Maria do Carmo Santos Domite
Por que o termo “notas” no título do texto? Naturalmente não
posso responder com precisão tal pergunta, mas com certeza o seu
emprego neste texto pretende garantir, de início, que as idéias
aqui discutidas estão em construção e não alcançaram
ainda o grau de elaboração desejado para tão especial
responsabilidade. De todo modo, encaminhar tal discussão pode ajudar
na organização das idéias em torno do objeto de estudo
formação de professores e aprofundá-lo numa perspectiva
cultural.
Desde há alguns anos tem-se pensado a formação
do professor como uma questão-chave para transformações
mais efetivas do sistema escolar, tanto no que se refere à instrução
quanto à construção de valores pela via da educação
escolar. Na verdade, já há algum tempo, todos nós
educadores, por diferentes processos, percebemos que não têm
mais significado grande parte dos encaminhamentos da época da nossa
formação, assim como não nos satisfazem as propostas
de formação que partem de estudos de gabinete sobre questões
didático-pedagógicas mais gerais ou mesmo mais específicas.
Daí, a elaboração de propostas alternativas tem sugerido
para a formação que o professor e a professora reflitam sobre
a sua prática e tomem parte em certas decisões – na verdade,
os professores/as têm sido convidados a ter opinião própria
e exprimi-la, assim como a participar mais ativamente do projeto político-pedagógico
educacional como um todo.
Sendo o tema deste congresso “a Etnomatemática”, gostaria de
iniciar tal discussão descrevendo parte de uma aula do professor
Mário - não somente para ilustrar este texto com a sua atitude,
de modo a expô-la, talvez, a uma crítica elogiosa, mas também
para apreender parte de uma realidade escolar que pode servir, no decorrer
do trabalho, como exemplo significativo para esclarecer, por meio de uma
comparação, o que estarei propondo. Mário é
professor de matemática do ensino fundamental e médio de
uma escola pública de um bairro da periferia da cidade de São
Paulo, a quem eu tinha pedido para iniciar a aula de matemática,
sempre que possível, pela fala do aluno/a, a partir de questões
como “o que vocês sabem sobre...?” Ou “como vocês entendem/sabem
sobre...?” Conversamos, um pouco, sobre como nós professores/as
precisamos rever nossa atitude frente ao conhecimento que temos de como
o aluno/a conhece e como lidar com este conhecimento frente ao conhecimento
dito escolar. Segue o trecho da aula mencionada:
O professor Mário inicia, em uma de suas 5a. série, uma conversa com seus alunos e alunas sobre o cálculo de divisão, perguntando:
Prof. Mário: Como vocês fazem o cálculo 125 dividido
por 8?
José, que vendia chicletes num farol próximo ao centro,
começa a falar:
José: Nós somos mais ou menos 10 “caras”, quase todo
dia, alguns meninos e algumas meninas. Daí, dividimos assim: mais
para as meninas que são mais responsáveis que os meninos,
mais para os maiores do que para os menores.
Prof. Mário: Dê um exemplo José. Por exemplo, como
foi a divisão ontem ou anteontem.
José: Ah! Assim... eram 4 meninas, 1 é das pequenas;
6 meninos grandes e 2 mais ou menos pequenos. Então nós éramos
12 e os chicletes eram 60. Daí, foi dado metade e metade, um pouco
mais para as meninas. A menina pequena ficou com 3 e as outras com 6 ou
7, eu não me lembro bem...Os meninos...
Prof. Mário convida, então, a classe para pensar o modo
de dividir do grupo de José com outras quantidades de chicletes
e meninos/as...
Quais são os modos de trabalho de formação que
podem ter sensibilizado/influenciado o professor Mário? Reconhecendo
que todo trabalho de formação constitui-se em um lugar de
forte concentração ideológica, quais os valores incorporados
pelo prof. Mário que podem ter influenciado a sua prática?
Ainda sobre a formação profissional do prof. Mário,
no que se refere às ações pedagógicas apresentadas,
o que se coloca mais em destaque: os conteúdos? As grandes finalidades/objetivos
curriculares? os processos de aprendizagem dos alunos/as? Os aspectos culturais/sociais
dos alunos e alunas que podem interferir positivamente ou negativamente
no desempenho escolar? o potencial em levar em conta os aspectos culturais
dos alunos e alunas na formação como um todo?
