Etnomatemática e modelagem




Ubiratan D’Ambrosio



A maneira como essa mesa foi organizada e apresentada sugere uma situação de conflito entre etnomatemática e modelagem. Puro engano! É como dizer que há uma situação de conflito entre queijo e vinho. Queijo é vinho? Vinho é queijo? Qual é mais gostoso? Um bom vinho sabe muito melhor com um bom queijo. E um queijo de qualidade merece ser acompanhado por um bom vinho.

É importante examinarmos o ciclo do conhecimento, em especial como se dá sua geração e sua organização. O conhecimento resulta de informação recebida da realidade, através dos sentidos, da memória e do código genético. A informação é processada, gerando conhecimento. A informação, captada graças aos instrumentos intelectuais e materiais de que dispomos, é organizada como representações da realidade, modelos, sobre os quais o processamento se dá. Esse processamento é modelagem. Para o processamento utilizamos todos os instrumentos disponíveis. Os instrumentos de que dispomos é a nossa etnomatemática.

Como exemplo, vou examinar o que se passa com um fato/fenômeno que é dos favoritos entre os cultores da modelagem, que é a apicultura. Se aqueles envolvidos no estudo da apicultura forem matemáticos, eles vão dispor de uma etnomatemática própria dos matemáticos acadêmicos, como equações diferenciais e outros instrumentos intelectuais e materiais, como computadores. Mas se os envolvidos forem apicultores camponeses, interessados na comercialização do produto das abelhas, sem dúvida eles utilizarão instrumentos qualitativos e quantitativos, isto é, uma etnomatemática, que vem sendo aprimorada e transmitida de geração para geração. E se os envolvidos forem indígenas, interessado nas propriedades curativas e místicas do produto das abelhas, os instrumentos intelectuais e materiais por eles utilizados constituem sua etnomatemática.

Todos estarão fazendo modelagem. Os matemáticos aplicados utilizando a etnomatemática que vem dos círculos acadêmicos, os apicultores utilizando a etnomatemática própria das comunidades que há anos, talvez séculos, vem trabalhando com o produto das abelhas, e os indígenas utilizando a etnomatemática que está incorporada às suas tradições xamânicas e místicas.

Todos estarão fazendo modelagem, cada grupo utilizando os seus recursos intelectuais e materiais próprios, isto é, sua própria etnomatemática.