“Etnomatemática: entre o discurso acadêmico e a Produção Social do Conhecimento”

(Ethnomathematics: among the  academical discourse and the socially Knowledge produced )


 


 Samuel Edmundo López Bello


Resumo

Este trabalho pretende mostrar como a Etnomatemática, apesar de pôr em evidência a questão da diversidade cultural e a produção social de saberes “diferenciados” em diversos contextos e grupos sociais, constitui um discurso acadêmico e como tal possui uma legitimidade para identificar e distinguir essa produção à luz de pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos fortemente disciplinares. Assim mesmo, e considerando as relações de poder nas relações sociais como impulsadoras e direcionadoras da dinâmica cultural, pergunta-se: qual o sentido dessa distinção? Conclui-se que a Etnomatemática, enquanto proposta acadêmica, ao mesmo tempo que pode servir de meio para a resistência cultural de grupos subordinados, pode estar contribuíndo aos processos de dominação.

Palavras – Chaves : Etnomatemática (teoria) – Relações de Poder – Dinâmica Cultural.

ABSTRACT

This paper pretends to show how Ethnomathematics as an academic discourse possess legitimacy to define and distinguishing socially  knowledges produced. In spite of trying to recognize differents kind of knowledges  among culturally identificable groups , Ethnomathematics uses theorical  methodological disciplinary frameworks of research .
Even considering relations of power in social relationships as leading cultural dynamic it is asked: What is the intention of Ethnomathematics identify those knowledges socially produced?
The conclusion is that Ethnomathematics proposal for subordinated people could be an instrument to cultural resistance as much as providing dominance situations.

Key-words: Ethnomathematics (theory) – Relations of power – Cultural dynamic.

Introdução

Um trabalho de pesquisa que desenvolvi junto à comunidade indígena Guarani-Kaiová no Mato Grosso do Sul (LOPEZ , 1995), surgiu muito a partir do meu contato com o tema  da Etnomatemática,  área relativamente nova de pesquisa na Educação Matemática. Foi com esse trabalho que passei a entender a Matemática em relação ao contexto sócio-cultural em que é produzida. Os usos feitos da  Matemática, embora ela se apresente com toda  sua exatidão, eram possíveis de  diferenciarem-se   e de  modificarem-se segundo o contexto sócio-econômico e a história de vida dos indivídos que se utilizavam dela. A proposta, no caso, eram estudos, pesquisas e ações visando um trato mais simétrico em relação ao conhecimento matemático - entre aquele produzido institucionalmente e aquele resultado de práticas sociais diversas. Assim, identificava esquemas lógicos, práticas matemáticas, às vezes étnicas, com base supostamente em outras formas de organização.
Entretanto, a resposta e o tratamento acerca dessa situação não parecia estar somente na aparente valorização e o reconhecimento dos saberes desses grupos indígenas, como de tantos outros; requeria-se uma revisão auto-crítica menos superficial da sua realidade e das suas bases culturais. Havia que reconhecê-las como ferramentas para a vida. No meio de todas essas discussões, compreendi também que se precisava  discutir e entender melhor as formas e os modos de vida e/ou atitudes praticadas no interior do nosso modelo político-econômico vigente e como este exerce, de uma forma ou outra,  processos de seleção e exclusão por meio de suas "verdades" e de suas relações de poder. É assim que se perfila um enfoque histórico-sociológico à medida que considero os diferentes processos de produção, organização, institucionalização  e difusão de conhecimentos (D’AMBROSIO, 1990) porém em múltiplas inter-relações, conflitos e tensões, principalmente entre aquelas de tipo ideológico. Qualquer que seja a realidade não deve ser  só compreendida nos seus aspectos internos, ou “etnicos”, mas também em relação a influências externas e portanto ênfase no entendimento da dinâmica cultural existente. Igualmente, deve se perceber e ter “ciência” do quanto a Etnomatemática fala sobre os diferentes grupos desde sua condição de saber legítimo, e nós pesquisadores enquanto instrumentos e sujeitos da sua ação.

