Formação de professores indígenas x etnomatemática


Pedro Paulo Scandiuzzi




Resumo: Este trabalho discute a formação de professores indígenas – ampliando para as minorias - lembrando os novos conceitos introduzidos pela etnomatemática. Estes conceitos propõem uma mudança na postura do profissional em educação e mudanças quanto ao ensino/aprendizagem/partilha no relacionamento educacional existente entre educador/educando e entre educando/educador.

Palavras chave: etnomatemática, educação indígena, formação de professores indígenas.

A apresentação que proponho nesta mesa redonda é uma reflexão teórica - prática a respeito da formação de professores indígenas para as escolas indígenas e que pode ser estendida a povos sem voz e vez. Não estarei enfocando a formação de professores não-índios para as escolas indígenas uma vez que concordo com Mário César Carvalho (2000) que a arte dos índios implica um conhecimento filosófico extremamente complexo e extremamente sofisticado.
Concordando com Carvalho, parece-me inadmissível aceitar propostas educacionais que provenha de fora do contexto das etnias indígenas. Também é sério e lamentável que em vista da difusão cultural proposta pela sociedade não indígena para povos indígenas, se busca formar indígenas pertencentes a etnias que estão a longo tempo ‘civilizados’ pelos nossos costumes para que, empregados pelos órgãos encarregados assumam as escolas dos povos que não estão tão ‘civilizados’. Também creio ser inaceitável, que se alegue a falta de recursos econômicos como causa de uma educação indígena mal elaborada.
Para que se faça um relacionamento mais simétrico, respeitoso, solidário, cooperativo creio que seja necessário explicitar os novos conceitos que a etnomatemática tem introduzido nos meios educacionais para não corrermos o risco de falarmos uma coisa e tentarmos compreender outra.
O termo etno, da etnomatemática, implica, segundo D’Ambrósio (1990) uma conceituação muito ampla de etno e da matemática. Sendo assim, etno se refere a grupos culturalmente identificáveis e inclui memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até maneiras específicas de raciocinar e inferir. A matemática, por sua vez, é encarada de forma mais ampla que inclui contar, medir, fazer contas, classificar, ordenar, inferir e modelar. Portanto, etnomatemática é

“...o aprendizado e acúmulo [ticas] de habilidades e criatividade para entender e explicar [matema] os fatos e fenômenos, através de experiências resultantes do contato com seu ambiente [etno]. Estas ticas de matema são geradas em diferentes etnos, são organizadas intelectual e socialmente e são acumuladas, memorizadas e difundidas no próprio espaço e tempo, mas também entre ambientes remotos em espaço – tempo.” D’Ambrósio (1999)

A etnomatemática não tem por hábito seguir o método analítico, mas sim o método sintético, dando ênfase à totalidade, ao holismo globalista, visando a participação com inclusão do sujeito. O enfoque é transcultural.
Nós – que concebemos que o saber vem da experiência feita, construída e acumulada através da teoria elaborada por um grupo de humanos e da prática vivenciada por eles – podemos afirmar que os povos indígenas têm elaborado um saber construído, um saber matemático diferenciado.
À medida que se faz necessária a transmissão desse conhecimento, já acumulado, para as novas gerações, Freire leva-nos a um caminho educacional novo, que nos impulsiona a ir cada vez mais longe na busca do diálogo simétrico. Freire (1983 ) nos lembra:

“‘...o diálogo e a problematização não adormecem ninguém. Conscientizam. Na dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando-educador vão ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este conjunto de saber se encontra em interação. Saber que reflete o mundo e os homens no mundo, com ele  explicando o mundo, mas, sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformação”.
E continua:
“Educar e educar-se, na prática da liberdade, é a tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem, possam igualmente saber mais”.

Esta forma de diálogo provoca uma mudança de atitude e postura do professor. O professor não é mais aquele que detém o saber, o poder, o conhecimento. Ele é uma pessoa que interage com um grupo que detém um saber diferenciado do dele e, através do diálogo, o conhecimento é produzido nas duas direções – professor/aluno e aluno/professor – provocando  assim um novo saber sócio – cultural, pois estende o relacionamento dos envolvidos no processo de diálogo e os seus espaços – tempo intra – inter – retro  relacionais sócio – político – cultural – econômico – ecológicos.
E para que o diálogo seja possível, realizável, é necessário respeito pela curiosidade do outro (professor ou aluno), pelos desejos, pelas buscas emocionais e racionais do outro. Por isso, urge a necessidade de apontar caminhos olhando a realidade que temos.
D’Ambrósio (1996) nos diz:
“A fragilidade do estruturalismo pedagógico dominante, ancorado no que chamamos de mitos da educação atual, é evidente se atentarmos para a queda vertiginosa dos resultados de educação em todo o mundo. A alternativa que propomos é reconhecer que o indivíduo é um todo integral e integrado e que suas práticas cognitivas e organizativas não são desvinculadas do contexto histórico no qual o processo se dá, contexto esse em permanente evolução. Isso é evidente na dinâmica que caracteriza a educação para todos ou educação de massa”.

