Etnomatemática: uma proposta pedagógica para a civilização em mudança.*



Ubiratan D’Ambrosio**



Bom dia.

Eu estou muito feliz com a oportunidade de fazer a palestra final deste congresso, após quatro dias de trabalho intenso e produtivo, num ambiente de grande cordialidade. Foram dias muito proveitosos para todos nós. É importante lembrar que quando mencionei pela primeira vez, no Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemática da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, coordenado pela Prof. Maria do Carmo Domite, que seria interessante realizarmos um congresso brasileiro de etnomatemática, a sugestão foi imediatamente aceita pelo grupo, que assumiu a organização do evento. O Primeiro Congresso Brasileiro de Etnomatemática/CBEm1 tornou-se um fato.
Devo confessar que tenho organizado vários congressos, mas esta é a primeira vez que, como organizador, não organizei coisa alguma. O grupo me informava de como iam as coisas e, sob a liderança da Maria do Carmo, a estrutura do congresso foi tomando corpo. Pequenina de estatura, a Maria do Carmo revelou-se uma gigante na capacidade de liderar a organização de um evento do porte deste CBEm1. O grupo de colaboradores nesse trabalho, distribuindo e assumindo tarefas, revelou-se uma equipe de primeira. Difícil mencionar um a um. Mas todos aqueles que estão aqui presentes e aqueles que acompanharam as fases preparatórias e agora a realização do congresso podem facilmente identifica-los. A todos parabenizo pelo grande desempenho. O apoio decisivo da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e a parceria com a Sociedade Brasileira de Educação Matemática/SBEM e várias outras formas de apoio e de colaboração tornaram possível este evento, trazendo representantes de praticamente todo o país, e com uma significativa participação internacional. É gratificante ver tanta gente aqui reunida, alguns vindo de muito longe, apresentando trabalhos de incontestável valor acadêmico e de grande relevância para a educação brasileira.
Etnomatemática é um programa de pesquisa em história e filosofia da matemática, com óbvias implicações  pedagógicas. Nesses quatro dias ouvimos excelentes projetos e resultados de pesquisas sobre etnomatemática. Nesta palestra final vou tecer algumas considerações de caráter geral que, acredito, são importantes para a etnomatmática, para a própria matemática e para a educação em geral.
Não posso deixar de lembrar a todos vocês que a prioridade maior para a humanidade é alcançar a paz. Não sem razão, a Organização das Nações Unidos deciciu proclamar 2000 ANO INTERNACIONAL DA CULTURA DE PAZ. Também, a União Matemática Internacional proclamou 2000 Ano International da Matemática. Sem paz não haverá sobrevivência da humanidade...e não haverá mais matemática! Como esses dois grandes propósitos se coordenam se atingir paz para a humanidade?
Examinando a insegurança total e o deplorável estado atual da humanidade, testemunhamos, pela nossa própria experiência ou pelo que observamos na mídia, violações freqüentes da paz, em todas as suas dimensões [militar, ambiental, social, interior], todas possíveis somente pela utilização, perversa, de instrumentos tecnológicos e científicos que puderam ser desenvolvidas graças à existência do instrumental matemático. É inegável que, como matemáticos e educadores matemáticos, não podemos ser responsabilizados pelo mau uso que se faz desse instrumental. Mas, sim, temos responsabilidade na formação integral dos nossos alunos. É natural, portanto, nos perguntarmos “onde foi que erramos?”, “por que persistimos no erro?”. Somos levados a concluir que fomos capazes de transmitir bons conhecimentos, mas fomos incapazes de transmitir valores e uma ética maior.
Façamos uma reflexão sobre a origem das idéias matemáticas. Como surge a matemática? A matemática, como o conhecimento em geral, é resposta aos pulsões de sobrevivência e de transcendência, que sintetizam a questão existencial da espécie humana. A espécie cria teorias e práticas que resolvem a questão existencial. Essas teorias e práticas são a base de elaboração de conhecimento e decisões de comportamento, a partir de representações da realidade. As representações respondem à percepção de espaço e tempo. A virtualidade dessas representações, que se manifesta na elaboração de modelos, distingue a espécie humana das demais espécies animais.
Em todas as espécies vivas, a questão da sobrevivência é resolvida por comportamentos de resposta imediata, aqui e agora, elaborada sobre o real e recorrendo a experiências prévias [conhecimento] do indivíduo e da espécie [incorporada no código genético]. O comportamento se baseia em conhecimentos e ao mesmo tempo produz novo conhecimento. Essa simbiose de comportamento e conhecimento é o que denominamos instinto, que resolve a questão da sobrevivência do indivíduo e da espécie.