II. Etnomatemática: algumas reflexões preliminares.

Uma das  primeiras definições do que é Etnomatemática é dada por D’AMBROSIO (1993: 5) no sentido de a palavra significar "etno", do grego referente a contexto cultural, "matema", também do grego significa entender/conhecer/explicar e "tica" sugerida pela palavra techne que é a mesma raíz de arte e técnica. "Assim, poderíamos dizer que Etnomatemática é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender em diversos contextos culturais.” Desde então, e por se constituir numa nova vertente de pensamento no campo da Educação Matemática,  inúmeros e significativos  têm sido os trabalhos de pesquisa, as propostas pedagógicas pensadas e desenvolvidas, as publicações e artigos escritos a esse respeito e também associações especializadas, como o International Study group of Ethnomathematics (ISGEm), em conhecer e divulgar o trabalho científico desenvolvido nessa área.
A diversidade de conhecimentos,  de comportamentos , de atitudes, de juízos de valor , de formas de interpretar o mundo e a vida é um fato; a Etnomatemática, ao colocar em evidência a questão da diversidade, pôs em “xeque”  tudo aquilo considerado único, preciso, pronto. Passou, a meu ver, desde sua condição de proposta acadêmica, a autorizar, a dizer, a falar e a explicitar aquilo referente ao conhecimento matemático que na nossa sociedade não se queria reconhecer. Frente à diversidade e à explicitação daquilo que passa a ser visto sob a ótica dos conhecimentos étnicos pergunto-me: Por que, mesmo com a valorização de conhecimentos, valores e atitudes, esses são substituídas por outros aparentemente mais efetivos? Por que músicas, tradições, festas têm um valor “folclórico” e não manifestam explicitamente sua presença na educação dos futuros cidadãos? Por que as famílias, indivíduos na condição de subordinados, muita vezes, procuram se inserir no modelo político-econômico vigente, renunciam às suas raízes e/ou vínculos com saberes e experiências passadas? De alguma forma, problematizar sobre tudo isso, implica problematizar também sobre a própria Etnomatemática, enquanto proposta que forma parte e, ainda, pretende-se hoje em dia,   um corpo teórico coerente no interior de uma área de conhecimento como é a Educação Matemática. A proposta Etnomatemática, como D'Ambrosio a denomina "um programa" (D'Ambrosio, 1993, 1996, 1997, 1999), em estreitas relações com  a própria Matemática,  a História, a Pedagogia, possui uma legitimidade, desta vez no interior da instituição chamada Academia. Assim, o que de agora em diante  poderia ser falado, dito, aceito e/ou reconhecido no interior da proposta Etnomatemática? Ou melhor, o que realmente passa agora a “encaixar-se” como prática Etnomatemática, como "discurso"  estruturado da Etnomatemática, como uma  ação teórico-prática dentro do referido programa?
Vale a pena lembrar FOUCAULT (1996: 32) quando diz:
“Uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou sistematicidade(...) a botânica não pode ser definida pela soma de todas as verdades que concernem às plantas [...] para que uma proposição pertença à botânica [...], é preciso que ela responda a condições, em um sentido mais estritas e mais complexas, do que a simples verdade[...] a partir do século XVII, por exemplo, para que uma proposição fosse "botânica" era preciso que ela dissesse respeito à estrutura visível da planta”.
A amplitude do pensamento de D'Ambrosio, referindo a Etnomatemática como as artes e técnicas de explicar e conhecer, assim como a utilização da palavra etno aproximou, ou pelo menos num início,  o desenvolvimento  da pesquisa em Etnomatemática numa abordagem antropológica muito forte. Estreitas e fortes comparações com a disciplina,  reconhecendo, identificando, Matemática em práticas cotidianas expressas em linguagem natural envolvem ainda esses trabalhos. Na pesquisa que desenvolvi junto aos índios Guarani-Kaiová do MS/Brasil (LOPEZ, S. 1995), certamente essas características estão expressas. Metodologicamente, uma apropriação etnográfica como orientação privilegiada de investigação tem propiciado, assim como um reconhecimento e a reivindicação pela existência de realidades diferentes que os significados de tais práticas ficassem apenas comigo, em qualidade de pesquisador  (num plano abstrato e portanto descontextualizado) e não com aqueles que foram os produtores de tais práticas.
Do meu ponto de vista, há considerações teórico-metodológicas na Etnomatemática que precisam ser superadas, principalmente, a idéia de pesquisar uma matemática étnica, isto é, uma matemática, dentro dos moldes disciplinares, em contextos e/ou grupos “étnicos”, sob um enfoque antropológico no qual a relação pesquisador - sujeitos de pesquisa, manifesta-se na idéia do pesquisador enquanto etnógrafo e os sujeitos participantes enquanto membros pertencentes a  grupos étnicos (FERREIRA, E.,1997).
Segundo D´Ambrosio (1996)  abordar um problema tão global como o caso do conhecimento, exige percepções multidimensionais e transdisciplinares do que é o entendimento da ordenação da realidade. A compreensão da produção do conhecimento responde a um ciclo de geração, organização intelectual e social, institucionalização e difusão e isso, sem dúvida, relaciona-se com aspectos políticos, sociais, econômicos, religiosos, entre outros. Assume-se desde já uma visão mais holística diferente do entendimento apenas de questões étnicas particulares e parte-se para questões e discussões de caráter muito mais amplas. Diversidade de contextos, conhecimentos e suas inter-relações devem ser assumidas como pilares no desenvolvimento de qualquer trabalho em etnomatemática. Concordo com D'AMBROSIO (1990),  a respeito da Etnomatemática quando situada dentro de uma perspectiva de análise histórica que repousa na apreciação de modos de explicações e de manejo da realidade.  Esta proposta é considerada holística e transdisciplinar na medida em que geração, organização, institucionalização e difusão não podem ser dissociadas pois representam um ciclo que deve ser entendido na sua totalidade (D'AMBROSIO, 1990, 1996, 1997, 1999).
A análise histórica, certamente, aponta para um afastamento de toda e qualquer perspectiva etno-disciplinar, o prório D’AMBROSIO (1997: 16) refere-se a isso quando diz:
“Dentro do espírito evolutivo, é que proponho o programa Etnomatemática. Embora surja como uma teoria geral do conhecimento -uma vez que estuda todo o ciclo desde sua geração, passando pela organização intelectual e social, até sua difusão- o fato de o nome sugerir o corpus de conhecimento reconhecido academicamente como matemática tem tirado, ao programa Etnomatemática, seu caráter de uma teoria geral abrangente e transdisciplinar. Muitas vezes o programa tem sido apenas como um enfoque à educação matemática. Essa coincidência, que acabo lamentando - o lamento vem por conta de uma escorregada na vaidade! - foi percebida depois que resolvi adotar a raiz grega matema(ta) para compor a palavra Etnomatemática.”