Numa tentativa de reconhecer quais perspectivas de formação
podem ter sensibilizado, ou até mesmo conscientizado o professor
Mário, discutirei algumas concepções/propostas que,
nos últimos anos, têm orientado a formação de
professores. Porém, quero explicitar, desde o início, que
a minha tendência ao encaminhar tal discussão está
em evidenciar se os educadores que têm discutido/teorizado questões
sobre a formação distinguem, entre outros, dois pontos: primeiro,
não é possível desenvolver alguém de modo isolado
de toda sua vivência sócio-emocional-cultural e, segundo,
os educandos não são iguais.
PRIMEIRO, NÃO É POSSÍVEL DESENVOLVER ALGUÉM DE MODO ISOLADO DE TODA SUA VIVÊNCIA SÓCIO-EMOCIONAL-CULTURAL E, SEGUNDO, OS EDUCANDOS NÃO SÃO IGUAIS.
Ainda, sendo este um congresso sobre Etnomatemática, parece redundante
uma apresentação exaustiva dos pressupostos e questões
desta área de estudos; não vou aqui, então, refletir
muito sobre tal proposta – apenas, e de maneira breve, falarei do papel
do educador/a em relação ao conhecimento do “outro” e o valor
que ele ou ela atribuiria a este conhecimento - diferente do seu – que
é, em geral, mais próximo ao escolar.
De todo modo, a etnomatemática como uma linha de estudo e pesquisa
da educação matemática, investiga as raízes
das idéias matemáticas, a partir da maneira como elas se
dão nos diferentes grupos culturais; em outras palavras, os estudos
etnomatemáticos procurando trilhar os caminhos da antropologia,
buscam identificar problemas matemáticos a partir do conhecimento
do “outro”, na sua própria racionalidade e termos. As diferentes
interpretações de D’Ambrosio, em diferentes momentos
nos últimos 15 anos, levam a uma melhor compreensão do estudo:
“...a etnomatemática estuda as raízes culturais do conhecimento
matemático a partir do saber-fazer de grupos étnicos, grupos
de profissionais...”, “...as diferentes formas de matemática que
são próprias de grupos culturais, chamamos etnomatemática...”,
“a arte de explicar e entender a matemática em vários contextos...”,
“tantos povos, tantas matemáticas...”, “as várias maneiras
dos povos matematizarem...”, “essa linha busca as raízes da Matemática
– pesquisa a História da Matemática...”
Em geral, no âmbito da pesquisa em etnomatemática, o pesquisador/a
vive um processo de estranhamento e tensão visto que as relações
quantitativas/espaciais percebidas no grupo investigado – desde que não
mais exclusivamente centradas nas explicações do grupo da
sociedade do investigador/a - mostram-se muitas vezes, para ele/ela, desarticuladas
e, em geral, um processo de re-significação e análise
das mesmas pede a criação de categorias que envolvem articulações
entre a matemática e várias outras áreas do conhecimento
como a história, os mitos, a economia, entre outros. Em outras palavras,
pede articulações numa dimensão não disciplinar
do conhecimento, mas sim transdisciplinar. Já quando a preocupação
de um estudo etnomatemático é a pedagogia da matemática,
a atenção tem estado em torno de legitimar os saberes dos
alunos/as nascidos de experiências construídas em seus próprios
meios e estudar possibilidades de como lidar com as aprendizagens – as
de fora da escola e as da escola. Em outras palavras, com a discussão
da etnomatemática estamos buscando ajudar o professor e a professora
a estabelecer modelos culturais de crença, pensamento e comportamento,
no sentido de refletir não só o potencial do trabalho pedagógico
que leva em conta os “saberes” dos alunos e alunas como o de uma aprendizagem,
pela escola, mais significativa e que dê mais poder e domínio
sobre a própria aprendizagem.
Perspectivas da formação de professores
Vários modelos têm sido propostos para a formação
de professores, entre os quais alguns bem pouco voltados para a formação
do professor/a enquanto sujeito social de suas ações e, por
isso mais do tipo transmissivo/impositivo - outros, já mais centrados
no professor/a como sujeito constituído, especialmente centrados
nos tipos de processos de transformação e na própria
dinâmica formativa.
De todo modo, nos últimos anos, as discussões em torno
da formação de professores têm, por um lado, deixado
para um segundo plano a preparação do professor/a diretamente
voltada para o ensino dos conteúdos de área específica;
por outro, têm destacado a importância do professor/a como
profissional reflexivo que deve se preocupar tanto com as necessidades
emocionais e intelectuais dos aluno/as como com as funções
sociais da educação - exercitando-se como construtor político
do projeto pedagógico da escola.
