A investigação etnomatemática como estímulo para a pesquisa matemática 
Prof. Dr. Paulus Gerdes



Uma característica da história da matemática é a interacção dialéctica entre factores extra-matemáticos e factores intra-matemáticos estimulando (ou travando) o desenvolvimento de ideias matemáticas.  Quando digo factores intra-matemáticos, refiro-me, por exemplo, à reflexão dum matemático ou duma matemática sobre um determinado problema matemático já conhecido na literatura.  Quando falo em factores extra-matemáticos, refiro-me, por exemplo, à descoberta do conceito de hexágono regular e de algumas das suas propriedades na reflexão sobre a invenção do padrão de entrelaçamento aberto hexagonal (vide a Figura 1) no contexto da procura de soluções para a produção de armadilhas de pesca (cf. Gerdes, 1992).
No presente artigo gostaria de dar alguns exemplos da minha experiência de investigação etnomatemática como factor extra-matemático a estimular-me a avançar com a pesquisa matemática.  Deste modo, pretendo ilustrar um novo aspecto da fertilidade da investigação etnomatemática, para além da sua relevância antropológica, histórica, filosófica e educacional (cf., por exemplo, Gerdes, 1992b, 1993, 1994, 1994a, 1994b, 1996a, 1996b, 1996c, 1997c, 1998a, 2000a, 2000c, 2000d).

Primeiro exemplo: Uma série infinita de demonstrações do teorema de Pitágoras

Uma das minhas primeiras experiências de sentir o estímulo criador-matemático duma investigação etnomatemática foi a invenção duma série infinita de demonstrações para o chamado teorema de Pitágoras.  Estava a analisar vários contextos culturais e históricos, desde Moçambique ao Brasil, passando pelo Egipto Antigo, em que surgem elementos decorativos do tipo ilustrado na Figura 2.  Uma característica desses é a de ter a forma dum quadrado dentado, composto por quadradinhos congruentes de duas cores.  O número de quadradinhos duma cor é sempre um número quadrado, digamos m2.  O número de quadradinhos da outra cor é (m+1) 2.  Por outras palavras, a área do quadrado dentado é igual à soma das áreas de dois quadrados reais de lados de m e m+1 unidades, respectivamente.  Por outro lado, é fácil transformar o quadrado dentado num quadrado verdadeiro de área igual.  A observância dessas igualdades de área podia num passado histórico ter levado à descoberta do teorema de Pitágoras (cf. Gerdes, 1985, 1990, 1992), mas não só.  Começando com dois quadrados quaisquer e dissecando o primeiro em m2 quadradinhos congruentes e o segundo em (m+1) 2 quadradinhos congruentes, podemos construir um quadrado dentado com todos os quadradinhos assim obtidos, que, por sua vez, facilmente pode ser transformado num quadrado verdadeiro da mesma área (vide o exemplo de m=7 na Figura 3).  Para cada número natural m pode-se construir deste modo uma demonstração para o teorema de Pitágoras (para mais detalhas, vide Gerdes, 1988, 1988a, 1990, 1992a, 1999).

Segundo exemplo: Modelagem molecular de fullerenes (Cn)