De certa forma uma nova dinâmica para o entendimento das relações inter e intraculturais começa a se configurar. É interessante notar, sob esta perspectiva,  a percepção da história, da cultura e do conhecimento produzidos em contextos sócio-culturais específicos e as relações que se perfilam em relação a outros grupos. Para isso é necessário tomar como referencial de análise os processos dinâmicos, históricos, inter e intraculturais do contexto da sua ação. A análise da produção e institucionalização do conhecimento abre a possibilidade de entendimento e reflexão sobre alguns processos de dominação, resistência e aceitação e assim procurar compreender a ação de grupos humanos sobre uma realidade ou contexto específico.

Relações de Poder, dinâmica Cultural e um novo sentido para a Etnomatemática.

Diferente do que seu nome possa sugerir, Etnomatemática não deve ser entendida como uma Matemática etnica, mas aos ordenamentos feitos por diversos grupos sociais considerando os aspectos políticos, sociais, individuais, econômicos, culturais, que motivam a produção, a organização, institucionalização e difusão  desses ordenamentos (D’AMBROSIO, 1990). Sobre a idéia de grupo étnico MONTEIRO (1998 : 70) refere: “A cultura de um grupo resulta, também, da interação entre diferentes grupos. Atualmente essa interação pode ocorrer por contatos diretos, entre pessoas, e indiretos, pela mídia. Assim, fica clara a impossibilidade de resgatar esquemas “puros” [e portanto étnicos], a partir dos quais articulam-se o conjunto de valores culturais.”