O olhar para o indivíduo integral, inserido num meio sócio - cultural – econômico – histórico específico, que, por sua vez, está inserido em outros meios ambientais, internacionais, que exigem cada vez mais do indivíduo e da sociedade da qual faz parte, por causa da rapidez das informações e relações, haverá de ser, também, um olhar mais amplo. E exige do educador a solidariedade para com o indivíduo e a sociedade, na busca do(s) caminho(s) escolhido(s) e desejado(s) por estes indivíduos e/ou sociedades. Não se faz mais a exigência do educador construir o ideal para o outro, uma vez que o outro pode ter quantidade/qualidade de informações através de outros recursos, além do que é dado na sala de aula. O professor deixa de ser o dono do saber, mas tem uma formação específica que o capacite a transitar entre os saberes de seus alunos, ajudando-os a questionarem a realidade envolvente para possível reorganização de seus conhecimentos.
Em se tratando de educação indígena, acreditamos que:
“Falar de matemática (produzida pela cultura branca e escolar) para indígenas, carrega uma mensagem que vem de fora. Para aqueles mais sensibilizados com a história de seu povo é falar do conquistador, é falar de algo que foi construído pelo dominador, que se serve desse instrumento para exercer seu domínio...Estamos procurando misturar água e óleo: matemática e índio. Claro que esta mistura se logra. Nos esquemas da educação oficial conseguimos, com muito esforço e muita química (isto, em termos pedagógicos, quer dizer muita metodologia) fazer a mistura. No caso, a matemática assim misturada será inútil e o indígena estará tolhido em sua criatividade. Tudo será feito para satisfazer o cumprimento de um programa, de requisitos mínimos para que o índio obtenha alguns créditos na sua acumulação de credenciais para sair de sua condição natural de incapazes e atingir a cessão do regime tutelar a que conseqüentemente está sujeito. (art. 6º do código civil)...Nada volta ao real ao terminar a experiência educacional do índio. Ele não é mais índio...e tampouco branco”. D’Ambrósio (1994)

Por isso,
“A etnomatemática indígena serve, é eficiente e adequada para muitas coisas – de fato muito importante – e não há porque substituí-la. A etnomatemática do branco serve para outras coisas, igualmente muito importantes e não há como ignorá-la. Pretender que uma seja mais eficiente, mais rigorosa, enfim melhor que a outra é uma questão falsa e falsificadora se removida do contexto. O domínio das duas etnomatemáticas, e possivelmente de outras, obviamente oferece maiores possibilidades de explicações, de entendimentos de manejo de situações novas de resolução de problemas”. Ibidem (1994)

Vemos que educar cada vez mais se distancia do senso comum que é o de ‘tornar o outro muito parecido comigo ou com meus hábitos e costumes, que aceito como possíveis para o relacionamento na nossa sociedade’. Foge do esquema de que o índio - ou qualquer outro povo - tem de aprender nossos usos e costumes e ficar com estes usos e costumes porque, sob o nosso ponto de vista, são os melhores.
Diversas vezes acreditamos que ensinar a ler, interpretar e escrever faz um grande bem as comunidades de tradição oral. Mas,

“ a luta contra o analfabetismo confunde-se, assim, com o fortalecimento do controle dos cidadãos pelo Poder. Pois é preciso que todos saibam ler para que este possa afirmar: ninguém deve alegar que desobedece a lei’. Levi-Strauss (1996)

