Notas sobre a formação de professores e professoras numa perspectiva da etnomatemática

Maria do Carmo Santos Domite



Por que o termo “notas” no título do texto? Naturalmente não posso responder com precisão tal pergunta, mas com certeza o seu emprego neste texto pretende garantir, de início, que as idéias aqui discutidas estão em construção e não alcançaram ainda o grau de elaboração desejado para tão especial responsabilidade. De todo modo, encaminhar tal discussão pode ajudar na organização das idéias em torno do objeto de estudo formação de professores e aprofundá-lo numa perspectiva cultural.
Desde há alguns anos tem-se pensado a formação do professor como uma questão-chave para transformações mais efetivas do sistema escolar, tanto no que se refere à instrução quanto à construção de valores pela via da educação escolar. Na verdade, já há algum tempo, todos nós educadores, por diferentes processos, percebemos que não têm mais significado grande parte dos encaminhamentos da época da nossa formação, assim como não nos satisfazem as propostas de formação que partem de estudos de gabinete sobre questões didático-pedagógicas mais gerais ou mesmo mais específicas. Daí, a elaboração de propostas alternativas tem sugerido para a formação que o professor e a professora reflitam sobre a sua prática e tomem parte em certas decisões – na verdade, os professores/as têm sido convidados a ter opinião própria e exprimi-la, assim como a participar mais ativamente do projeto político-pedagógico educacional como um todo.
Sendo o tema deste congresso “a Etnomatemática”, gostaria de iniciar tal discussão descrevendo parte de uma aula do professor Mário - não somente para ilustrar este texto com a sua atitude, de modo a expô-la, talvez, a uma crítica elogiosa, mas também para apreender parte de uma realidade escolar que pode servir, no decorrer do trabalho, como exemplo significativo para esclarecer, por meio de uma comparação, o que estarei propondo. Mário é professor de matemática do ensino fundamental e médio de uma escola pública de um bairro da periferia da cidade de São Paulo, a quem eu tinha pedido para iniciar a aula de matemática, sempre que possível, pela fala do aluno/a, a partir de questões como “o que vocês sabem sobre...?” Ou “como vocês entendem/sabem sobre...?” Conversamos, um pouco, sobre como nós professores/as precisamos rever nossa atitude frente ao conhecimento que temos de como o aluno/a conhece e como lidar com este conhecimento frente ao conhecimento dito escolar. Segue o trecho da aula mencionada:

O professor Mário inicia, em uma de suas 5a. série, uma conversa com seus alunos e alunas  sobre o cálculo de divisão, perguntando:

Prof. Mário: Como vocês fazem o cálculo 125 dividido por 8?
José, que vendia chicletes num farol próximo ao centro, começa a falar:
José: Nós somos mais ou menos 10 “caras”, quase todo dia, alguns meninos e algumas meninas. Daí, dividimos assim: mais para as meninas que são mais responsáveis que os meninos, mais para os maiores do que para os menores.
Prof. Mário: Dê um exemplo José. Por exemplo, como foi a divisão ontem ou anteontem.
José: Ah! Assim... eram 4 meninas, 1 é das pequenas; 6 meninos grandes e 2 mais ou menos pequenos. Então nós éramos 12 e os chicletes eram 60. Daí, foi dado metade e metade, um pouco mais para as meninas. A menina pequena ficou com 3 e as outras com 6 ou 7, eu não me lembro bem...Os meninos...
Prof. Mário convida, então, a classe para pensar o modo de dividir do grupo de José com outras quantidades de chicletes e meninos/as...

Quais são os modos de trabalho de formação que podem ter sensibilizado/influenciado o professor Mário? Reconhecendo que todo trabalho de formação constitui-se em um lugar de forte concentração ideológica, quais os valores incorporados pelo prof. Mário que podem ter influenciado a sua prática? Ainda sobre a formação profissional do prof. Mário, no que se refere às ações pedagógicas apresentadas, o que se coloca mais em destaque: os conteúdos? As grandes finalidades/objetivos curriculares? os processos de aprendizagem dos alunos/as? Os aspectos culturais/sociais dos alunos e alunas que podem interferir positivamente ou negativamente no desempenho escolar? o potencial em levar em conta os aspectos culturais dos alunos e alunas na formação como um todo?
Numa tentativa de reconhecer quais perspectivas de formação podem ter sensibilizado, ou até mesmo conscientizado o professor Mário, discutirei algumas concepções/propostas que, nos últimos anos, têm orientado a formação de professores. Porém, quero explicitar, desde o início, que a minha tendência ao encaminhar tal discussão está em evidenciar se os educadores que têm discutido/teorizado questões sobre a formação distinguem, entre outros, dois pontos: primeiro, não é possível desenvolver alguém de modo isolado de toda sua vivência sócio-emocional-cultural e, segundo, os educandos não são iguais.

