Prefácio
Ubiratan D'Ambrosio

 
 

A ciência moderna surgiu, praticamente, na mesma época que as grandes navegações, que a conquista e a colonização. Logo se impôs como uma forma de conhecimento racional, originado das culturas mediterrâneas, que se tornou o substrato da eficiente e fascinante tecnologia moderna. A ciência moderna tem a matemática como base.

É importante lembrar que praticamente todos os países, inclusive o Brasil, subscreveram, em 16 de dezembro de 1993, a Declaração de Nova Delhi, que é explícita ao reconhecer, no seu item 2.2, que "a educação é o instrumento preeminente da promoção dos valores humanos universais, da qualidade dos recursos humanos e do respeito pela diversidade cultural" e, no item 2.4, que "os conteúdos e métodos de educação precisam ser desenvolvidos para servir às necessidades básicas de aprendizagem dos indivíduos e das sociedades, proporcionando-lhes o poder de enfrentar seus problemas mais urgentes ­ combate à pobreza, aumento da produtividade, melhora das condições de vida e proteção ao meio ambiente ­ e permitindo que assumam seu papel por direito na construção de sociedades democráticas e no enriquecimento de sua herança cultural".

Nada poderia ser mais claro nesta declaração que o reconhecimento da subordinação dos conteúdos programáticos à diversidade cultural e às prioridades sociais. O reconhecimento de uma variedade de estilos de aprendizagem está implícito no apelo ao desenvolvimento de novas metodologias. Essas considerações sugerem maior flexibilidade, tanto na seleção de conteúdos quanto na metodologia, para o ensino da matemática.

O Programa Etnomatemática, que antecede a Declaração de Nova Delhi, é uma resposta às suas propostas. Diferentemente do que sugere o nome, Etnomatemática não é apenas o estudo de "matemáticas das diversas etnias", mas principalmente o esforço para colocar a matemática no seu contexto histórico, cultural e social, procurando entender a evolução irreversível dos sistemas culturais na história da humanidade. A contextualização é essencial não só para qualquer programa de educação de populações nativas, de populações da periferia dos centros urbanos, das populações marginalizadas, mas igualmente necessária para as populações dos setores dominantes, para que seu comportamento, quando em funções de decisão e direção, tenha como objetivo maior atingir uma sociedade com equidade e justiça social.

Isso será atingido a partir de uma educação que estimule o desenvolvimento de criatividade desinibida, conduzindo a novas formas de relações interculturais. Essas relações proporcionam o espaço adequado para preservar a diversidade e eliminar a desigualdade, dando origem a uma nova organização da sociedade.

Uma nova sociedade depende do reconhecimento que o indivíduo é um todo integral e integrado e que suas práticas cognitivas e organizativas não são desvinculadas do contexto histórico no qual o processo se dá, contexto esse em permanente evolução. Isto é evidente na dinâmica que prevalece na educação para todos e na educação multicultural.

A educação formal, baseada na mera transmissão de explicações e teorias (ensino teórico e aulas expositivas), no adestramento em técnicas e habilidades (ensino prático com exercícios repetitivos), não oferece espaço para que a capacidade cognitiva, própria de cada indivíduo, se manifeste. Há estilos cognitivos que devem ser reconhecidos entre culturas distintas, no contexto intercultural, e também na mesma cultura, num contexto intracultural. A excessiva preocupação com o ensino ofusca a importância da aprendizagem, que é a aquisição da capacidade de explicar, de apreender e compreender, de enfrentar, criticamente, situações novas. Aprender não é o mero domínio de técnicas e de habilidades, e nem a memorização de algumas explicações e teorias, avaliadas com instrumentos equivocados. A proposta da Etnomatemática adota uma nova postura educacional que substitua a já desgastada relação ensino-aprendizagem.

O que poderíamos chamar o movimento da Etnomatemática surgiu há cerca de 15 anos, com a fundação do ISGEm/International Study Group on Ethnomathematics. Muito ativo, o grupo publica um Newsletter bi-anual e realiza congressos e eventos. Desde sua fundação, o ISGEm se reúne anualmente nos Estados Unidos, sendo afiliado ao prestigioso National Council of Teachers of Mathematics. Em 1998 realizou-se, em Granada, Espanha, a Primeira Conferência Internacional de Etnomatemática, tendo as Atas sido publicadas como um CD-ROM, e em 1999 realizou-se, em Santa Cruz de la Sierra, o Primero Congreso Boliviano de Etnomatemática. Em 2002 será realizada em Ouro Preto, MG, a Segunda Conferência Internacional de Etnomatemática.

Foi com grande satisfação que, como Presidente do ISGEm, eu vi a criação, a partir de 1999, de um Grupo de Estudos de Etnomatemática, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob a coordenação do Profª. Maria do Carmo Domite. Alunos e professores de graduação e de pós-graduação da Universidade de São Paulo e de outras instituições se reúnem regularmente para apresentar, discutir, propor e elaborar  importantes projetos de educação matemática, com o enfoque da Etnomatemática. Surgiu naturalmente a idéia de se realizar um Primeiro Congresso Brasileiro de Etnomatemática. A idéia foi muito bem acolhida pela Faculdade de Educação da USP e por outros grupos e organizações, particularmente a SBEM/Sociedade Brasileira de Educação Matemática. Com competência, entusiasmo e muita dedicação, a Profª. Maria do Carmo Domite e sua equipe realizaram o evento, que se revestiu do mais absoluto êxito. Com participantes vindos de todo o Brasil e uma significativa presença internacional, tivemos, durante quatro dias, apresentações de importantes trabalhos de pesquisa e de ação pedagógica, debates e discussões e a proposta de organização de um capítulo brasileiro do ISGEm.

A partir das apresentações no congresso estão sendo publicadas as Atas. Estarão aqui reunidas contribuições a essa nova área de pesquisa em história, filosofia e educação matemática. Será um importante acréscimo a uma crescente literatura sobre Etnomatemática que vem sendo publicada em todo o mundo.