O comportamento social de diversos povos vem mostrando o quanto estilos de comportamento, de alguma forma, relacionam-se e têm suas implicâncias no sobreviver e transcender (D’AMBROSIO, 1997:26), expressos e delimitados através de práticas e/ou sistemas produtivos em contextos específicos Nesse sentido,  formas e práticas de explicar, de conhecer, de manifestar-se, de lidar numa determinada realidade - Etnomatemática - podem  ser vistas numa perspectiva holística como resultado da ação do homem no interior desses sistemas numa realidade, a qual passa a ser entendida na sua totalidade, portanto, fonte e alvo das diversas manifestações humanas. (D’AMBROSIO, 1999: 49). No entanto, embora assuma-se uma postura holística de entender a produção de formas de explicar e conhecer, a partir de relações como as de sobrevivência e transcendência, não se pretende afastar com isto o processo dinâmico de transformação dessas formas em meio a relações inter e intra societais. Logo, a questão que se estabelece é: qual o caminho e/ou direcionamento que tem seguido e que seguirá essa dinâmica?
Todo grupo humano, para se constituir como grupo, precisa de se organizar política, social, econômica e culturalmente. Inerente a essa constituição estão os princípios de estrutura, hierarquia, regulamentação, os quais asseguram, inicialmente, que os membros do grupo “respeitem” e “mantenham” essa organização. Contudo, e ao mesmo tempo que essas idéias funcionam para a organização das ações socialmente compartilhadas, elas  tendem depois a funcionar  também como meios de controle social. O sentido da organização gera consigo o sentido da hierarquização e este o sentido da diferença. Estabelecem-se, assim,  relações de poder, as quais parecem surgir  ao mesmo tempo que um grupo social se organiza como tal. E  passam a permear, a partir daí, não apenas  as interações sociais entre os membros do grupo, mas conseqüentemente a influenciar  e definir os modos e formas de sobreviver e transcender do(s) grupo(s). Se sobreviver e transcender é natural no comportamento social do homem, o domínio dos meios e modos de sobreviver e transcender desse social permitiria então ter o seu controle. Assim, as relações dominador-dominado começam a se perfilar à medida que certos setores sociais  controlam e/ou determinam quais serão e como terão de se manifestar , e organizar também, os (seus) modos  de sobreviver e transcender. Esse controle e/ou determinação corre por conta de uma “distinção” desses modos, necessária à medida que são percebidas pelos grupos de poder, dinâmicas políticas, sociais e culturais mais amplas. É preciso, de alguma forma, que aqueles setores que passam para a condição de dominadores se distingam, por assim dizer, do coletivo social e se credenciem como tais. No entanto, essa “distinção” deverá ser apenas na forma (daí o sentido de formalização) de manifestar os estilos de comportamentos do grupo, pois essa distinção não pode perder de vista o seu sustento - o todo social.(LOPEZ: 2000, 160)
As práticas científicas e tecnológicas, por assim dizer, são uma manifestação contundente dessa forma(lização); isto porque, elas representam e organizam, com seu caráter disciplinar (ordem, prescrição, hierarquia), Contextos de modo diferenciado, mostrando-se  com uma nova ordem e um outro significado. Assim,  dicotomizações como: Científico e Pré-científico, Teoria e Prática, Matemática e Etnomatemática resultam não só artificiais, mas também  meios para distinguir práticas legítimas de não-legítimas, e  exercer o poder ao estabelecer  intenções  e perspectivas unidirecionais de reapropriação, por parte dos grupos dominados, das práticas culturais legitimadas nas quais eles  pensam  não terem nenhuma participação.
Existe pois um jogo constante de (re)apropriação, por parte dos diversos setores sociais: segundo a hierarquização, tanto por dominados como dominantes, de formas e práticas “distintas”, mais ou menos legítimas; segundo o grau de participação dos diferentes setores sociais na realidade como um todo e no interior das estruturas de poder. De alguma maneira, os processos de produção, organização e difusão do conhecimento constituem um exemplo desta dinâmica. “... o conhecimento coletivo, no processo de ser compartilhado por comunidades e sociedades, tende a ser ordenado” (D’AMBROSIO, 1999 : 24) e ao mesmo tempo expropriado e diferenciado por grupos de poder, uma vez que ele permite o acesso e a manutenção às estruturas dominantes que se estabelecem e se definem em função desses processos, principalmente, de organização e difusão.
Hoje em dia não existem relações de dominação e subordinação tão polarizadas como acontecidas em outras épocas. As diversas e constantes manifestações culturais tem diluído, senão abrandado em grande medida essa questão. No entanto, parece paradoxal entender como grupos subordinados, no meio de relações conflitivas que se apresentam em múltiplas realidades pelo domínio de certos tipos de conhecimentos, possam  usar a “bandeira” da diferença cultural como expressão máxima da luta por reivindicações sociais, institucionais e econômicas num sistema que os têm discriminado em função dessa diversidade (MIRA: 1994, 131). As idéias de “diferenciação cultural” e “conflitos” entre grupos sociais têm se tornado pressupostos, quando não princípios,  legítimos dentro do nosso sistema de caráter global. De alguma maneira, só se podem sustentar relações de poder nesse sistema, à medida que se define “o diferente”. Portanto, se a diferença propicia relações de dominação, será preciso diferenciar para poder dominar. A questão que  surge então é: qual é a ferramenta que favorece à determinação desse “diferente” e configura, por assim dizer, diferentes relações de dominação?