Naturalmente, repensar o projeto político-pedagógico
da escola envolve levar os professores a atender/compreender de modo mais
adequado o aluno e a aluna que recebem, ou seja, gera disponibilidade de
conhecer mais profundamente “quem são seus alunos e alunas”. Desse
modo, posso reconhecer, de antemão, que o aluno e aluna não
têm estado de todo fora das propostas de formação de
professores, mas também não estão dentro.
O ALUNO E ALUNA NÃO TÊM ESTADO DE TODO FORA DAS PROPOSTAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES, MAS TAMBÉM NÃO ESTÃO DENTRO.
Uma eixo temático, dentro da linha de formação
de professores, que tem orientado as discussões mais atuais é
o do professor reflexivo. As idéias originais vêm de DONALD
SCHÖN, desde os anos 80, o qual destaca e discute modos de operacionalização
da reflexão na ação e da reflexão sobre a ação.
Segundo o autor (SCHÖN, 1987), estas são duas atitudes importantes
dos profissionais/pedagogos competentes e é a partir da reflexão
sobre a própria prática que as transformações
podem ocorrer.
O movimento da prática reflexiva surgiu na contramão
da idéia de que o professor/a é um técnico/transmissor
de quantidades de informações preestabelecidas e passou a
orientar, em termos de mundo, as discussões dos estudiosos da reforma
do ensino e da formação de professores, como em GARCIA (1997),
SCHÖN (1997), ZEICHNER (1993), NÓVOA (1997), CARVALHO &
GARRIDO (1999), JIMÉNEZ (1995), PERRENOUD (1993), FIORENTINI (1998),
entre outros. De modo geral, as concepções que norteiam a
formação reflexiva dos professores/as enfatizam que a formação
docente deve ter como meta principal o auto-desenvolvimento reflexivo do
professor/a (Nóvoa, 1997), ou seja, formar professores e professoras
que aprendam a encarar e compreender não só os problemas
intelectuais e afetivos da pedagogia escolar como também aqueles
que envolvem o raciocínio de cada aluno/a.
Do ponto de vista da nossa discussão sobre formação
de professores/as – numa perspectiva da etnomatemática - algumas
iniciativas dentro da formação reflexiva têm sido preciosas,
em especial aquela por alguns nomeada dar razão ao aluno (Schön,
1992), que destaca o professor/a que investiga as razões que levam
os alunos/as a dizer certas coisas. Naturalmente, tal proposta está
em oposição a uma atitude mais normativa/técnica do
professor/a que tem como conduta possuir uma quantidade de conhecimento
para transmitir aos alunos/as. Por um lado, a visão de ensino e
conhecimento, por meio do professor/a que dá razão ao aluno,
indica que o conhecimento do aluno e da aluna têm estado dentro das
propostas de formação – de algum modo tem sido enfatizado
que o professor/a reconheça e valorize o conhecimento intuitivo/experimental/cotidiano
do aluno e da aluna, como por exemplo, procura compreender como um aluno
“sabe fazer trocos, mas não sabe somar os números” (SHÖN,
1992) ou como “os alunos – vendedores de bala no farol - fazem a divisão,
que não é uma divisão em partes iguais, mas um repartir
com base em motivos sócio-emocionais (nosso professor Mário!).
Por outro lado, os estudiosos da formação reflexiva ainda
têm muito que aprender com estudiosos de algumas áreas específicas
como os antropólogos/sociólogos/ historiadores, entre outros,
que provocam os professores/as no sentido de levá-los a compreender
que o desenvolvimento do aluno/a, ainda que no contexto escolar, é
um fenômeno de proporções holísticas – estará,
no contexto escolar, interagindo o emocional, o afetivo, o social, o histórico,
o místico, o cultural, entre outros. Na verdade, nossa reclamação
está diretamente ligada ao fato de considerarmos que “a etnomatemática
se situa numa área de transição entre a antropologia
cultural e a matemática que chamamos academicamente institucionalizada,
e seu estudo abre caminho ao que poderíamos chamar de matemática
antropológica” (D’AMBROSIO, 1990).