PRIMEIRO, NÃO É POSSÍVEL DESENVOLVER ALGUÉM DE MODO ISOLADO DE TODA SUA VIVÊNCIA SÓCIO-EMOCIONAL-CULTURAL E, SEGUNDO, OS EDUCANDOS NÃO SÃO IGUAIS.

Ainda, sendo este um congresso sobre Etnomatemática, parece redundante uma apresentação exaustiva dos pressupostos e questões desta área de estudos; não vou aqui, então, refletir muito sobre tal proposta – apenas, e de maneira breve, falarei do papel do educador/a em relação ao conhecimento do “outro” e o valor que ele ou ela atribuiria a este conhecimento - diferente do seu – que é, em geral, mais próximo ao escolar.
De todo modo, a etnomatemática como uma linha de estudo e pesquisa da educação matemática, investiga as raízes das idéias matemáticas, a partir da maneira como elas se dão nos diferentes grupos culturais; em outras palavras, os estudos etnomatemáticos procurando trilhar os caminhos da antropologia, buscam identificar problemas matemáticos a partir do conhecimento do “outro”, na sua própria racionalidade e termos. As diferentes interpretações de D’Ambrosio,  em diferentes momentos nos últimos 15 anos, levam a uma melhor compreensão do estudo: “...a etnomatemática estuda as raízes culturais do conhecimento matemático a partir do saber-fazer de grupos étnicos, grupos de profissionais...”, “...as diferentes formas de matemática que são próprias de grupos culturais, chamamos etnomatemática...”, “a arte de explicar e entender a matemática em vários contextos...”, “tantos povos, tantas matemáticas...”, “as várias maneiras dos povos matematizarem...”, “essa linha busca as raízes da Matemática – pesquisa a História da Matemática...”
Em geral, no âmbito da pesquisa em etnomatemática, o pesquisador/a vive um processo de estranhamento e tensão visto que as relações quantitativas/espaciais percebidas no grupo investigado – desde que não mais exclusivamente centradas nas explicações do grupo da sociedade do investigador/a - mostram-se muitas vezes, para ele/ela, desarticuladas e, em geral, um processo de re-significação e análise das mesmas pede a criação de categorias que envolvem articulações entre a matemática e várias outras áreas do conhecimento como a história, os mitos, a economia, entre outros. Em outras palavras,  pede articulações numa dimensão não disciplinar do conhecimento, mas sim transdisciplinar. Já quando a preocupação de um estudo etnomatemático é a pedagogia da matemática, a atenção tem estado em torno de legitimar os saberes dos alunos/as nascidos de experiências construídas em seus próprios meios e estudar possibilidades de como lidar com as aprendizagens – as de fora da escola e as da escola. Em outras palavras, com a discussão da etnomatemática estamos buscando ajudar o professor e a professora a estabelecer modelos culturais de crença, pensamento e comportamento, no sentido de refletir não só o potencial do trabalho pedagógico que leva em conta os “saberes” dos alunos e alunas como o de uma aprendizagem, pela escola, mais significativa e que dê  mais poder e domínio sobre a própria aprendizagem.

Perspectivas da formação de professores

Vários modelos têm sido propostos para a formação de professores, entre os quais alguns bem pouco voltados para a formação do professor/a enquanto sujeito social de suas ações e, por isso mais do tipo transmissivo/impositivo - outros, já mais centrados no professor/a como sujeito constituído, especialmente centrados nos tipos de processos de transformação e na própria dinâmica formativa.
De todo modo, nos últimos anos, as discussões em torno da formação de professores têm, por um lado, deixado para um segundo plano a preparação do professor/a diretamente voltada para o ensino dos conteúdos de área específica; por outro, têm destacado a importância do professor/a como  profissional reflexivo que deve se preocupar tanto com as necessidades emocionais e intelectuais dos aluno/as como com as funções sociais da educação - exercitando-se como construtor político do projeto pedagógico da escola.
Naturalmente, repensar o projeto político-pedagógico da escola envolve levar os professores a atender/compreender de modo mais adequado o aluno e a aluna que recebem, ou seja, gera disponibilidade de conhecer mais profundamente “quem são seus alunos e alunas”. Desse modo, posso reconhecer, de antemão, que o aluno e aluna não têm estado de todo fora das propostas de formação de professores, mas também não estão dentro.

O ALUNO E ALUNA NÃO TÊM ESTADO DE TODO FORA DAS PROPOSTAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES, MAS TAMBÉM NÃO ESTÃO DENTRO.