A condição de  dominados de certos grupos sociais, certamente, não os coloca em situações passivas e dóceis. Existe aquilo que se pode denominar de resistência cultural, e que acontece quando  os grupos dominados percebem que aquilo já estabelecido na sua realidade social mais ampla pode vir a ser útil para aprender ou ter acesso às práticas dominantes e/ou hegemônicas, e com isto às suas estruturas.
O que entra em disputa num processo de resistência cultural não são as diferenças dos modos de pensar e de agir (LAGOS, 1992) mas, a partir de uma perspectiva própria em relação com a experiência de vida , dos diversos significados, das expressões, das práticas legítimas e hegemônicas (LOPEZ, 2000: 176). A idéia de resistência cultural pelas práticas diferenciadas, ou pela especificidade de suas manifestações tem sido utilizada, inclusive, pelos grupos dominados, numa ação de luta quase  frontal contra grupos dominantes, desvirtuando suas próprias  formas de resistência e favorecendo a dominação. Esse processo de diferenciação cultural é também um discurso que, embora  seja de posse dos grupos dominados, não perdeu seu caráter legítimo. Contudo,  as conseqüências práticas desse discurso são diferentes para os diversos grupos sociais, por situações e relações antes descritas ; e, porque as diversas instituições, também legítimas que se encarregam de produzi-lo e organizá-lo (Universidade, Escolas, entre outras), formam parte de um mesmo sistema,  refletem nele as suas características.
Para quem quiser exercer o poder, torna-se necessária a ação de uma manifestação racional institucional dirigida à formalização das suas práticas. Essa formalização ou - do ponto de vista foucaultiano - produção do saber acaba outorgando a essas práticas, agora legitimadas, uma qualidade diferenciada, a meu ver, apenas na maneira de se apresentar, uma vez que essas práticas são produzidas a partir e no meio de inter-relações sociais, e segundo o  contexto sobre o qual se quer exercer o poder.  À luz das idéias anteriormente expostas sobre dinâmica e resistência cultural, é possível pressupor que, de alguma maneira, o processo de (re)apropriação das práticas matemáticas, como práticas legítimas, por parte dos grupos dominados esteja acontecendo. E, ainda, que essa (re)apropriação defina alguns caminhos e opções para entender, direcionar, (re)definir a Etnomatemática enquanto proposta que procura entender, dentro do marco das artes e técnicas de explicar e conhecer, os processos de produção, organização, institucionalização e difusão do conhecimento. Nesse sentido, o discurso da Etnomatemática poderia ser identificado como uma prática hegemônica, um saber acadêmico, um discurso legítimo?, ou seja, uma prática que se desenvolve dentro de uma estrutura social acadêmica vigente e que, portanto, também sujeita às condições que determinam essa estrutura?
Certamente, se se assume que a etnomatemática em sua composição “disciplinar” guarda relação com as práticas “matemáticas” legítimas, os estudos que pretendem mostrar a “matemática” produzida em diversos contextos sócio-culturais estariam referindo-se aos processos de (re)apropriação da matemática legítima, por parte dos grupos dominados, isto é, a uma direta atenção do discurso acadêmico, para “um controle”  (sem ser muitas vezes essa intenção realmente consciente, mas que aponta para tal) do discurso e da prática matemática apropriada pelos grupos subordinados.
Contudo, é importante destacar também  que dentro desta perspectiva, ao se falar de (re)apropriação, estar-se-ia colocando, de igual forma, o sentido da expropriação por parte dos grupos dominantes dessas práticas. Os estudos que buscam resgatar a matemática conhecida por outros grupos em diferentes contextos e /ou aspectos referentes às raízes históricas do discurso Matemático legítimo (GERDES, 1986, 1991, 1992) apontam para este fato. Nesse sentido, é importante resgatar numa perspectiva histórica os processos de dominação inter e intraculturais, nos quais é fácil perceber, no caso da matemática, como se dá a dinâmica cultural de certos conceitos e idéias entre grupos dominantes e dominados. Trabalhos como os de JOSEPH (1991, 1995) , CLOSS (1986) , SAXE (1985)  ao se referirem e relacionarem  à história cultural da matemática, práticas de diferentes culturas, como modalidades de pensamento e de estratégias de resolução de problemas expõem o movimento de expropriação-apropriação, isto é, o movimento que, em meio a relações de poder entre grupos dominantes e dominados, dirige o sentido da dinâmica cultural. Os trabalhos em etnomatemática ao associar as práticas cotidianas de grupos hoje subordinados, com as práticas matemáticas surgidas também de confrontos e disputas, evidenciam essa resistência, ou seja, a maneira como vem sendo o caminho percorrido e alcançado pelos grupos dominados no processo de apropriação das práticas matemáticas legítimas impostas após um processo de dominação. Portanto, se por um lado o caráter matemático disciplinar da Etnomatemática, em relação ao passado, é favorável a mostrar os processos de expropriação de conhecimento, por outro lado, em relação ao presente, revela com toda sua força os processos de (re)apropriação desenvolvido pelos grupos dominados. A questão que se estabelece é : para quem a Etnomatemática revela esses processos e o que será feito com isso?
