínimas" para o aproveitamento escolar
ideal, ou seja, aquele que portaria algum déficit, ou mesmo um superávit,
em relação ao padrão de desenvolvimento psicológico
esperado.
Quase sempre diagnosticado como portador individual de algum desvio
em relação ao perfil discente clássico, enquadrável
em um vasto espectro de anomalias mentais e/ou morais, o "aluno-problema"
seria aquele acometido por alguma espécie de "distúrbio psico-pedagógico".
E quais seriam eles?
Podem se estender desde aqueles de origem neurológica até
os cognitivos clássicos (os tais “distúrbios da aprendizagem”),
passando pelos de natureza afetiva; estes de difícil, senão
impossível, delimitação consensual no plano teórico.
Entretanto, convém assegurar desde já que tais atributos
dissonantes não podem, sob nenhuma hipótese, ser encarados
automaticamente como características psico(pato)lógicas,
ou como predisposições particulares ? inatas ou adquiridas,
não importa. Mesmo porque o mesmo “aluno-problema”, dependendo das
circunstâncias, pode apresentar uma produtividade e um entusiasmo
insuspeitos aos olhos viciados pelo suposto bom senso prático.
Assim, trata-se de uma queixa recorrente cujas causas remetem à
interioridade mesma do cotidiano escolar, ou seja, suas relações
constituintes e, em particular, a relação professor-aluno.
Há de se retirar, portanto, o foco diagnóstico da figura
exclusiva do aluno, deslocando-o para as relações conflitivas
que o circunscrevem, das quais ele é tão-somente um porta-voz,
ou um problematizador, se se quiser.
Dessa forma, quando uma escola começa a apresentar um quantum
acima do aceitável de diagnósticos e encaminhamentos dessa
natureza ou, mais drasticamente, de reprovação e evasão,
o que está em pauta não é o baixo nível de
inteligência ou de rendimento de seu corpo discente, mas o teor das
relações institucionais que, ao menos, estão retroalimentando
tais grandezas.
Incapazes, na maioria das vezes, de reconhecer sequer o âmbito
de suas competências mínimas, posto que foram se multiplicando
no decorrer das últimas décadas, os agentes escolares não
se furtam a lançar mão do arsenal teórico de outros
campos conceituais quando sua clientela se apresenta de maneira alheia
ao estreito padrão pedagógico contemporâneo. É
aí que entram em cena os peritos e seus discursos teórico-técnicos,
cuja conseqüência automática é uma nova arbitragem
de tal padrão, hipoteticamente mais científica, objetiva,
neutra.
Exemplo disso são as classes especiais, destinadas àqueles
com dificuldade de freqüentar classes regulares, e que só podem
ser encaminhados a elas com o “laudo técnico” de um psicólogo
clínico. Outros exemplos são as crianças hiperativas
ou as apáticas, as superdotadas ou as limítrofes, as imaturas
ou as precoces etc. Note-se, por curiosidade, que se trata de pares opostos,
tidos, porém, como igualmente dificultadores da ação
pedagógica.
Qual seria, então, a média desejável? Quais os
requisitos mínimos para o trabalho pedagógico? Quais, enfim,
as condições de possibilidade para o êxito escolar
hoje em dia?
As respostas a tais questões parecem não mais pertencer
aos educadores, mas aos peritos psico-pedagógicos.
Nesse sentido, poder-se-ia afirmar com certa segurança que a
psicologização das causas do fracasso discente (o que inclui
claramente o aprendizado da matemática) findou por instaurar um
amplo processo de patologização do cotidiano escolar.
Caberia, assim, indagar: o que faz com que tais concepções
sejam assumidas com tanta credulidade pelos educadores? De onde emanariam
tamanhas eficácia e aderência discursivas?
A resposta a estas outras questões talvez pudesse ser condensada
em apenas um enunciado: na suposta cientificidade de que se imbui o psicólogo,
ou mesmo o recém-fundado psicopedagogo, ao pontificar sobre os distúrbios
dos quais se apropria, e sobre os quais assenta sua autoridade, na qualidade
de especialista.
Ora, talvez fosse mais honesto admitir que toda essa munição
discursiva, dita científica, refere-se tão-somente a uma
produção conceitual originária nos extramuros escolares,
e que é tomada de empréstimo pelos educadores ? ou por inépcia
ou por imposição.
Salvo melhor juízo, o insucesso escolar e seus derivados ? efeitos
possíveis da relação professor-aluno ? acabam sendo
atribuídos quase exclusivamente a instâncias extra-institucionais:
o aluno e seus “distúrbios”, sua família, sua classe social,
ou, em último caso, o contexto sociocultural mais amplo.
De minha parte, em vez de “alunos-problema”, prefiro pensá-los
como alunos “diferentes”. Uma torção não apenas de
vocábulos, mas fundamentalmente do modo como temos compreendido
e nos relacionado com esses novos habitantes do cenário escolar.
Uma torção ética, portanto.
Assim, gostaria de propor uma questão central: por que, por
um lado, excedemos em compaixão quanto os alunos "diferentes" e,
por outro lado, fortalecemos seu silenciamento civil? Em termos mais concretos,
por que temos tido tanta dificuldade de garantir espaços escolares
de fato inclusivos, e para todos?
Sem a pretensão de alcançar uma resposta definitiva,
estável, proponho uma hipótese nuclear: a excessiva psicologização
do olhar contemporâneo sobre a infância e a adolescência
talvez seja responsável (não apenas, mas grande parte das
vezes) pela exclusão escolar das crianças e adolescentes
"diferentes".