Na espécie humana, a questão da sobrevivência é acompanhada pela da transcendência: o “aqui e agora” é ampliado para o “onde e quando”. A espécie humana transcende espaço e tempo para além do imediato e do sensível. O presente se prolonga para o passado e o futuro, e o sensível se amplia para o remoto. O ser humano age em função de sua capacidade sensorial, que responde ao material [artefatos], e de sua imaginação, muitas vezes chamada criatividade, que responde ao abstrato [mentefatos].
A realidade material é o acúmulo de fatos e fenômenos acumulados desde o princípio. O que é o princípio, em espaço e tempo, é a questão maior de todos os sistemas religiosos, filosóficos e científicos.
A realidade percebida por cada indivíduo da espécie humana é a realidade natural, acrescida da totalidade de artefatos e de mentefatos [experiências e pensares], acumulados por ele e pela espécie [cultura]. Essa realidade, através de mecanismos genéticos, sensoriais e de memória [conhecimento], informa cada indivíduo. Cada indivíduo processa essa informação, que define sua ação, resultando no seu comportamento e na geração de mais conhecimento. O acúmulo de conhecimentos compartilhados pelos indivíduos de um grupo tem como conseqüência compatibilizar o comportamento desses indivíduos e, acumulados, esses conhecimentos compartilhados e comportamentos compatibilizados constituem a cultura do grupo.
Vivemos no momento o apogeu da ciência moderna, que é um sistema de conhecimento que se originou na bacia do Mediterrâneo, há cerca de 3.000 anos, e que se impôs a todo o planeta. Essa rápida evolução é um período pequeno em toda a história da humanidade e não há qualquer indicação que será permanente. O que virá depois? Sem dúvida, como sempre aconteceu com outros sistemas de conhecimento, a própria ciência moderna vai desenvolvendo os instrumentos intelectuais para sua crítica e para a incorporação de elementos de outros sistemas de conhecimento.
Esses instrumentos intelectuais dependem fortemente de uma interpretação histórica dos conhecimentos de egípcios, babilônicos, judeus, gregos e romanos, que estão nas origens do conhecimento moderno.
Nota-se, no decorrer de quase 3 milênios, transições entre o qualitativo e o quantitativo na análise de fatos e fenômenos. O que poderíamos chamar o raciocínio quantitativo dos babilônicos deu lugar a um raciocínio qualitativo, característico dos gregos, que prevaleceu durante toda a Idade Média. A modernidade se deu com a incorporação do raciocínio quantitativo, possível graças à aritmética [ticas(=arte) dos números] feita com algarismos indo-arábicos e posteriormente as extensões de Simon Stevin [decimais] e de de John Neper [logaritmos], culminando com os computadores. Nessa evolução foi privilegiado o raciocínio quantitativo, que pode ser considerado a essência da modernidade. Mais recentemente vemos uma busca intensa de raciocínio qualitativo, particularmente através da inteligência artificial, o que está em sintonia com a intensificação do interesse pelas etnomatemáticas, cujo caráter qualitativo é fortemente predominante.
Um outro aspecto a ser notado na evolução do pensamento ocidental é a subordinação de um pensamento global, como era predominante nas culturas nas margens ao sul do Mediterrâneo, pelo pensamento seqüencial, que se tornou uma característica da filosofia grega. Isso vem culminar no pensamento de René Descartes, cujo resultado é a organização disciplinar, que prevaleceu sobre as propostas holísticas de Jan Comenius.
Estamos vivendo agora um momento próximo à efervescência intelectual da Idade Média. Justifica-se, portanto, falar em um novo renascimento. Etnomatemática é um dos indicadores desse novo renascimento.

É importante notar que a aceitação e incorporação de outras maneiras de analisar e explicar fatos e fenômenos, como é o caso das etnomatemáticas, se dá sempre em paralelo com outras manifestações da cultura. Isso é evidente nas duas tentativas de introdução na Europa do sistema indo-arábico na Europa, pelo Papa Sivestre II, no século XI e por Leonardo de Pisa, no século XIII. Para o modelo econômico e a tecnologia que prevaleciam no século XI, o novo sistema ensinado por Silvestre II pouco acrescentava. Para o mercantilismo que começava a se desenvolver no século XIII, bem como para os avanços da ciência experimental da Baixa Idade Média, a aritmética apreendida dos árabes era essencial. Esse paralelo entre as idéias matemáticas e o modelo econômico foi reconhecido por Frei Vicente do Salvador ao comentar sobre a aritmética dos indígenas brasileiros. Contavam pelos dedos das mãos e, se necessário, dos pés. E o historiador explica que com isso satisfaziam perfeitamente todas as necessidades de seu cotidiano [de sobrevivência] e de seus sistemas de explicações [de transcendência]. Não conheciam outros sistemas por que não havia razão para tal. Hoje, querem calculadoras por que são essenciais para suas relações comerciais.