O fato de se estabelecer uma relação de expropriação/apropriação implica em aceitar uma unidade no conhecimento, impossibilitando que de modo tranqüilo se definam diferenciações culturais. A referida unidade coloca, sem dúvida, práticas sociais  num estado de subordinação e de inferioridade, mas, por outro lado, estabelece uma corrente de enlace para facilitar aos grupos dominados a apropriação das práticas dominantes, à medida que são estabelecidas as relações entre as práticas coletivas e as práticas legítimas. Os trabalhos de GERDES, por exemplo,  não teriam assim favorecido o desenvolvimento econômico e educacional do seu país se não contemplassem este aspecto. De alguma forma, o autor contribuiu ao processo de  resistência apesar de ter anulado possibilidades mais amplas de  diferenciação cultural.
Assim, uma perspectiva, no que se refere à Etnomatemática, pode ser entendê-la como um discurso legítimo associada à apropriação e expropriação de práticas em meio a relações de poder. Porém, como associá-la agora a um outro sentido superando o caráter disciplinar, etnocêntrico e ideológico que seu nome representa. E o que pode acontecer se se propuser um novo sentido e significado como se pretende, abrangendo, numa perspectiva holística,  formas de explicar e conhecer. Associar, por exemplo, o significado de Etnomatemática a “vida dos povos”  implicaria aceitar a vida que se desenvolve em meio a relações de poder e que leva em consideração, não apenas o caráter disciplinar, mas as lutas e  tensões  que esse viver dos povos representa. Nesse sentido, não podem ser esquecidos aspectos referentes à repressão, à permissão, à valorização, à manifestação de práticas e expressões culturais em relação a diferentes formas de explicar e conhecer. A “vida dos povos” refere-se, entre outras coisas, à resolução de problemas, aos instrumentos  e recursos para o trabalho, ao esforço humano a ser utilizado nesse trabalho, isto é, a complexidade que representa a relação sobrevivência-transcendência anteriormente exposta. No que se refere às relações de poder que permeiam essa “vida” , não há como ignorar os modos de produção e distribuição de bens e recursos e os esquemas políticos e econômicos que os orientam e determinam, a questão da propriedade individual e coletiva, a forma de acesso ao capital e à participação no mercado e as explicações plausíveis de justificar todas essas ações. É possível, logo, identificar uma ampla gama de inter-relações, dentro deste enfoque, nas quais seja possível perceber por que certas práticas são mantidas, reprimidas, valorizadas, substituídas. Certamente, a produção, organização e difusão de formas de explicar e conhecer,  a favor de uma “melhor existência” dentro da estrutura de poder na qual um grupo se desenvolve, é um  primeiro ponto.  Com isso, entenda-se por práticas etnomatemáticas aquilo tudo que envolve a “vida dos povos” inclusive as lutas e tensões em meio a processos de imposição, aceitação e resistência cultural. A relação sobrevivência-transcendência mostra como há uma necessidade tão humana de possuir, construir e/ou se apropriar de conhecimentos e estratégias  necessários à manutenção dessa relação. Sob este enfoque, entende-se que Etnomatemática possa vir a ser: “O conjunto de artes e técnicas de explicar e conhecer elaboradas por um grupo pertencente a um contexto sócio-cultural - permeado por relações de poder - a partir das suas formas, meios e necessidades de sobrevivência com a finalidade de assegurar essa sua sobrevivência e o de suas gerações futuras (transcendência)” (LOPEZ, S.: 2000, 202).
Todo grupo está sujeito a esse processo de elaboração e com isto a um complexo sistema de atitudes e de lutas entre o que se produz localmente, em realidades mais amplas e processos de imposição, aceitação e resistência entre grupos dominantes e dominados, a fim de estabelecer uma ordem em beneficio de alguns e em prejuízo de outros. Assim, a Etnomatemática aponta, nesse enfoque, para uma compreensão compreensão da cultura, da cognição, da epistemologia, da história e da política (D’AMBROSIO, 1997) Nesta última, certamente, está incluída a ação social, que compreende a educação, saúde, economia, sociologia e política propriamente dita. A proposta Etnomatemática aborda toda uma teoria das idéias e uma crítica das práticas numa análise multidimensional que compreenda o sentido da historicidade do conhecimento produzido em certos contextos, propicie o seu relacionamento e participação em outros mais amplos, compreenda os caminhos trilhados por esse conhecimento, entendendo-se melhor o sistema cultural e o conjunto de relações no qual é produzido

