Da participação na mesa-redonda "etnomatemática: minorias” no Primeiro Congresso Brasileiro de Etnomatemática



 

Júlio Groppa Aquino

 

Primeiramente, gostaria de agradecer o convite e circunstanciar minha diminuta contribuição às discussões dessa mesa-redonda, dedicada ao tema "minorias e etnomatemática”. Como não sou um especialista da área, posso correr o risco ? e o farei ? de ser considerado um "intruso", uma vez que não proporei uma discussão apurada, mas algumas idéias esparsas, descontínuas sobre um dos temas em foco: a idéia de “minoria”. E isto sob um viés muito específico de sua manifestação concreta na contemporaneidade escolar: o “aluno-problema” ? a minoria, de fato, mais em voga nos discursos dos agentes escolares.
Nesse sentido, este Congresso como um todo e esta mesa em particular representam um interessante avanço democrático no país, uma vez que conhecer cada vez mais e melhor as teorias e práticas em torno dos modos diferenciados do proceder matemático parece-me um trabalho digno de louvor. Trata-se, pois, de uma reunião de profissionais para discutir uma temática incomum até bem pouco tempo atrás, ou, em outras palavras, um saudável problema, no que diz respeito à própria imagem social de uma “matemática amplificada”, para além de uma “matemática clássica”. Matemáticas, pois, segundo meu olhar de visitante da área.
O minúsculo recorte a partir do qual pretendo, aqui, desenvolver algumas idéias é o de uma outra imagem que vem assombrando quase todos os profissionais e alguns teóricos da educação brasileira atual, o que certamente deve incidir também sobre os etnomatemáticos: os famigerados “alunos-problema”.
Antes de mais nada, trata-se de uma figura que tem despontado, principalmente a partir da década de 1980, como uma justificativa corriqueira para grande parte das inflexões do cotidiano escolar. E o que esse controvertido "ente" representaria?
Trata-se, em geral, daquele que não apresentaria as supostas "condições mínimas" para o aproveitamento escolar ideal, ou seja, aquele que portaria algum déficit, ou mesmo um superávit, em relação ao padrão de desenvolvimento psicológico esperado.
Quase sempre diagnosticado como portador individual de algum desvio em relação ao perfil discente clássico, enquadrável em um vasto espectro de anomalias mentais e/ou morais, o "aluno-problema" seria aquele acometido por alguma espécie de "distúrbio psico-pedagógico". E quais seriam eles?
Podem se estender desde aqueles de origem neurológica até os cognitivos clássicos (os tais “distúrbios da aprendizagem”), passando pelos de natureza afetiva; estes de difícil, senão impossível, delimitação consensual no plano teórico.
Entretanto, convém assegurar desde já que tais atributos dissonantes não podem, sob nenhuma hipótese, ser encarados automaticamente como características psico(pato)lógicas, ou como predisposições particulares ? inatas ou adquiridas, não importa. Mesmo porque o mesmo “aluno-problema”, dependendo das circunstâncias, pode apresentar uma produtividade e um entusiasmo insuspeitos aos olhos viciados pelo suposto bom senso prático.
Assim, trata-se de uma queixa recorrente cujas causas remetem à interioridade mesma do cotidiano escolar, ou seja, suas relações constituintes e, em particular, a relação professor-aluno. Há de se retirar, portanto, o foco diagnóstico da figura exclusiva do aluno, deslocando-o para as relações conflitivas que o circunscrevem, das quais ele é tão-somente um porta-voz, ou um problematizador, se se quiser.
Dessa forma, quando uma escola começa a apresentar um quantum acima do aceitável de diagnósticos e encaminhamentos dessa natureza ou, mais drasticamente, de reprovação e evasão, o que está em pauta não é o baixo nível de inteligência ou de rendimento de seu corpo discente, mas o teor das relações institucionais que, ao menos, estão retroalimentando tais grandezas.
Incapazes, na maioria das vezes, de reconhecer sequer o âmbito de suas competências mínimas, posto que foram se multiplicando no decorrer das últimas décadas, os agentes escolares não se furtam a lançar mão do arsenal teórico de outros campos conceituais quando sua clientela se apresenta de maneira alheia ao estreito padrão pedagógico contemporâneo. É aí que entram em cena os peritos e seus discursos teórico-técnicos, cuja conseqüência automática é uma nova arbitragem de tal padrão, hipoteticamente mais científica, objetiva, neutra.