Os recentes resultados de testes, provas e provões, mostram que o ensino da matemática vai mal. Os rendimentos estão cada vez piores, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Será isso um indicador de menor criatividade dos jovens de hoje ou de irresponsabilidade, como pretendem muitos analistas da juventude? Não vejo assim. Acredito que esses resultados considerados negativos traduzem uma forma inconsciente de manifestar sua descrença num futuro que, ao que tudo indica, dará continuidade ao presente. Essa forma de se manifestar, que alcançou proporções dramáticas em 1968, hoje se dá de outra forma, um tipo de niilismo, com recurso a drogas, violências e protestos como esse que se manifesta nas provas.
Será impossível entendermos o comportamento da juventude de hoje e, portanto, avaliarmos o estado da educação, sem recorrermos a uma análise do momento cultural que os jovens estão vivendo. Isso nos leva a examinar o que se passa com a disciplina central nos currículos, que é a matemática. Não apenas da própria disciplina, o que leva a reflexões, necessariamente, interculturais sobre história e filosofia da matemática, mas, igualmente necessário, sobre como a matemática se situa hoje na experiência, individual e coletiva, de cada indivíduo.
Do ponto de vista acadêmico, muitas idéias novas foram apresentadas neste congresso e todos aprendemos muito. Não se faz etnomatemática sem a oportunidade de aprender o que outros fazem. Alguém que trabalhou no Xingu, quase toda a sua vida, vem trocar idéias com alguém que mergulhou na cultura tradicional da China. E despertam o interesse daquele que teve uma formação matemática acadêmica, sem outra preocupação que assimilar bem o conteúdo dos programas das várias disciplinas do curso de matemática. O principal na etnomatemática é justamente ter essa visão cultural da humanidade como um todo, que resulta do intercâmbio de idéias entre indivíduos com experiências as mais diversas.
Mais do que em qualquer outra área do conhecimento, esse encontro é fundamental na etnomatemática. Apreendemos muito a partir de outros, a partir do que os outros fazem, do que  outros viram e interpretaram. Seria impossível atingir, sozinho, o corpo de conhecimentos que caracteriza um “etno”. Na ciência ocidental, pretende-se um conhecimento universal, descontextualizado. Na etnomatemática a contextualização é fundamental.
As idéias matemáticas, particularmente comparar, classificar, quantificar, explicar, generalizar e, de algum modo, avaliar, são formas de pensar presentes em toda a espécie humana. A atenção dos cientistas da cognição tem sido crescentemente dirigida a essa característica da espécie. A nova ciência da cognição vem recebendo grande contribuição de neurologistas e o surgimento do pensamento matemático na espécie e em indivíduos têm sido objeto de intensa pesquisa. O cérebro já está bem conhecido. Sabemos muito sobre a massa craniana. Pretendeu-se até privilegiar lóbulos cranianos para ações específicas! Mas onde está a capacidade de preferir uma cor sobre outra, a razão por que um cheiro desperta emoções. Entre mente e cérebro há uma diferença fundamental. Hoje as atenções estão voltadas para estudos da mente, ou estudos da consciência. Essa área de pesquisa é chamada por muitos a última fronteira da ciência. O que é pensar? O que é consciência? Os estudos da mente ou estudos da consciência, comuns entre neurologistas, inclusive neurocirurgiões, vêm atraindo crescente interesse de matemáticos e físicos teóricos.
Claro, para se conhecer humanos é importante conhecer aqueles seres vivos que têm alguma similaridade com os humanos. Os primatas, que têm cerca de 98% idêntico aos humanos, têm sido objeto de muita pesquisa. Igualmente importante é criar aparelhos automatizados e modelos que, ao menos parcialmente, executem funções próximas àquelas desempenhadas pelos humanos. É o campo da robótica e da inteligência artificial.
Nota-se nos primatas a emergência de um pensamento de natureza matemática, privilegiando o quantitativo. E sem dúvida, as calculadoras e os computadores têm se mostrado muito eficientes no tratamento quantitativo.
Mas voltemos à nossa espécie, onde as idéias de comparar, classificar, quantificar, explicar, generalizar e, de algum modo, avaliar, aparecem como características.