Uma eixo temático, dentro da linha de formação de professores, que tem orientado as discussões mais atuais é o do professor reflexivo. As idéias originais vêm de DONALD SCHÖN, desde os anos 80, o qual destaca e discute modos de operacionalização da reflexão na ação e da reflexão sobre a ação. Segundo o autor (SCHÖN, 1987), estas são duas atitudes importantes dos profissionais/pedagogos competentes e é a partir da reflexão sobre a própria prática que as transformações podem ocorrer.
O movimento da prática reflexiva surgiu na contramão da idéia de que o professor/a é um técnico/transmissor de quantidades de informações preestabelecidas e passou a orientar, em termos de mundo, as discussões dos estudiosos da reforma do ensino e da formação de professores, como em GARCIA (1997), SCHÖN (1997), ZEICHNER (1993), NÓVOA (1997), CARVALHO & GARRIDO (1999), JIMÉNEZ (1995), PERRENOUD (1993), FIORENTINI (1998), entre outros. De modo geral, as concepções que norteiam a formação reflexiva dos professores/as enfatizam que a formação docente deve ter como meta principal o auto-desenvolvimento reflexivo do professor/a (Nóvoa, 1997), ou seja, formar  professores e professoras que aprendam a encarar e compreender não só os problemas intelectuais e afetivos da pedagogia escolar como também  aqueles que envolvem o raciocínio de cada aluno/a.
 Do ponto de vista da nossa discussão sobre formação de professores/as – numa perspectiva da etnomatemática - algumas iniciativas dentro da formação reflexiva têm sido preciosas, em especial aquela por alguns nomeada dar razão ao aluno (Schön, 1992), que destaca o professor/a que investiga as razões que levam os alunos/as a dizer certas coisas. Naturalmente, tal proposta está em oposição a uma atitude mais normativa/técnica do professor/a que tem como conduta possuir uma quantidade de conhecimento para transmitir aos alunos/as. Por um lado, a visão de ensino e conhecimento, por meio do professor/a que dá razão ao aluno, indica que o conhecimento do aluno e da aluna têm estado dentro das propostas de formação – de algum modo tem sido enfatizado que o professor/a reconheça e valorize o conhecimento intuitivo/experimental/cotidiano do aluno e da aluna, como por exemplo, procura compreender como um aluno “sabe fazer trocos, mas não sabe somar os números” (SHÖN, 1992) ou como “os alunos – vendedores de bala no farol - fazem a divisão, que não é uma divisão em partes iguais, mas um repartir com base em motivos sócio-emocionais (nosso professor Mário!). Por outro lado, os estudiosos da formação reflexiva ainda têm muito que aprender com estudiosos de algumas áreas específicas como os antropólogos/sociólogos/ historiadores, entre outros, que provocam os professores/as no sentido de levá-los a compreender que o desenvolvimento do aluno/a, ainda que no contexto escolar, é um fenômeno de proporções holísticas – estará, no contexto escolar, interagindo o emocional, o afetivo, o social, o histórico, o místico, o cultural, entre outros. Na verdade, nossa reclamação está diretamente ligada ao fato de considerarmos que “a etnomatemática se situa numa área de transição entre a antropologia cultural e a matemática que chamamos academicamente institucionalizada, e seu estudo abre caminho ao que poderíamos chamar de matemática antropológica” (D’AMBROSIO, 1990).
 Naturalmente, há muitos outros estudiosos envolvidos com a caracterização de modelos/métodos/fundamentos sobre formação de professores como PONTE (1994, 1999), SHULMAN (1986), COONEY, (1994) e, cada vez mais, os representantes desta linha de pesquisa procuram levar em conta os aspectos culturais e sociais que podem interferir positiva e negativamente no desempenho escolar do aluno/a assim como os valores e as finalidades desta atitude. Naturalmente, a última observação revela amadurecimento em termos de pesquisa e pesquisadores e a possibilidade de uma construção conjunta, compreensiva e articulada nesta direção
 Ainda para evidenciar a preocupação de alguns educadores - voltados para a formação do professor - com o conhecimento do aluno/a, dos seus interesses e processos de aprendizagem, vale destacar D’AMBROSIO que ao enfatizar algumas características a ser incorporadas pelos professores/as de matemática diante das atuais reformas curriculares, salienta a de ajudar “nossos alunos a estabelecerem um relacionamento positivo com a matemática” (D’AMBROSIO, 1996) e, para tanto, valoriza voltar-se para o conhecimento primeiro do aluno/a. D’AMBROSIO assim chama atenção:
 
“O ingrediente principal da tomada de decisão do professor quanto à direção das aulas e do aprendizado do aluno é o descobrimento, pelo professor, do conhecimento do aluno. O aluno chega ao processo educacional com uma riqueza de experiências. O ensino de matemática (e, aliás, da maioria das disciplinas escolares) não mais se fundamenta na  estrutura da disciplina, mas ao invés, se fundamenta no conhecimento do aluno. Para tanto o professor necessita organizar o trabalho na sala de aula de maneira a licitar o conhecimento do aluno para que este conhecimento possa ser analisado. Também é importante criar atividades que levem o aluno a buscar em suas experiências conhecimento já formado”.