Exemplo disso são as classes especiais, destinadas àqueles com dificuldade de freqüentar classes regulares, e que só podem ser encaminhados a elas com o “laudo técnico” de um psicólogo clínico. Outros exemplos são as crianças hiperativas ou as apáticas, as superdotadas ou as limítrofes, as imaturas ou as precoces etc. Note-se, por curiosidade, que se trata de pares opostos, tidos, porém, como igualmente dificultadores da ação pedagógica.
Qual seria, então, a média desejável? Quais os requisitos mínimos para o trabalho pedagógico? Quais, enfim, as condições de possibilidade para o êxito escolar hoje em dia?
As respostas a tais questões parecem não mais pertencer aos educadores, mas aos peritos psico-pedagógicos.
Nesse sentido, poder-se-ia afirmar com certa segurança que a psicologização das causas do fracasso discente (o que inclui claramente o aprendizado da matemática) findou por instaurar um amplo processo de patologização do cotidiano escolar.  Caberia, assim, indagar: o que faz com que tais concepções sejam assumidas com tanta credulidade pelos educadores? De onde emanariam tamanhas eficácia e aderência discursivas?
A resposta a estas outras questões talvez pudesse ser condensada em apenas um enunciado: na suposta cientificidade de que se imbui o psicólogo, ou mesmo o recém-fundado psicopedagogo, ao pontificar sobre os distúrbios dos quais se apropria, e sobre os quais assenta sua autoridade, na qualidade de especialista.
Ora, talvez fosse mais honesto admitir que toda essa munição discursiva, dita científica, refere-se tão-somente a uma produção conceitual originária nos extramuros escolares, e que é tomada de empréstimo pelos educadores ? ou por inépcia ou por imposição.
Salvo melhor juízo, o insucesso escolar e seus derivados ? efeitos possíveis da relação professor-aluno ? acabam sendo atribuídos quase exclusivamente a instâncias extra-institucionais: o aluno e seus “distúrbios”, sua família, sua classe social, ou, em último caso, o contexto sociocultural mais amplo.
De minha parte, em vez de “alunos-problema”, prefiro pensá-los como alunos “diferentes”. Uma torção não apenas de vocábulos, mas fundamentalmente do modo como temos compreendido e nos relacionado com esses novos habitantes do cenário escolar. Uma torção ética, portanto.
Assim, gostaria de propor uma questão central: por que, por um lado, excedemos em compaixão quanto os alunos "diferentes" e, por outro lado, fortalecemos seu silenciamento civil? Em termos mais concretos, por que temos tido tanta dificuldade de garantir espaços escolares de fato inclusivos, e para todos?
Sem a pretensão de alcançar uma resposta definitiva, estável, proponho uma hipótese nuclear: a excessiva psicologização do olhar contemporâneo sobre a infância e a adolescência talvez seja responsável (não apenas, mas grande parte das vezes) pela exclusão escolar das crianças e adolescentes "diferentes".
Para situar a possível plausibilidade de tal hipótese, permitam-me um breve recuo teórico.
A infância e a adolescência,  tal como as conhecemos hoje, não são um fato invariante do ponto de vista histórico. Mais especificamente, não se pode dizer que houvesse, na Idade Média por exemplo, um mundo propriamente infantil, muito menos adolescente. Pelo contrário, não havia uma distinção precisa entre o universo do adulto e o da criança ? esta encarada como uma espécie de apêndice civil. É claro que a criança, a seu modo, fazia as mesmas coisas do adulto, mas era pensada como se fosse um adulto em miniatura. Não havia, pois, uma especificidade do olhar do adulto quanto às particularidades infantis, suas necessidades e tempos próprios ? assim como o fazemos hoje.
Pode-se dizer, grosso modo, que apenas a partir do século XIX a infância foi inventada como um "problema" teórico, como uma etapa específica e autônoma da vida. Ou melhor, foram construídos os discursos teóricos sobre a infância, que hoje conhecemos e professamos tão bem. Uma criança não mais "natural", mas objeto do olhar normativo da ciência. Nasce aí também, e conseqüentemente, uma certa ciência da criança chamada "psicologia do desenvolvimento".