A espécie homo sapiens sapiens é nova. É identificada há cerca de 40 mil anos. As espécies que a precederam, os australopitecos, surgiram onde hoje é Tanzânia há cerca de 5 milhões de anos e se espalharam por todo planeta. Nessa expansão as espécies vão se transformando, sob influência de clima, alimentação e vários outros fatores, e vão desenvolvendo técnicas e habilidades que permitem sua sobrevivência nas regiões novas que vão encontrando. Ao se deparar com situações novas, reunimos experiências de situações anteriores, adaptando-as às novas circunstâncias e assim incorporando à memória novos fazeres e saberes. As maneiras e modos de lidar com as situações vão sendo compartilhadas, graças a um elaborado sistema de comunicação, e transmitidas, difundidas. Embora o conhecimento seja gerado individualmente, a partir de informações recebidas da realidade, no encontro com  o outro se dá o fenômeno da comunicação, talvez a característica que mais distingue a espécie humana das demais espécies. Via comunicação, as informações captadas por um indivíduo são enriquecidas pelas informações captadas pelo outro. O conhecimento gerado pelo indivíduo, que é resultado do processamento da totalidade das informações disponíveis, é, também via comunicação, compartilhado, ao menos parcialmente, com o outro. Isso se estende, obviamente, a outros e ao grupo. Assim, desenvolve-se o conhecimento compartilhado pelo grupo. O comportamento de cada indivíduo, associado ao seu conhecimento, é, conseqüentemente, modificado pela presença do outro, em grande parte pelo conhecimento das conseqüências para o outro. Isso é recíproco e, assim, o comportamento de um indivíduo é compatibilizado com o comportamento do outro. Obviamente, isso se estende a outros e ao grupo. Assim, desenvolve-se o comportamento compatibilizado do grupo.
Cultura é o conjunto de conhecimentos compartilhados e comportamentos compatibilizados.
Temos evidência de uma espécie, um tipo de australopiteco, que viveu há cerca de 2,5 milhões de anos e utilizou instrumentos de pedra lascada para descarnar animais. É fácil entender que ao se alimentar de um animal abatido, a existência de um instrumento, como uma pedra lascada, permite raspar o osso, e assim não só aproveitar todos os pedacinhos, mas também retirar dos ossos nutrientes que não seriam acessíveis ao comer só com os dentes. A espécie passou a ter mais alimento, de maior valor nutritivo. Esse parece ter sido um fator decisivo no aprimoramento do cérebro das espécies que dominaram essa tecnologia.
O que tem isso a ver com etnomatemática?
Na hora em que esse australopiteco escolheu e lascou um pedaço de pedra, com o objetivo de descarnar um osso, a sua mente matemática se revelou. Para selecionar a pedra é necessário avaliar suas dimensões, e lasca-la o necessário e o suficiente para cumprir os objetivos a que ela se destina, exige avaliar e comparar dimensões. Mas avaliar e comparar dimensões é uma das manifestações mais elementares do pensamento matemático. Esse é um primeiro exemplo de como o homem desenvolve os instrumentos materiais e intelectuais para lidar com o seu ambiente. Um primeiro exemplo de etnomatemática é aquela desenvolvida pelos autralopitecos do neolítico.
O homem busca explicações para tudo isso e, naturalmente, associa essas explicações ao que vê mas não entende: clima, dia e noite, astros no céu. O que está acontecendo, o que se percebe e se sente a todo instante, podem ser indicadores do que vai acontecer. Esse é o mistério. Buscar explicações para o mistério que relaciona causas e efeitos é um importante passo na evolução das espécies homo. Sistemas de explicações para as causas primeiras são organizados [mitos de criação]. A morte, tão evidente, talvez não seja um fim, mas o encontro com as causas primeiras. O que acontece após a morte? Ocorre uma pergunta ainda mais prática: o que vai se passar no momento seguinte? Quais as conseqüências do que estou vendo agora? Do que estou fazendo agora? Só o responsável pelas causas primeiras [um divino] poderia conhecer o mistério do que vai se passar. Como perguntar ao divino o que vai acontecer? Através de técnicas de “consulta” ao divino. Essas técnicas são as chamadas artes divinatórias. Como influenciar o divino para que aconteça o desejável, o necessário, o agradável? Através de culto, sacrifício, magia.

As religiões são sistemas de conhecimento que permitem mergulhar no passado, explicando as causas primeiras, desenvolvendo um sentido de história e organizando tradições, e influenciar o futuro. O conhecimento das tradições é compartilhado pelo um grupo. Continuar a pertencer ao grupo após a morte depende de assumir, em vida, o comportamento que responda ao conhecimento compartilhado. Esse comportamento,  compatível e aceito pelo grupo, é subordinado a parâmetros, que chamamos valores.