Educar deixará livre o educando para escolher o seu caminho, dentro das curiosidades e desejos que o façam ir a busca de mais conhecimentos. Conhecimentos estes que podem ser obtidos através do diálogo simétrico, sem imposição, sem desejos de acrescentar algo mais, como se fôssemos sabedores de um conhecimento que tem algo mais. Educar será um processo intra e inter- retro - relacional sócio – político – cultural – econômico – ecológico,  que enxergará o educando como um todo.
Educar matematicamente será desenvolver, neste diálogo simétrico, formas de um diálogo franco, aberto, que exigirá do educador e do educando um crescer no conhecimento da arte ou técnica de explicar, de compreender, de entender, de interpretar, de relacionar, de manejar e lidar com o entorno sociocultural.
Será muito importante que haja uma inter/intra-relação entre as etnomatemáticas, pois cada etnomatemática conhecida e apreendida exigirá uma maior abertura aos novos conhecimentos e o possível diálogo entre os grupos sociais que a produzem, quando apreendidos, se tornará mais próximo e compreensível.
À medida que conhecemos a etnomatemática de um grupo social, este grupo social passa a fazer parte de nós e seus hábitos e costumes serão respeitados, não serão folclore e nem tidos como ‘menores’, necessitando de uma reeducação.
Portanto, para o etnomatemático, a educação indígena pode se realizar com a presença do educador não-índio, não para transferir qualquer tipo ou modelo de conteúdo, mas para que, no diálogo com os povos indígenas, eles possam reconhecer como científicas as construções produzidas por seus antepassados, e - através destas produções científicas - compreenderem como se denominam na nossa cultura. O etnomatemático deve reconhecer a produção científica e educacional dos povos indígenas (produção esta milenar), como uma entre tantas outras produzidas por grupos sociais diferenciados.
 Quanto à postura do educador: deverá fazer um exercício consigo mesmo, para respeitar a cultura diferente do outro e solidarizar-se com ela. Isto envolverá um exercício também no campo do poder, pois, se respeito e me solidarizo com a construção do conhecimento do outro diferente, meu saber e fazer não é superior e nem inferior ao do outro, desmistificando assim o ditado popular ‘quem lê sabe mais’.
Quanto às relações econômicas: é bem mais sério. Geralmente, os projetos voltados para a educação dos povos indígenas ficam bem caros e desenvolver o ensino pelo método educacional da etnomatemática exigirá um tempo sem fim, uma vez que este contato e este diálogo se processam lentamente. A ‘lentidão’ do processo se dá devido à necessidade do tempo para melhor compreensão da realidade de ambas as direções, dos índios para com a nossa cultura e nossa para com a cultura indígena. Exigirá que o educador realmente acredite neste diálogo e neste processo educacional e, muitas vezes, terá de ‘gastar do seu tempo e do seu bolso’ para que possa mostrar a validez de tal processo educacional.
Para as ‘festividades’ dos 500 anos de invasão, destruição e exploração dos povos indígenas - contato cultural que dizimou a população indígena do Brasil e de todo continente latino-americano - temos que pensar em um processo educacional que não continue explorando, dizimando e destruindo estes povos, pois
“Até os objetos mais simples, seja um ralador de mandioca, tem uma imensa carga semântica. Do ponto de vista indígena, a criação de seus objetos não é humana. Os protótipos foram criados pelos demiurgos no tempo da criação do mundo. O copyright desses objetos é sobrenatural, é divino. Esses objetos transportam o poder divino dos seres que os criaram. Não são feitos para ser apreciados, mas para agirem. São objetos que servem para transformar a realidade...Quando um índio manipula um material, ele está a manipular energia cósmica. Quando ele fabrica alguma coisa, implica duas obras: uma obra técnica, que é um saber artesanal, e a manipulação de energias cósmicas.” Carvalho (2000)

Mesmo percebendo a distância que está a cultura indígena da nossa, a educação indígena não permanece sem a interferência dos não-índios, dos Caraíbas, pois os meios de comunicação estão presentes em quase todos os lugares da terra, e o processo de globalização acelera o dinamismo cultural.
Podemos, desta maneira, verificar que a proposta – que segue o programa da etnomatemática – reconhece, aceita e valoriza a pluralidade cultural. Nela, o educador que assessora a formação do professor indígena, estará recebendo e dando informações. E, ao fazer isso, através do diálogo, perguntando cousas da cultura, provocará no professor indígena uma busca das construções científicas e educacionais do seu povo, preparando-o na pesquisa e formando assim um intelectual de elite de sua etnia. Este profissional indígena será semelhante aos nossos profissionais especializados: à medida que avança neste diálogo com a sociedade hegemônica, aprenderá o português para relacionar-se com o outro, como o fazemos na academia, pois à medida que avançamos nos estudos, sentimos necessidade de saber novas línguas e outras formas de conhecimento.
Com o programa da etnomatemática reconhecemos, assim, a capacidade social de decisão e direito de participação na programação dos processos de formação dos povos indígenas. Reconhecemos e aceitamos o direito de manejar, de maneira autônoma, os recurso de sua cultura. Reconhecemos que são eles, os povos indígenas, que devem decidir seu futuro, segundo um projeto que parta de seus interesses e aspirações.
Este programa se adequa especificamente aos povos indígenas, uma vez que não podemos falar em educação indígena em geral, mas de diferentes educações dos povos indígenas. Penso também, que esta proposta aponta propostas para os grupos sociais marginalizados e/ou diferenciados, grupos sociais dito marginalizados numa compreensão capitalista do termo e ela sinaliza caminhos para todos os grupos sociais de nossa sociedade e de sociedades que não é a nossa mas nos circundam
Por isso, a postura de educador deve excluir toda auto-suficiência, dialogar com igualdade, aceitar a diferença e a alteridade, deixar que seja o outro que se defina aceitando a auto-leitura a partir da própria identidade.
 

Referências Bibliográficas:
CARVALHO, M. C. Índios animaram contemporâneos.  2000 (xerox)
D’AMBRÓSIO, U.  A etnomatemática no processo de construção de uma escola indígena.  In: Em Aberto.  Brasília.  DF.  Ano14.  Nº 63.  Jul/set.  1994
D’AMBRÓSIO, U. Educação Matemática: da teoria à prática.  Campinas. SP.  Papirus.  1996  ..
D’AMBRÓSIO, U. Educação para uma sociedade em transição.  Campinas – SP.  Papirus.  1999
FREIRE, P.  A importância do ato de ler em três artigos que se complementam.  São Paulo.  Cortez.  5ªed.  1983
FREIRE, P.  Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.  São Paulo.  Paz e Terra.  1997
LEVI-STRAUSS, C.  Tristes Trópicos.  Edições 70. Ltda.  Lisboa.  1996