Naturalmente, há muitos outros estudiosos envolvidos com
a caracterização de modelos/métodos/fundamentos sobre
formação de professores como PONTE (1994, 1999), SHULMAN
(1986), COONEY, (1994) e, cada vez mais, os representantes desta linha
de pesquisa procuram levar em conta os aspectos culturais e sociais que
podem interferir positiva e negativamente no desempenho escolar do aluno/a
assim como os valores e as finalidades desta atitude. Naturalmente, a última
observação revela amadurecimento em termos de pesquisa e
pesquisadores e a possibilidade de uma construção conjunta,
compreensiva e articulada nesta direção
Ainda para evidenciar a preocupação de alguns educadores
- voltados para a formação do professor - com o conhecimento
do aluno/a, dos seus interesses e processos de aprendizagem, vale destacar
D’AMBROSIO que ao enfatizar algumas características a ser incorporadas
pelos professores/as de matemática diante das atuais reformas curriculares,
salienta a de ajudar “nossos alunos a estabelecerem um relacionamento positivo
com a matemática” (D’AMBROSIO, 1996) e, para tanto, valoriza voltar-se
para o conhecimento primeiro do aluno/a. D’AMBROSIO assim chama atenção:
“O ingrediente principal da tomada de decisão do professor quanto
à direção das aulas e do aprendizado do aluno é
o descobrimento, pelo professor, do conhecimento do aluno. O aluno chega
ao processo educacional com uma riqueza de experiências. O ensino
de matemática (e, aliás, da maioria das disciplinas escolares)
não mais se fundamenta na estrutura da disciplina, mas ao
invés, se fundamenta no conhecimento do aluno. Para tanto o professor
necessita organizar o trabalho na sala de aula de maneira a licitar o conhecimento
do aluno para que este conhecimento possa ser analisado. Também
é importante criar atividades que levem o aluno a buscar em suas
experiências conhecimento já formado”.
Do que foi até aqui considerado, parece estar sendo colocada
- no espaço das discussões sobre formação de
professores e aprendizagem-ensino da matemática - a necessidade
de levar em conta, o conhecimento primeiro do aluno/a ligado ao modelo
cultural ao qual ele/ela pertence - uma perspectiva que se opõe
`a tendência, da escola dita tradicional, em tratar os alunos e alunas
como se fossem todos iguais. Na verdade, é por trás desta
neutralidade valorativa do aluno e da aluna, assim como do uso de um mesmo
caminho/método e mesmos conteúdos a todos – também
uma velha postura da educação dita tradicional – que se produz
a presença de padrões de universalidade, isto é, o
professor como representante de um grupo que detém o conhecimento
é aquele que pode oferecer ao aluno/a uma opção
para fazer a passagem do senso comum à compreensão
da ciência (D’ AMBROSIO, 1990).
De fato, a crítica no sentido de que a escola trata todos os
alunos/assim por igual já está aí há muito
tempo e é, em geral, uma reflexão de ordem sócio-político-econômica,
vinculada às problemáticas de educação e poder,
educação e ideologia e educação e cultura.
Entre outros, NIDELCOFF (1978) chamou claramente a atenção,
neste sentido, para o significado político-social e as conseqüências
desta atitude:
“A escola vai tratar a todos por igual. Entretanto eles NÃO SÃO IGUAIS. Em função disso, para uns tantos será suficiente aquilo que a escola lhes dá; para outros não. Uns triunfarão, outros irão fracassar. Esse triunfo confirmará aqueles a quem a sociedade forneceu meios para triunfar. E o fracasso geralmente confirmará o desprezo àqueles que a sociedade condicionou como inferiores”.
A elaboração mais sistemática desta discussão
foi denominada por vários acadêmicos de teoria da reprodução
social, no sentido da escola ser um mecanismo de reprodução
da ideologia dominante e dos vícios das classes dominantes. BOURDIER
e PASSERON (1977) são representantes bastante ativos desta linha
de pensamento na Europa, com reflexões inspiradas em DURKHEIM, ALTHUSSER
e GRAMSCI, cujos estudos sistematizam novas aproximações
teóricas do marxismo. Um movimento semelhante também se deu
nos Estados Unidos, dentro de uma linha denominada Economia Política
da Educação, com CARNOY (1985), APPLE (1982), GIROUX (1986),
TORRES (1992), entre outros. Na verdade, APPLE e GIROUX desenvolveram/complementaram
as discussões do pensamento reprodutivista dentro de uma perspectiva
cultural. APPLE ressalta, por exemplo, que os alunos/as chegam à
escola diferenciados em classes sociais e saem da escola também
diferenciados em classes sociais, pois toda proposta curricular é
uma construção livre de valores, neutra, impecavelmente elaborada
e discutida com e entre professores/educadores também em desenvolvimento
curricular que, em geral, não se propõem a um debate social
sobre tal elaboração. De todo modo, são raras as investigações
sobre formação de professores que levam em conta a teoria
da reprodução social. Parece que tudo se passa como se grande
parte dos formadores estivessem atentos e de acordo com esta visão,
mas a sua configuração não pudesse ter incidência
direta nas orientações cognitivas e na identificação
destas orientações. Nesta perspectiva, ficam aqui duas perguntas
cujo encaminhamento de respostas podem, talvez, aprofundar questões
sobre a formação de professores, numa perspectiva da etnomatemática.