Uma das coisas mais importantes no nosso relacionamento com o meio ambiente é a obtenção de nutrição e de proteção das intempéries. Conhecendo o meio ambiente, temos condições de fazer com que a capacidade de proteger e nutrir dependa menos de fatores como o tempo. Ao dominar técnicas de agricultura e de pastoreio e de construções, os homens puderam permanecer num mesmo local, nascer e morrer no mesmo local. Perceberam o tempo necessário para a germinação e para a gestação, o tempo que decorre do plantio à colheita. Num certo momento, uma configuração no céu coincide com plantinhas que começam a brotar. É uma mensagem divina. Aprende-se a interpretar essas mensagens, que geralmente são traduzidas em períodos característicos do que chamamos as estações do ano.
A inseminação foi mais difícil de ser percebida, mas o tempo que vai da gestação ao nascimento é mais facilmente reconhecido. A regularidade do ciclo menstrual e o relacionamento de sua interrupção com a gestação são logo reconhecidos. O reconhecimento e registro do ciclo menstrual, associado às fases da Lua, parece ter sido uma das primeiras formas de etnomatemática.
A agricultura teve grande influência na história das idéias dos povos da bacia do Mediterrâneo. As teorias que permitem saber quais os momentos adequados para o plantio surgem subordinadas às tradições. Chamar essas estações e festejar a sua chegada, como um apelo e posterior agradecimento ao responsável pela regularidade, um divino, marcam os primeiros momentos de culto e de religião. A associação de religião com astronomia, com a agricultura e com a fertilidade é óbvia.
A matemática começa a se organizar como um instrumento de análise das condições do céu e das necessidades do cotidiano. Eu poderia continuar descrevendo como, aqui e ali, em todos os rincões do planeta e em todos os tempos, foram se desenvolvendo idéias matemáticas, importantes na criação de sistemas de conhecimento e, conseqüentemente, comportamentos, necessários para lidar com o ambiente, para sobreviver, e para explicar o visível e o invisível.
A cultura, que é o conjunto de comportamentos compatibilizados e de conhecimentos compartilhados, inclui valores. Numa mesma cultura, os indivíduos dão as mesmas explicações e utilizam os mesmos instrumentos materiais e intelectuais no seu dia-a-dia. O conjunto desses instrumentos se manifesta nas maneiras, nos modos, nas habilidades, nas artes, nas técnicas, nas ticas  de lidar com o ambiente, de entender e explicar fatos e fenômenos, de ensinar e compartilhar tudo isso, que é o matema próprio ao grupo, à comunidade, ao etno. O conjunto de ticas de matema num determinado etno é o que chamo etnomatemática.

Claro, em ambientes diferentes, as etnomatemáticas são diferentes. Os esquimós no Círculo Polar Ártico quando estão procurando se nutrir, não podem pensar em plantar e, portanto, não desenvolveram agricultura. Mas se dedicaram à pesca. Eles têm que saber qual a boa hora de pescar. Devem pescar muito, talvez todo o dia. Mas o dia [claro] dura seis meses e a noite [escura] seis meses. Portanto, sua percepção dos céus e das forças que influenciam seu dia-a-dia é muito distinta daqueles que tem seu cotidiano na região do Mediterrâneo ou na faixa equatorial. Sua Astronomia e sua Religião são distintas daquelas que surgiram na região do Mediterrâneo ou na faixa equatorial, bem como as maneiras de lidar com seu cotidiano. Sua etnomatemática é diferente.
Uma das coisas principais que aparece no início do pensamento matemático são as maneiras de contar o tempo. Na História da Matemática [e agora falo da matemática acadêmica], que tem sua origem na Grécia, os grandes nomes são ligados à Astronomia. A Geometria, na sua origem e no próprio nome, está relacionada com as medições de terreno. Como nos conta Heródoto, a geometria foi apreendida dos egípcios, onde era mais que uma simples medição de terreno, tendo tudo a ver com o sistema de taxação de áreas produtivas. Por trás desse desenvolvimento, vemos todo um sistema de produção e uma estrutura econômica, social e política, exigindo medições da terra e, ao mesmo tempo, aritmética para lidar com a economia e com a contagem dos tempos.
Enquanto esse sistema de conhecimento se desenvolvia, há mais de 2.500 anos, nas civilizações em torno do Mediterrâneo, os indígenas aqui da Amazônia estavam também tentando conhecer e lidar com o seu ambiente, desenvolvendo sistemas de produção e sistemas sociais, que igualmente necessitavam medições de espaço e de tempo. Igualmente os esquimós, as civilizações andinas, e aquelas da China, da Índia, da África sub-Sahara, enfim de todo o planeta. Todas estavam desenvolvendo suas maneiras de conhecer.