A técnica de entrelaçamento, conhecida por vários povos indígenas das Américas, Ásia e África  (cf. Gerdes, 1985, 1990, 1992), em que as tiras se entrecruzam em três direcções, leva a uma estrutura muito estável com furos de forma hexagonal.  Uma parte planar dessa estrutura (vide a Figura 1) constitui um óptimo modelo para uma camada de grafite:  Imagine os átomos de carbono posicionados nos vértices dos furos hexagonais; os lados desses mesmos furos representem ligações singulares entre os átomos de carbono e os cruzamentos de duas tiras entre dois vértices vizinhos de dois furos hexagonais vizinhos representem as ligações duplas (Figura 4).
Os artesãos sabem que devem, ao utilizar a técnica de entrelaçamento hexagonal, introduzir alguns furos pentagonais para poder ‘curvar’ as faces planares nas ‘esquinas’ do cesto.  A situação extrema seria a dum ‘cesto’ em que todos os furos fossem de forma pentagonal.  Isto acontece, de facto, com a bola do jogo “sepak raga” da Malásia, que tem doze furos pentagonais (Figura 5a).  Este jogo é duma tradição milenária.
Há muito tempo só se conheciam duas formas cristalinas de carbono, a da grafite e a do diamante, até que houve, em 1985, uma grande surpresa.  Curl, Smalley e Kroto descobriram uma terceira forma, C60 , à qual deram o nome de ‘buckminsterfullerene.’  Por esta descoberta e pela conjectura de que essa molécula de carbono teria a estrutura simétrica dum icosaedro truncado, ou seja, duma bola do jogo “sepak raga” ou duma bola de futebol (Figura 5b), os três cientistas foram distinguidos, em 1996, com o Prémio Nobel de Química.  Tal como no caso da grafite, o leitor poderá imaginar os átomos de carbono posicionados nos vértices dos furos da bola “sepak raga.”  Desta vez, os 12 furos pentagonais correspondem a 60 átomos.  Os cantos (rectificados) dos furos representam as ligações singulares entre os átomos, e os cruzamentos de duas tiras no meio entre vértices vizinhos de furos pentagonais vizinhos representam as ligações duplas.  Tanto os anéis hexagonais como a estrutura icosaedral global do C60 tornam-se mais facilmente visíveis se entrecruzarmos a bola utilizando hexafitas (Figura 6).  Hexafitas são fitas de cartolina em que se introduziram uma série de dobras de tal modo que elas facilitem o entrecruzamento-em-três-direcções das fitas.  A Figura 7 mostra como se podem introduzir as primeiras dobras para fabricar uma hexafita, e a Figura 8 mostra como juntar três hexafitas.  As fitas podem ser mantidas juntas utilizando clipes ou colando os losangos sobrepostos.  Introduzi hexafitas no início dos anos oitenta quando estava a explorar possibilidades de incorporar a técnica de entrelaçamento hexagonal de cestos no ensino da geometria em Moçambique, utilizando-as para construir vários poliedros interessantes.
Desde o sucesso, em 1990, da possibilidade de sintetizar quantidades mensuráveis de C60, muitos outros fullerenes e moléculas relacionadas têm sido estudados.  Fullerenes definem-se como moléculas em forma de uma gaiola fechada, compostas inteiramente por átomos de carbono posicionados em hexágonos e pentágonos.  Como consequência do teorema de Euler sobre a relação entre o número de vértices (V), o número de arestas (A), e o número de faces (F) dum poliedro convexo  (V-A+F = 2), o número total de anéis pentagonais num fullerene deve ser sempre 12.  Por outro lado, os químicos descobriram que dois anéis pentagonais de átomos de carbono nunca se podem tocar.  A este fenómeno deram o nome de regra-dos-pentágonos-isolados.
Todos os poliedros entrecruzáveis com hexafitas satisfazem a regra-dos-pentágonos-isolados.  Os modelos de hexafitas correspondem também a outras propriedades químicas importantes.   Por exemplo, correspondem a uma estrutura Kekulé particularmente estabilizante.  Desta forma, esses modelos podem ser úteis para os químicos na procura de possíveis fullerenes Cn.  Matematicamente, pode-se calcular, para um determinado valor de n, se existem modelos de hexafita e, caso sim, quais são os isómeros correspondentes possíveis. A Fotografia 1 ilustra um modelo de hexafita dum dos isómeros de C120.
Para uma análise e apresentação mais pormenorizadas e para fotografias de modelos de hexafitas, o leitor poderá consultar os meus artigos publicados nas revistas “The Chemical Intelligencer” (Gerdes, 1998) e “The Mathematical Intelligencer” (Gerdes, 1999a).

Terceiro exemplo: Curvas-de-espelho e Lunda-designs

Durante vários anos estive a analisar e reconstruir aspectos matemáticos da tradição ‘sona’ dos Chokwe e de povos vizinhos no Leste de Angola e zonas limítrofes do Congo e da Zâmbia (vide Gerdes, 1993/4, 1995, 1997, 1991).  ‘Sona’ (singular: ‘lusona’) são pictogramas desenhados na areia pelos contadores de histórias (vide exemplos na Figura 9).  Os ‘sona’ desempenharam um papel importante na transmissão de conhecimentos e sabedoria duma geração a outra.  A maioria dos ‘sona’ são simétricos e monolineares no sentido de serem compostos de uma única linha que abraça os pontos dum sistema referencial, previamente marcado.  Diversas sugestões de como se podem explorar os ‘sona’ na educação matemática apresentam-se em Gerdes (1988a, 1989, 1990a, 1991a, 1993/4 [vol.2], 1995 [vol.2], 1997a, 1999).  Os ‘sona’ podem ser classificados em várias classes em conformidade com os algoritmos geométricos utilizados para a sua construção.  Em particular, tenho analisado uma classe de ‘sona’, cujos elementos se podem caracterizar como curvas-de-dobra, linhas de bola de bilharde (cf. Gerdes, 1990a), ou como padrões-de-espelho ou curvas-de-espelho.  Uma curva-de-espelho é a versão alisada duma linha poligonal descrita por um raio de luz emitido do ponto A, fazendo um ângulo de 45o com os lados do rectângulo circunscrito à rede de pontos de referência (vide a Figura 10 para ilustrar o caso da Figura 9a).  Ao atravessar a rede o raio pode encontrar espelhos duplos colocados horizontal ou verticalmente, no centro entre dois pontos vizinhos da rede (a Figura 11 ilustra as posições admitidas dos espelhos).
Imaginemos que se desenha uma curva-de-espelho em papel quadriculado de tal modo que os pontos da rede se encontrem nas intersecções das rectas horizontais e verticais e que a distância entre dois pontos vizinhos da rede seja de duas unidades.  Desta forma, uma curva-de-espelho só poderá passar, no máximo, uma única vez por cada um dos quadradinhos.  Caso a curva-de-espelho passe por todos os quadradinhos, poderemos enumerar módulo 2 os quadradinhos pelos quais a curva passa sucessivamente, ou alternativamente, colorir todos os quadradinhos de duas cores, correspondendo a primeira cor ao número 0 e a segunda cor ao número 1 na enumeração módulo 2 dos quadradinhos.  Ao tipo de padrões numéricos ou de duas cores que se obtém da maneira descrita chamei de ‘Lunda-design’ (cf. Gerdes, 1996).  A Figura 12 apresenta alguns exemplos.  Os ‘Lunda-designs’ gozam de propriedades interessantes (cf. Gerdes, 1990b, 1996, 1997b, 1999, 1999b, 1999c, 2000).  Por exemplo, em cada fila o número de quadradinhos da primeira cor é igual ao número de quadradinhos da segunda cor, e dos quatro quadradinhos que se encontram no meio entre dois pontos vizinhos da rede, dois são sempre de uma cor e os outros dois da outra (vide a Figura 13).
O domínio de Lunda-designs tornou-se uma área atractiva de investigação matemática.  O conceito pode ser generalizado de diversas maneiras.  Por exemplo, podem-se introduzir Lunda-designs circulares, poliédricos, fractais, hexagonais (vide o exemplo na Figura 14) e Lunda-k-designs, estudar as propriedades desses objectos e estabelecer conexões com outras áreas de pesquisa, tais como a teoria de nós, a geometria fractal, e as álgebras de Clifford.  Podem também ser construídos quadrados mágicos de ordem 4p a partir de Lunda-designs simétricos (vide o exemplo na Figura 15, cf. Gerdes, 2000).  No simpósio internacional “Simetria 2000” em Estocolmo (Suécia) apresentei recentemente o conceito de 16-cor-‘design’ como uma generalização mais abrangente do conceito de Lunda-design (vide Gerdes, 2000b).
As novas áreas de investigação de curvas-de-espelho e de Lunda-design, nascidas da pesquisa etnomatemática, tornaram-se fértis como áreas de investigação matemática, atraindo um número crescente de investigadores em vários continentes.