Para situar a possível plausibilidade de tal hipótese,
permitam-me um breve recuo teórico.
A infância e a adolescência, tal como as conhecemos
hoje, não são um fato invariante do ponto de vista histórico.
Mais especificamente, não se pode dizer que houvesse, na Idade Média
por exemplo, um mundo propriamente infantil, muito menos adolescente. Pelo
contrário, não havia uma distinção precisa
entre o universo do adulto e o da criança ? esta encarada como uma
espécie de apêndice civil. É claro que a criança,
a seu modo, fazia as mesmas coisas do adulto, mas era pensada como se fosse
um adulto em miniatura. Não havia, pois, uma especificidade do olhar
do adulto quanto às particularidades infantis, suas necessidades
e tempos próprios ? assim como o fazemos hoje.
Pode-se dizer, grosso modo, que apenas a partir do século XIX
a infância foi inventada como um "problema" teórico, como
uma etapa específica e autônoma da vida. Ou melhor, foram
construídos os discursos teóricos sobre a infância,
que hoje conhecemos e professamos tão bem. Uma criança não
mais "natural", mas objeto do olhar normativo da ciência. Nasce aí
também, e conseqüentemente, uma certa ciência da criança
chamada "psicologia do desenvolvimento".
A partir dos estudos dedicados à descrição da
evolução infantil, desponta uma criança jamais conhecida
até então: a criança da "norma" evolutiva. Uma criança
que nasce e cresce segundo padrões estratificados de desenvolvimento
orgânico, cognitivo, afetivo, moral, social etc. Uma criança
sempre em desenvolvimento. Uma criança para sempre crivada pelo
olhar psicológico, pois.
Ora, é sempre bom lembrar que esse olhar psicologizado sobre
a infância representa uma faca de dois gumes. Se, por um lado, a
atenção integral à infância é efeito
desse processo, por outro, a exclusão de uma parcela significativa
dessas mesmas crianças pode ser entendida também como efeito
desse mesmo processo. Vejamos como isso pode se dar.
Se partirmos da premissa de que o desenvolvimento humano (infantil,
em particular) segue um curso lento, gradual, contínuo e ordenado,
o que aconteceria quando isso não se dá a contento? O que
restaria a um segmento de crianças que, por uma ou outra razão,
teriam seus elos de desenvolvimento (supostamente) rompidos ou ameaçados,
como é o caso, aliás, do “aluno-problema”?
Desvio, distúrbio, disfunção, anomalia, bloqueio,
transtorno: termos que dizem do afastamento de tais crianças "diferentes"
do que era "cientificamente" esperado delas. Quase sempre, elas são
encaradas como "vítimas" de uma conjuntura hostil ou de uma natureza
impiedosa, e, mais drasticamente, como criaturas cujo desenvolvimento seria
irremediavelmente maculado, usurpado.
Daí o horror, o desalento e a comiseração que
nos acompanham. Some-se a isso a dissolução e a impotência
do discurso psico-pedagógico: "nada mais poderia ser feito!".
Talvez esse breve recuo teórico possa lançar alguma luz,
mesmo que parcialmente, sobre nossas cambaleantes iniciativas de inclusão
escolar.
De modo oposto a tais premissas, creio que seja mais do que necessária
uma revisão paradigmática do discurso pedagógico atual,
o que implica uma recusa declarada à noção de desenvolvimento
como marcha e progresso, ou como resultado de coordenadas de causa-efeito
(por exemplo: a recusa à simples e traiçoeira noção
de “pré-requisito” para a aprendizagem matemática, ou de
“fases” desta).
Prefiro a idéia de desenvolvimento psicológico como algo
não linear e não previsível, mais como a multiplicidade
de respostas que são ofertadas às incessantes interpelações
da vida. Respostas divergentes da "norma" evolutiva, das assertivas dos
manuais teóricos construídos sobre as experiências
de crianças suíças, francesas ou americanas. Respostas
plásticas, criativas, muito mais inteligentes do que nosso olhar
reducionista, benevolente e duvidoso do ponto democrático.
Se rastrearmos a história humana, encontraremos uma recorrência:
boa parte dos homens que fizeram diferença, isto é, que mudaram
a visão sobre os fatos, foram crianças atípicas, fora
do padrão, refratárias ao modelo desenvolvimentista clássico
? tanto para baixo quanto para cima de sua arbitrária e indefectível
"média".
Portanto, o acolhimento efetivo de tais crianças em desvantagem
exige um posicionamento que ultrapassa nosso olhar pretensamente "científico"
sobre a infância e a adolescência atuais. Ele requer um compromisso
de ordem política e ética, que se traduz, a meu ver, na premissa
extensiva de "democratização" das relações
escolares: essa idéia tão familiar e tão desconhecida
de nós brasileiros.
Por fim, a inclusão conseqüente de tal parcela de crianças
em situação de vulnerabilidade não só escolar,
mas também psíquica e principalmente civil, requer uma boa
dose de responsabilidade e generosidade por parte dos educadores, o que
pressupõe, no meu parco entender, a recusa à piedade, ao
assistencialismo, à negligência e à apatia ? nossos
algozes cotidianos de sala de aula.
Inclusão de fato significa, para mim, alegria, expansão
de mundo, companhia. Notar e ser notado no mundo ? o que todos ansiamos,
de um modo ou de outro.
Deveríamos aprender mais com esses alunos, com sua força
de resistência. Deveríamos, enfim, aprender mais sobre essas
etnomatemáticas do viver que eles nos legam. É só
prestar um pouco mais de atenção.
Obrigado.