Conhecer o que? Sistema de conhecimento do que? Sistema de conhecimento que permitem a sobrevivência, mas que igualmente respondem a questões fundamentais, tais como: de onde eu vim? para onde eu vou? qual é o meu passado e o passado da minha gente? qual é o futuro meu e da minha gente? como ir além do momento atual, mergulhar nos meus questionamentos e objetivos, no passado e no futuro? como transcender o aqui e agora?
Sistema de conhecimento é o conjunto de respostas que um grupo dá aos pulsões de sobrevivência e de transcendência, inerentes à espécie humana. São os fazeres e os saberes de uma cultura.
Há cerca de 2.500 anos surge uma alternância de poder na região do Mediterrâneo. Egípcios e babilônicos alternam sua hegemonia, subordinando seu conhecimento e comportamento a um amplo politeísmo. São desafiados pela grande inovação, proposta pelos judeus, de um deus único e abstrato. Os gregos e, logo a seguir, os romanos, igualmente politeístas, expandem o domínio do Mediterrâneo para o leste, conquistando civilizações milenares, como as da Pérsia e da Índia, e para o norte europeu, conquistando os povos bárbaros. Grécia e Roma impõem seus sistemas de conhecimento e sua organização social e política. Com a adoção do monoteísmo cristão, Roma impõe sua ciência, tecnologia, filosofia, política e religião à grande parte da Eurásia acima do Trópico de Câncer.
O Império Romano, impondo suas maneiras de responder aos pulsões de sobrevivência e de transcendência, mostrou-se eficiente no encontro com outras culturas, tendo sucesso na conquista e na expansão. O apogeu desse sucesso se dá na transição do século XV para o século XVI. Em cerca de 25 anos, navegadores de Espanha e de Portugal circunavegaram o globo. Foram logo acompanhados por outras nações européias e, através dos mares, foram para o Norte, Sul, Leste, Oeste, para todos os lados, conquistando povos e levando as explicações e modos de lidar com o ambiente, modos e estilos de produção e de poder. Iniciou-se o processo de globalização do planeta.
Claro que ao falar em conquista estamos admitindo um conquistador e um conquistado. O conquistador não pode deixar o conquistado se manifestar. A estratégia fundamental no processo de conquista, de um indivíduo, grupo ou cultura [dominador] é manter o outro indivíduo, grupo ou cultura [dominado] inferiorizado. Uma forma, muito eficaz, de manter um indivíduo, grupo ou cultura inferiorizado é enfraquecer as raízes que dão força à cultura, removendo os vínculos históricos e a historicidade do dominado. Essa é a estratégia mais eficiente para efetivar a conquista.
A remoção da historicidade implica na remoção da língua, da produção, da religião, da autoridade, do reconhecimento da terra e da natureza e dos sistemas de explicação em geral. Por exemplo, hoje qualquer índio sabe o Pai Nosso e crê em Deus e em Cristo, embora todo esse sistema tenha nada a ver com suas tradições. Ao remover o sistema de produção, o dominado passa a comer e a gostar do que o dominador come. Os sistemas de sobrevivência e de transcendência são substituídos. Os sistemas dos conquistados foram simplesmente eliminados e, em alguns casos, o próprio indivíduo conquistado foi eliminado, numa evidente prática de genocídio.
Durante cerca de 300 anos criou-se a figura do culturalmente excluído. Não só a cultura foi eliminada, mas também indivíduos dessa cultura, como aconteceu com os indígenas na costa Atlântica das Américas e no Caribe, foram exterminados. Em poucos casos, alguns indivíduos sobreviveram. Ou foram cooptados e assimilados à cultura do dominador ou se mantiveram como grupos culturais marginalizados e excluídos. Uma cultura latente, muitas vezes disfarçada ou clandestina, se manteve nessa clandestinidade durante o período da colonização.
Nas escolas ocorre uma situação semelhante. A escola ampliou-se, acolhendo jovens do povo, aos quais se oferece a possibilidade de acesso social. Mas esse acesso se dá em função de resultados, que são uma modalidade de cooptação. Sistemas adequados para a seleção dos que vão merecer acesso são criados e justificados por convenientes teorias de comportamento e de aprendizagem. Um instrumento seletivo de grande importância é a linguagem. O latim foi padrão, depois substituído pela norma culta da linguagem. Mas não só a linguagem. Logo a matemática assumiu o papel de instrumento de seleção. Ainda hoje, quanta  criança se inibe ao falar porque sabe que fala errado e, como não é capaz de falar certo, silencia. E quanta criança ainda é punida por fazer contas com os dedos!