Observações finais

Neste artigo apresentei sumariamente três exemplos da minha experiência pessoal de investigação etnomatemática como factor extra-matemático a estimular-me a avançar com pesquisa matemática.  Outros exemplos da minha experiência e de colegas podem ser dados.  Com os exemplos apresentados neste artigo, gostaria de salientar o seguinte:
A investigação etnomatemática estuda os processos das múltiplas e dinâmicas conexões e relações entre o desenvolvimento de ideias e práticas matemáticas e outros elementos e aspectos culturais.  Desde a fase de origem ao estágio actual do desenvolvimento da investigação etnomatemática, particular destaque é dado ao estudo de ideias e práticas matemáticas da periferia no sentido mais lato, de ideias e práticas ainda desconhecidas, não reconhecidas ou marginalizadas pelas correntes dominantes da prática matemática, da historiografia e da educação matemática.  É de esperar que a valorização das experiências e da sabedoria das periferias eliminadas, esquecidas, marginalizadas ou menosprezadas vá inspirar a investigação matemática ao nível internacional, vá contribuir para o enriquecimento do património matemático universal.  Talvez tenham de ser os etnomatemáticos a darem os primeiros passos.  Outros, inclusive os matemáticos profissionais das metrópoles, seguirão.

Publicações do autor referenciadas no artigo

(1985), Sobre o despertar do pensamento geométrico, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo
(1988), De quantas maneiras é que se pode demonstrar o Teorema de Pitágoras?, BOLEMA, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 3(5), 47-56
(1988a), A widespread decorative motif and the Pythagorean Theorem, For the Learning of Mathematics, Montreal, 8(1), 35-39
(1988a), On possible uses of traditional Angolan sand drawings in the mathematics classroom, Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, 19(1), 3-22
(1989), Desenhos tradicionais na areia em Angola e seus possíveis usos na aula de matemática, BOLEMA Especial, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1, 51-77
(1990), Ethnogeometrie. Kulturanthropologische Beiträge zur Genese und Didaktik der Geometrie, Verlag Franzbecker, Bad Salzdetfurth
(1990a), Vivendo a Matemática: Desenhos da África, Editora Scipione, São Paulo
(1990b), On ethnomathematical research and symmetry, Symmetry: Culture and Science, Budapest, 1(2), 154-170
(1991), Sobre Elementos matemáticos nos ‘Sona’ da Tradição Tchokwe, Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, Coimbra, 20, 21-27
(1991a), Lusona: Recreações geométricas de África, Universidade Pedagógica, Maputo
(1992), Sobre o despertar do pensamento geométrico, Universidade Federal de Paraná, Curitiba
(1992a), Pitágoras Africano: Um Estudo em Cultura e Educação Matemática, Universidade Pedagógica, Maputo
(1992b), Etnomatemática: Cultura, Matemática, Educação, Universidade Pedagógica, Maputo
(1993), A numeração em Moçambique: Contribuição para uma reflexão sobre cultura, língua e educação matemática, Universidade Pedagógica, Maputo
(1993/4), Geometria Sona: Reflexões sobre uma tradição de desenho em povos da África ao Sul do Equador, Universidade Pedagógica, Maputo (3 volumes)
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