Considerações finais: rumo à ação pedagógica.

Certamente, o aspecto direcionado à ação pedagógica no marco conceitual da etnomatemática diz respeito à análise multidimensional no que se refere ao tratamento de artes e técnicas de explicar e conhecer, produzidas num contexto social específico orientado segundo as necessidades e a história-de-vida dos integrantes dos grupos sociais.  Seja como (Etno)matemática, num sentido mais disciplinar, ou como a “vida dos povos”, num sentido transdisciplinar (D’AMBROSIO: 1997, 9) é, antes de mais nada, um processo de construção, apropriação, utilização de práticas legítimas, isto é, aquilo que tenho denominado de resistência cultural. Em LOPEZ (2000) mostra-se como as “distintas” formas de explicar e conhecer guardam uma estreita relação com as atividades produtivas e as práticas sociais desenvolvidas no contexto sócio-cultural. O estilo de vida, dependente dessas atividades, vai determinar, sem dúvida, a proposta de estratégias diversas  com base nessas atividades e, mais ainda, na forma de se penetrarem nas estruturas de poder. Todo esse “constructo social” – meios produtivos e luta por um melhor acesso a bens e serviços – será, certamente, determinante também para as explicações sociais dos indivíduos pertencentes a esse contexto e para as atividades cognitivas decorrentes dessas explicações. A luta social, implícita em torno aos meios e práticas hegemônicas,  está enquadrada, em princípio, no questionamento e na não aceitação dos grupos dominados do significado legítimo que os grupos dominantes pretendem dar a essas práticas. Contudo, essa não-aceitação manifesta-se, por vezes, com um caráter antagônico (local ou global, religioso ou pagão, folclórico ou oficial) em relação às práticas sociais mais amplas, não por estarem fundadas em valores pré-capitalistas ou capitalistas ou em valores ocidentais ou não-ocidentais, mas porque se relacionam com a experiência de vida cotidiana com conseqüências ao desenvolvimento igualitário dos grupos subordinados no todo social.  A consciência da desigualdade social - e porque não podem escapar dessas relações consagradas cotidianamente - faz com que, de alguma forma, experiências, significados mais ou menos distintos  ao fazer parte da sua vida constituem-se em formas mais ou menos efetivas de resistência cultural as quais devem estar presentes no espaço escolar.

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