Como explicar o que se passa com povos, comunidades e indivíduos no encontro com o diferente? Cada indivíduo carrega consigo raízes culturais, que vem de sua casa, desde que nasce. Aprende dos pais, dos amigos, da vizinhança, da comunidade. O indivíduo passa alguns anos adquirindo essas raízes. Ao chegar à escola, normalmente existe um processo de aprimorar, transformar e substituir essas raízes. É o que se passa no processo de conversão religiosa. O momento de encontro cultural tem uma dinâmica muito complexa. Esse encontro se dá entre povos, como se passou na conquista e na colonização, entre grupos e, igualmente, no encontro da criança ou do jovem, que tem suas raízes culturais, com a outra cultura, a cultura da escola, com a qual o professor se identifica. O processo civilizatório, e podemos dizer o mesmo do processo escolar, é essencialmente a condução dessa dinâmica. Geralmente tem resultados negativos e perversos, que se manifestam sobretudo no exercício de poder e na eliminação ou exclusão do dominado. Poderia também ter resultados positivos e criativos, que se manifestam na criação do novo.
Tanto a conversão quanto a exclusão depende do indivíduo esquecer e mesmo rejeitar suas raízes. Mas um indivíduo sem raízes é como uma árvore sem raízes ou uma casa sem alicerces. Cai no primeiro vento! Indivíduos sem raízes sólidas estão fragilizados, não resistem a assédios. O indivíduo tem que ter um referencial e esse referencial se situa nas suas raízes, não nas raízes de outros. Se não tiver raízes, ao cair se agarra a outro e entra num processo de dependência, campo fértil para a manifestação perversa de poder de um indivíduo sobre outro. Estamos assistindo esse processo nos sistemas escolares e na sociedade. É o poder dos que sabem mais, dos que têm mais, dos que podem mais. O poder do dominador se alimenta do quê? Esse poder só pode ter continuidade se tiver alguém que dependa dele, que se agarre a ele. E quem vai se agarrar a ele? Com toda certeza aqueles que não tem raízes.
Essa foi a eficiente estratégia adotada pelo colonizador. Eliminar a historicidade do conquistado, isto é, eliminar suas raízes. O processo de descolonização, que se manifesta na adoção de uma bandeira, um hino, uma constituição, é incompleto se não reconhecer as raízes culturais do colonizado.
A etnomatemática se encaixa nessa reflexão sobre a descolonização e a verdadeira abertura de possibilidades de acesso para o subordinado, para o marginalizado e para o excluído. A estratégia mais promissora para a educação nas sociedades em transição da subordinação para a autonomia é restaurar a dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e respeitando suas raízes. Essa é, no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemática.
Reconhecer e respeitar as raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do outro, mas num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes.
No caso da educação matemática, a proposta da etnomatemática não significa a rejeição da matemática acadêmica, como sugere o título tão infeliz que o jornal Chronicle of Higher Education deu para uma excelente matéria que publicou sobre etnomatemática: “Good Bye, Pythagoras”. Não se trata de ignorar nem rejeitar a matemática acadêmica, simbolizada por Pitágoras. Por circunstâncias históricas, gostemos ou não, os povos que, a partir do século XVI, conquistaram e colonizaram todo o planeta, tiveram sucesso graças ao conhecimento e comportamento que se apoiava em Pitágoras e seus companheiros da bacia do Mediterrâneo. Hoje, é esse conhecimento e comportamento, incorporados na modernidade, que conduz nosso dia-a-dia. Não se trata de ignorar nem rejeitar conhecimento e comportamento modernos. Mas sim aprimora-los, incorporando a ele valores de humanidade, sintetizados numa ética de respeito, solidariedade e cooperação.
Conhecer e assimilar a cultura do dominador se torna positivo desde que as raízes do dominado sejam fortes. Na educação matemática, a etnomatemática pode fortalecer essas raízes. De um ponto de vista utilitário, que não deixa de ser muito importante como uma das metas da escola, é um grande equívoco pensar que a etnomatemática pode substituir uma boa matemática acadêmica, que é essencial para um indivíduo ser atuante no mundo moderno. A etnomatemática terá utilidade muito limitada na sociedade moderna. Mas, igualmente, muito da matemática acadêmica é absolutamente inútil na sociedade moderna. Quando digo boa matemática acadêmica estou excluindo o que é desinteressante, obsoleto e inútil, que, infelizmente, domina os programas vigentes.
É óbvio que uma boa matemática acadêmica será conseguida se deixarmos de lado muito do que está nos programas sem outra justificativa que um conservadorismo danoso e uma justificativa de caráter propedêutico: “é necessário aprender isso para adquirir base para poder aprender aquilo.” O fato é que o “aquilo” deve cair fora e, com maior razão, o “isso”.