São elas: o poder social tem o poder de transformar as relações
afetivo-intelectuais com a autoridade política de um grupo? A formação
de professores enquanto prática de recuperação da
cultura pode transformar/reduzir a função segregadora da
educação?
Numa tentativa de responder as questões assim como de localizar
na história brasileira, um projeto de formação que
tem como foco central o educando - em especial, a atitude de ter como ponto
de partida do trabalho escolar como ele ou ela conhece - tomarei como base
a alfabetização de PAULO FREIRE que “sendo um ato político,
como toda a educação, é uma ato de conhecimento” (FREIRE,
1980: 139). A afirmação de FREIRE é resultado da sua
convicção de que “em toda relação entre educador
e educando está sempre em jogo algo que se procura conhecer” (FREIRE,
1980: 139).
Como se sabe, FREIRE desenvolveu e percorreu tal método como
uma opção para revelar a extrema ligação/coerência
entre ação política e prática educativa. Não
espero aqui falar do método em si – já que muito conhecida
a sua extrema importância – mas apenas e de modo breve, me referir
a alguns de seus aspectos, como a preocupação em levar o
professor/a a tomar como referência para a aprendizagem a realidade
mesmo do povo e a preocupação em ver tal realidade referida
nas “palavras geradoras” e representada na “codificação”
que se analisa e se discute com este povo. (FREIRE, 1980: 140).
Na verdade, a proposta de FREIRE em fazer o professor/a voltar-se para
seus alunos e alunas é fundamentalmente diferente de todas as posições
pedagógicas e epistemológicas precedentes. Tal afirmação
se justifica pelo menos por duas atitudes/posições do autor:
primeiro, segundo FREIRE, o papel do professor/a no grupo não é
de quem procura interagir com o aluno/a discutindo relações
sobre conteúdos específicos e muito menos não é
o de quem transmite conhecimento, mas o de quem, por meio do diálogo,
procura conhecer com os alunos/as – ao ensinar algo aos alfabetizados o
professor aprende deles algo também. (FREIRE, 1980 p.140). De fato,
FREIRE situa a ação educativa na cultura do aluno e da aluna.
Para ele, a consideração e o respeito aos conhecimentos prévios
do educando e a cultura que cada um traz dentro de si, são finalidades
de um professor/a que vê a educação sob a ótica
libertadora, ou seja, reconhece-a como meio para gerar uma mudança
estrutural numa sociedade opressiva – embora, ele afirme que esta não
alcança tal objetivo imediatamente e, muito menos sozinha.
A proposta freiriana, portanto, para formação do professor,
do ponto de vista dos conteúdos a ser trabalhados é levar
o professor/a a destacar os conteúdos programáticos a partir
da investigação de uma temática significativa para
o aluno/a e dialogar com o aluno/a sobre a sua visão de mundo sobre
tais temáticas - que se manifestam nas várias formas de ação
– e a do professor/a. FREIRE assim acredita:
“é preciso que o educador e o político sejam capazes de conhecer as condições estruturais em que o pensar e a linguagem do povo, dialeticamente, se constituem... o conteúdo programático para a ação, que é de ambos, não pode ser de exclusiva eleição daqueles, mas deles e do povo... É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos, educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação... O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática de liberdade. Ë o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto dos seus temas geradores”
Vale aqui destacar que FREIRE olha a formação de professores
pelo lado de que alguns desconfiam, o do espaço para o oprimido
fazer suas denúncias. Porém, do meu ponto de vista, o que
ele discutiu entre as décadas de 1960 e 1990 foi de absoluta importância
para a formação de professores e professoras numa perspectiva
da etnomatemática. Qual é esta perspectiva? A resposta a
esta questão é um enorme desafio – como bem mostra toda a
trama deste texto – que cabe ao professor e a professora responder na sua
prática. Naturalmente receita não existe. Mas, com certeza,
um bom exemplo está na atuação do nosso professor
Mário que parece lidar com o pressuposto de que o saber de alguém,
sobre alguma coisa, nunca é neutro e não se dá como
se fosse um evento estanque, que acontece em um determinado momento. Ao
contrário, todo educando, adulto ou criança, tem uma concepção
de um aspecto do conhecimento que resulta da história de aprendizagem
dele/dela e, é esse conhecimento, no estado em que se encontra,
que vai fazer a filtragem entre ele/ela e o novo conhecimento. Isto também
pode ser melhor compreendido no contexto da aula de Mário: se o
aluno ou a aluna tem uma concepção de divisão em partes
proporcionais ao sexo e idade dos seus companheiros, quando ele ou ela
ouve falar em divisão pode não considerá-la em partes
iguais, como é próprio da matemática formal...