A partir dos estudos dedicados à descrição da evolução infantil, desponta uma criança jamais conhecida até então: a criança da "norma" evolutiva. Uma criança que nasce e cresce segundo padrões estratificados de desenvolvimento orgânico, cognitivo, afetivo, moral, social etc. Uma criança sempre em desenvolvimento. Uma criança para sempre crivada pelo olhar psicológico, pois.
Ora, é sempre bom lembrar que esse olhar psicologizado sobre a infância representa uma faca de dois gumes. Se, por um lado, a atenção integral à infância é efeito desse processo, por outro, a exclusão de uma parcela significativa dessas mesmas crianças pode ser entendida também como efeito desse mesmo processo. Vejamos como isso pode se dar.
Se partirmos da premissa de que o desenvolvimento humano (infantil, em particular) segue um curso lento, gradual, contínuo e ordenado, o que aconteceria quando isso não se dá a contento? O que restaria a um segmento de crianças que, por uma ou outra razão, teriam seus elos de desenvolvimento (supostamente) rompidos ou ameaçados, como é o caso, aliás, do “aluno-problema”?
Desvio, distúrbio, disfunção, anomalia, bloqueio, transtorno: termos que dizem do afastamento de tais crianças "diferentes" do que era "cientificamente" esperado delas. Quase sempre, elas são encaradas como "vítimas" de uma conjuntura hostil ou de uma natureza impiedosa, e, mais drasticamente, como criaturas cujo desenvolvimento seria irremediavelmente maculado, usurpado.
Daí o horror, o desalento e a comiseração que nos acompanham. Some-se a isso a dissolução e a impotência do discurso psico-pedagógico: "nada mais poderia ser feito!".
Talvez esse breve recuo teórico possa lançar alguma luz, mesmo que parcialmente, sobre nossas cambaleantes iniciativas de inclusão escolar.
De modo oposto a tais premissas, creio que seja mais do que necessária uma revisão paradigmática do discurso pedagógico atual, o que implica uma recusa declarada à noção de desenvolvimento como marcha e progresso, ou como resultado de coordenadas de causa-efeito (por exemplo: a recusa à simples e traiçoeira noção de “pré-requisito” para a aprendizagem matemática, ou de “fases” desta).
Prefiro a idéia de desenvolvimento psicológico como algo não linear e não previsível, mais como a multiplicidade de respostas que são ofertadas às incessantes interpelações da vida. Respostas divergentes da "norma" evolutiva, das assertivas dos manuais teóricos construídos sobre as experiências de crianças suíças, francesas ou americanas. Respostas  plásticas, criativas, muito mais inteligentes do que nosso olhar reducionista, benevolente e duvidoso do ponto democrático.
Se rastrearmos a história humana, encontraremos uma recorrência: boa parte dos homens que fizeram diferença, isto é, que mudaram a visão sobre os fatos, foram crianças atípicas, fora do padrão, refratárias ao modelo desenvolvimentista clássico ? tanto para baixo quanto para cima de sua arbitrária  e indefectível "média".
Portanto, o acolhimento efetivo de tais crianças em desvantagem exige um posicionamento que ultrapassa nosso olhar pretensamente "científico" sobre a infância e a adolescência atuais. Ele requer um compromisso de ordem política e ética, que se traduz, a meu ver, na premissa extensiva de "democratização" das relações escolares: essa idéia tão familiar e tão desconhecida de nós brasileiros.
Por fim, a inclusão conseqüente de tal parcela de crianças em situação de vulnerabilidade não só escolar, mas também psíquica e principalmente civil, requer uma boa dose de responsabilidade e generosidade por parte dos educadores, o que pressupõe, no meu parco entender, a recusa à piedade, ao assistencialismo, à negligência e à apatia ? nossos algozes cotidianos de sala de aula.
Inclusão de fato significa, para mim, alegria, expansão de mundo, companhia. Notar e ser notado no mundo ? o que todos ansiamos, de um modo ou de outro.
Deveríamos aprender mais com esses alunos, com sua força de resistência. Deveríamos, enfim, aprender mais sobre essas etnomatemáticas do viver que eles nos legam. É só prestar um pouco mais de atenção.
Obrigado.