Por exemplo, é inadmissível pensar hoje em aritmética e álgebra sem a plena utilização de calculadoras. O raciocínio quantitativo, que dominou a educação matemática e a própria matemática a partir da Baixa Idade Média, está hoje integrado nas calculadoras e computadores. O raciocínio qualitativo é a grande contribuição para ramos da matemática que se desenvolveram na segunda metade do século XX, tais como estatística, probabilidades, programação, modelagem, fuzzies e fractais.
O raciocínio qualitativo, também chamado analítico, esboçado a partir do século XVII, deve ser incorporada aos programas, naturalmente com ampla utilização de computadores. Esse tipo de raciocínio é essencial para se chegar a uma nova organização da sociedade e é o que permite exercer crítica e análise do mundo em que vivemos.
A etnomatemática privilegia o raciocínio qualitativo. Um enfoque etnomatemático sempre está ligado a uma questão maior, de natureza ambiental ou de produção, e a etnomatemática raramente se apresenta desvinculada de outras manifestações culturais, tais como arte e religião. A etnomatemática se enquadra perfeitamente numa concepção multicultural e holística de educação.
O multiculturalismo está se tornando a característica mais marcante da educação atual. Com a grande mobilidade de pessoas e famílias, as relações interculturais serão muito intensas. O encontro intercultural gera conflitos que só poderão ser resolvidos a partir de uma ética que resulta do indivíduo conhecer-se e conhecer a sua cultura e respeitar a cultura do outro. O respeito virá do conhecimento. De outra maneira, o comportamento revelará arrogância, superioridade e prepotência, o que resulta, inevitavelmente, em confronto e violência.
Nossa missão de educadores tem como prioridade absoluta obter PAZ nas gerações seguintes. Não podemos nos esquecer que as gerações futuras viverão num ambiente multicultural, suas relações serão interculturais e seu dia-a-dia será impregnado de tecnologia. Talvez convivam humanos com indivíduos clonados e transgênicos e mesmo com andróides. Um cenário de ficção, como se vê nos filmes “Caçador de Andróides”  e  “Matrix”, pode se tornar realidade. Não sabemos como lidar com isso.
As gerações futuras é que vão organizar o mundo do futuro. Não sabemos o que fazer num futuro tão diferente. A maneira como as gerações passadas lidaram com o futuro, ancorada em todo o conhecimento oferecido pela modernidade, deu o nosso presente. Um presente angustiante, de iniqüidades, injustiças, arrogância, exclusão, destruição ambiental, conflitos inter e intraculturais, guerras. Não é isso que quero legar para meus bisnetos e tataranetos e gerações futuras. Como podemos dizer a eles como devem construir seu mundo de paz e de felicidade?
O futuro será construído por eles. O que podemos oferecer a eles para construir um futuro sem os males do presente? Como educadores, podemos oferecer às crianças de hoje, que constituem a geração que em vinte ou trinta anos estará em posição de decisão, uma visão crítica do presente e os instrumentos intelectuais e materiais que dispomos para essa crítica. Estamos vivendo uma profunda transição, com maior intensidade que em qualquer outro período da história, na comunicação, nos modelos econômicos e sistemas de produção, e nos sistemas de governança e tomada de decisões.
A educação nessa transição não pode focalizar a mera transmissão de conteúdos obsoletos, na sua maioria desinteressantes e inúteis no momento atual, e inconseqüentes na construção de uma nova sociedade. O mais que podemos fazer para as nossas crianças é oferecer a elas os instrumentos comunicativos, analíticos e materiais para que elas possam viver, com capacidade de crítica, numa sociedade multicultural e impregnada de tecnologia.
Vejo aí a nossa grande missão como educadores. E como educadores matemáticos, temos que estar em sintonia com a grande missão de educador. Está pelo menos equivocado o educador matemático que não percebe que há muito mais na sua missão de educador do que ensinar a fazer continhas ou a resolver equações e problemas absolutamente artificiais, mesmo que, muitas vezes, com a aparência de estar se referindo a fatos reais.
A proposta pedagógica da etnomatemática é fazer da matemática algo vivo, lidando com situações reais no tempo [agora] e no espaço [aqui]. E através da crítica, questionar o aqui e agora. Ao fazer isso, mergulhamos nas raízes culturais e praticamos dinâmica cultural.

Por tudo isso, eu vejo a etnomatemática como um caminho para uma educação renovada, capaz de preparar gerações futuras para construir uma civilização mais feliz.

Muito obrigado.