Finalizando, vale destacar que, por um lado, a possibilidade de tais
atitudes por parte do professor/a – que procuram negociar com o universo
de conhecimento do educando e, por isso menos autoritária e mais
dialógica - estão intimamente ligados ao modo de ser do professor
e da professora como pessoa, no cotidiano, assim como ao conhecimento que
o professor/a tem de si e do contexto escola na qual está inserida.
Por outro lado, no que se refere a uma pedagogia pela via da etnomatemática,
propriamente dita, é natural pensarmos a formação
de professores/as voltada não apenas para uma nova visão
da Matemática e das formas que favorecem a sua apropriação
pelos alunos/as, mas também para a atualização científica
e pedagógica geral da matemática que aí está,
de modo a contestá-la ou incorporá-la na medida da situação-problema
em questão.
Bibliografia
Apple, M. W. e outros. (1982). Cultural and economic reproduction in
education. Essays on class, ideology and the State. Londres e Boston; Henley,
Routledge & Kegan Paul.
Aronowitz, S. & Giroux, H. (1986). Education under Siege. The conservative,
liberal and radical debate over schooling. Amberst, MA: Bergin & Garvey
Bourdier, P. & Passeron, I.C. (1977). Reproduction in Education,
society and culture. Bervely Hills, CA: Sage.
D’Ambrosio, B. (1996). Mudanças no papel do professor de matemática
diante de reformas de ensino. In: Actas ProfMat 96. Lisboa: APM.
D’Ambrosio, U. (1990). Etnomatemática. São Paulo: Editora
Ática.
____________ (1993). Etnomatemática: um programa. In:
A Educação Matemática em revista. Blumenau: Editora
FURB. Nº 1, p.5-11.
Carvalho, A.M. P. & Garrido, E. (1999). Reflexão sobre a
prática e qualificação da formação docente.
In: Cadernos de Pesquisa, Nº 107. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas.
Cooney, T. (1994). Conceptualizing teacher education as a field of
inquiry: theoretical and practical implications. In: Proccedings of PME
XVIII. Lisboa. Vol. II pp.225-232.
Fiorentini, D. e outros. (1998). Saberes docentes: um desafio para
acadêmicos e práticos. In: Cartografias do Trabalho Docente
professor(a)/pesquisador(a). (Orgs Fiorentini e outros). Campinas:
Editoras Mercado das Letras e Associação de Leitura do Brasil
1998
Freire, P. (1980). Quatro cartas aos animadores de Círculos
de Cultura de São Tomé e Príncipe. In: A questão
política da educação popular (Org..: Brandão,
C. R.). São Paulo: Editora Brasiliense.
_______ (1987). A Pedagogia do Oprimido. 17ª
ed. São Paulo: Editora Paz e Terra.
Mendonça, M. C. D. (1998). Da Etnomatemática: construindo
de fora para dentro da escola. Anais do VI ENEM, p.101-102. São
Leopoldo: Universidade Unisinos.
Nidelcoff, M. T. (1978) Uma escola para o povo São Paulo: Editora
Brasiliense.
Ponte, J.P. (1994). Mathematics teachers’ professional knowledge. In:
Proccedings of PME XVIII. Lisboa. Vol. I, pp.195-209.
Ponte, J. P. (1999). Didáticas específicas e construção
do conhecimento profissional. In: J. Tavares, A. Pereira, A. P. Pedro,
& H. A. Sá (Eds), Investigar e formar em educação:
Actas do Congresso da SPCE (pp. 59-72). Porto: SPCE.
Schön, D.(1987). Educating a Reflexive Practitioner. Toward a
New Design for Teaching and Learning in the Professions. São Francisco:
Jossey Bass.
Shulman, L.S.(1986). Those who understand: Knowledge growth in teaching.
Educational Researcher, 15 (2), 4-14.