 Do que foi até aqui considerado, parece estar sendo colocada - no espaço das discussões sobre formação de professores e aprendizagem-ensino da matemática - a necessidade de levar em conta, o conhecimento primeiro do aluno/a ligado ao modelo cultural ao qual ele/ela pertence - uma perspectiva que se opõe `a tendência, da escola dita tradicional, em tratar os alunos e alunas como se fossem todos iguais. Na verdade, é por trás desta neutralidade valorativa do aluno e da aluna, assim como do uso de um mesmo caminho/método e mesmos conteúdos a todos – também uma velha postura da educação dita tradicional – que se produz a presença de padrões de universalidade, isto é, o professor como representante de um grupo que detém o conhecimento é  aquele que pode oferecer ao aluno/a  uma opção para fazer a passagem do senso comum  à compreensão da ciência (D’ AMBROSIO, 1990).
De fato, a crítica no sentido de que a escola trata todos os alunos/assim por igual já está aí há muito tempo e é, em geral, uma reflexão de ordem sócio-político-econômica, vinculada às problemáticas de educação e poder, educação e ideologia e educação e cultura. Entre outros, NIDELCOFF (1978) chamou claramente a atenção, neste sentido, para o significado político-social e as conseqüências desta atitude:

“A escola vai tratar a todos por igual. Entretanto eles NÃO SÃO IGUAIS. Em função disso, para uns tantos será suficiente aquilo que a escola lhes dá; para outros não. Uns triunfarão, outros irão fracassar. Esse triunfo confirmará aqueles a quem a sociedade forneceu meios para triunfar. E o fracasso geralmente confirmará o desprezo àqueles que a sociedade condicionou como inferiores”.

A elaboração mais sistemática desta discussão foi denominada por vários acadêmicos de teoria da reprodução social, no sentido da escola ser um mecanismo de reprodução da ideologia dominante e dos vícios das classes dominantes. BOURDIER e PASSERON (1977) são representantes bastante ativos desta linha de pensamento na Europa, com reflexões inspiradas em DURKHEIM, ALTHUSSER e GRAMSCI, cujos estudos sistematizam novas aproximações teóricas do marxismo. Um movimento semelhante também se deu nos Estados Unidos, dentro de uma linha denominada Economia Política da Educação, com CARNOY (1985), APPLE (1982), GIROUX (1986), TORRES (1992), entre outros. Na verdade, APPLE e GIROUX desenvolveram/complementaram as discussões do pensamento reprodutivista dentro de uma perspectiva cultural. APPLE ressalta, por exemplo, que os alunos/as chegam à escola diferenciados em classes sociais e saem da escola também diferenciados em classes sociais, pois toda proposta curricular é uma construção livre de valores, neutra, impecavelmente elaborada e discutida com e entre professores/educadores também em desenvolvimento curricular que, em geral, não se propõem a um debate social sobre tal elaboração. De todo modo, são raras as investigações sobre formação de professores que levam em conta a teoria da reprodução social. Parece que tudo se passa como se grande parte dos formadores estivessem atentos e de acordo com esta visão, mas a sua configuração não pudesse ter incidência direta nas orientações cognitivas e na identificação destas orientações. Nesta perspectiva, ficam aqui duas perguntas cujo encaminhamento de respostas podem, talvez, aprofundar questões sobre a formação de professores, numa perspectiva da etnomatemática. São elas: o poder social tem o poder de transformar as relações afetivo-intelectuais com a autoridade política de um grupo? A formação de professores enquanto prática de recuperação da cultura pode transformar/reduzir a função segregadora da educação?
Numa tentativa de responder as questões assim como de localizar na história brasileira, um projeto de formação que tem como foco central o educando - em especial, a atitude de ter como ponto de partida do trabalho escolar como ele ou ela conhece - tomarei como base a alfabetização de PAULO FREIRE que “sendo um ato político, como toda a educação, é uma ato de conhecimento” (FREIRE, 1980: 139). A afirmação de FREIRE é resultado da sua convicção de que “em toda relação entre educador e educando está sempre em jogo algo que se procura conhecer” (FREIRE, 1980: 139).
Como se sabe, FREIRE desenvolveu e percorreu tal método como uma opção para revelar a extrema ligação/coerência entre ação política e prática educativa. Não espero aqui falar do método em si – já que muito conhecida a sua extrema importância – mas apenas e de modo breve, me referir a alguns de seus aspectos, como a preocupação em levar o professor/a a tomar como referência para a aprendizagem a realidade mesmo do povo e a preocupação em ver tal realidade referida nas “palavras geradoras” e representada na “codificação” que se analisa e se discute com este povo. (FREIRE, 1980: 140).
Na verdade, a proposta de FREIRE em fazer o professor/a voltar-se para seus alunos e alunas é fundamentalmente diferente de todas as posições pedagógicas e epistemológicas precedentes. Tal afirmação se justifica pelo menos por duas atitudes/posições do autor: primeiro, segundo FREIRE, o papel do professor/a no grupo não é de quem procura interagir com o aluno/a discutindo relações sobre conteúdos específicos e muito menos não é o de quem transmite conhecimento, mas o de quem, por meio do diálogo, procura conhecer com os alunos/as – ao ensinar algo aos alfabetizados o professor aprende deles algo também. (FREIRE, 1980 p.140). De fato, FREIRE situa a ação educativa na cultura do aluno e da aluna. Para ele, a consideração e o respeito aos conhecimentos prévios do educando e a cultura que cada um traz dentro de si, são finalidades de um professor/a que vê a educação sob a ótica libertadora, ou seja, reconhece-a como meio para gerar uma mudança estrutural numa sociedade opressiva – embora, ele afirme que esta não alcança tal objetivo imediatamente e, muito menos sozinha.
A proposta freiriana, portanto, para formação do professor, do ponto de vista dos conteúdos a ser trabalhados é levar o professor/a a destacar os conteúdos programáticos a partir da investigação de uma temática significativa para o aluno/a e dialogar com o aluno/a sobre a sua visão de mundo sobre tais temáticas - que se manifestam nas várias formas de ação – e a do professor/a. FREIRE assim acredita:

“é preciso que o educador e o político sejam capazes de conhecer as condições estruturais em que o pensar e a linguagem do povo, dialeticamente, se constituem... o conteúdo programático para a ação, que é de ambos, não pode ser de exclusiva eleição daqueles, mas deles e do povo... É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos, educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação... O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática de liberdade. Ë o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto dos seus temas geradores”

Vale aqui destacar que FREIRE olha a formação de professores pelo lado de que alguns desconfiam, o do espaço para o oprimido fazer suas denúncias. Porém, do meu ponto de vista, o que ele discutiu entre as décadas de 1960 e 1990 foi de absoluta importância para a formação de professores e professoras numa perspectiva da etnomatemática. Qual é esta perspectiva? A resposta a esta questão é um enorme desafio – como bem mostra toda a trama deste texto – que cabe ao professor e a professora responder na sua prática. Naturalmente receita não existe. Mas, com certeza, um bom exemplo está na atuação do nosso professor Mário que parece lidar com o pressuposto de que o saber de alguém, sobre alguma coisa, nunca é neutro e não se dá como se fosse um evento estanque, que acontece em um determinado momento. Ao contrário, todo educando, adulto ou criança, tem uma concepção de um aspecto do conhecimento que resulta da história de aprendizagem dele/dela e, é esse conhecimento, no estado em que se encontra, que vai fazer a filtragem entre ele/ela e o novo conhecimento. Isto também pode ser melhor compreendido no contexto da aula de Mário: se o aluno ou a aluna tem uma concepção de divisão em partes proporcionais ao sexo e idade dos seus companheiros, quando ele ou ela ouve falar em divisão pode não considerá-la em partes iguais, como é próprio da matemática formal...
Finalizando, vale destacar que, por um lado, a possibilidade de tais atitudes por parte do professor/a – que procuram negociar com o universo de conhecimento do educando e, por isso menos autoritária e mais dialógica - estão intimamente ligados ao modo de ser do professor e da professora como pessoa, no cotidiano, assim como ao conhecimento que o professor/a tem de si e do contexto escola na qual está inserida. Por outro lado, no que se refere a uma pedagogia pela via da etnomatemática, propriamente dita, é natural pensarmos a formação de professores/as voltada não apenas para uma nova visão da Matemática e das formas que favorecem a sua apropriação pelos alunos/as, mas também para a atualização científica e pedagógica geral da matemática que aí está, de modo a contestá-la ou incorporá-la na medida da situação-problema em questão.

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