Educação em Química e Multimídia



Comunidades escolares e redes de computadores: aproximando culturas e compartilhando identidades.

Há algum tempo, venho insistindo em discutir a entrada das novas tecnologias da informação e comunicação nas escolas, especialmente pela implantação de redes locais de computadores e seu acesso à rede mundial. Em 1997, (http://quimica.fe.usp.br/giordan/artigos/conec.html), procurei mostrar que uma séria limitação para as escolas terem acesso à rede mundial era o fato de ainda termos poucas opções tecnológicas, cujos custos eram relativamente altos e a largura de banda insuficiente para atender ao fluxo potencial de trocas entre as escolas e as diversas comunidades da rede. Na época, desenhava-se no cenário internacional a possibilidade de acesso rápido à rede por meio da infraestrutura de fibra óptica dos sistemas de TV a cabo. Hoje, essa opção tecnológica já está disponível no Brasil, limitada ainda pelas diferenças de velocidade dos sentidos de envio e recepção de pacotes entre o provedor e o usuário final. Também nesses quase quatro anos, assistimos à entrada dos serviços de telefonia digital, o que repercutiu na disponibilidade de acesso por linha telefônica, não mais discada mas dedicada, com várias faixas de velocidade, ainda que limitada a 2 Mbps. Há disponíveis também opções de conexão por antenas, no entanto sua penetração é pequena, talvez devido ao custo não competitivo frente às outras opções.

O que temos hoje de opção de acesso à rede mundial de computadores no cenário nacional se resume a três opções tecnológicas que oferecem conexão dedicada, o que já difere significativamente dos idos de meados dos anos 90. Não somente as possibilidades de acesso aumentaram e os custos baixaram, mas fundamentalmente, e o que interessa discutir nesse momento, o processo de enculturação da comunicação mediada por redes de computadores (CMC) está sendo consistentemente deflagrado. Por enculturação, entenda-se a aproximação entre culturas diferentes, aquela com origem nos processos de organização, processamento e comunicação da informação próprios dos ambientes informatizados, e aquelas de origem diversificada, reunidas no ambiente escolar. Se quisermos ter uma medida desse processo basta notar a presença de endereços eletrônicos e URLs de páginas pessoais ou institucionais nos cartões de visita, faixas, anúncios de rádio e TV, o que às vezes é motivo de confusão, como por exemplo, a presença de acentos e cedilha nesses endereços. Essa incapacidade de dominar as regras da sintaxe básica dos serviços da rede flagra o processo de enculturação num estágio ainda francamente alfabetizador.

Aqui cabe estabelecer um ponto importante de discussão para aqueles que se propõem a alfabetizar e aqueles interessados em navegar: qual é o motivo de não se poder usar todo o sistema de sinais das línguas latinas ou eslavas nos endereços da rede ? Essa discussão, e note-se não a resposta direta, imediata e irrefletida, é de especial interesse para aqueles que se propõem a trabalhar aspectos da educação plena das comunidades de usuários da rede porque se deve considerar como um forte condicionante do processo de enculturação a tensão que se estabelece entre aspectos técnicos da informática e as relações sociais desencadeadas pelo uso dos agenciamentos da rede.

Se nesse momento, as opções de acesso à rede mundial têm um maior grau de universalidade, pelo menos no que se refere às escolas, é hora de se colocar na pauta a discussão sobre como se dará a implantação das redes locais de computadores nas escolas, pois ao que me ocorre, essa ainda é uma questão em aberto. Não se deve entender que o fato de uma parcela das escolas brasileiras já ter um laboratório de informática se traduza em acesso à rede. Em primeiro lugar, é preciso conectar entre si os computadores do laboratório, das salas dos professores e da administração, o que não se constitui apenas num problema técnico em si, mas deve ser tomado como uma questão estratégica para a educação, pois quando se fala na aproximação entre culturas, como é o caso aqui da cultura escolar e da CMC, muitos condicionantes podem se transformar em determinantes indesejáveis, sobretudo para aquela comunidade desfavorecida no jogo de tensões que se estabelece.

Defendo que a idéia de rede não pode ser unilateralmente imposta nesse processo. É fato que as comunidades escolares, notadamente aquelas ligadas ao poder público, já se deparam com a noção de rede, ainda que do ponto de vista do administrador, cujos objetivos de gestão quase nunca se compatibilizam com as necessidades dessas comunidades. A forma de comunicação entre as escolas e o poder público é o retrato da impropriedade do aplicação do conceito de rede para essas relações. Tal comunicação é francamente unidirecional, apesar dos esforços para torná-la menos assimétrica. No entanto, essa noção ainda está longe de equiparar-se à dinâmica de funcionamento da CMC, onde a multidirecionalidade é a pedra de toque. Na implantação das redes locais de computadores nas escolas, o incentivo ao relacionamento multidirecional entre alunos, professores, quadro administrativo e direção escolar contribui para a criação das competências exigidas no sentido de se estabelecerem relações menos assimétricas com o poder público. A capacidade de diálogo, que é um exemplo dessas competências, só se desenvolve quando os canais de comunicação são desimpedidos e multinodais. A escolha do sistema operacional que servirá de plataforma dessa rede local precisa contemplar essa exigência de multidirecionalidade da comunicação, indicando que os critérios técnicos dessa escolha precisam estar alinhados com as relações sociais que se deseja construir. Portanto, a disponibilidade de serviços de correio eletrônico e de listas de endereços é quesito mínimo que o sistema operacional deve cumprir para servir de plataforma da rede.

Nessa mesma direção, a apropriação do conceito de ubiqüidade (disposição espraiada e simultânea) da informação também representa avanço para aumentar a transparência do sistema e aprimorar os processos de avaliação. Transparência e avaliação são dois grandes gargalos para uma efetiva aproximação entre as comunidades escolares e o poder público. As informações sobre os programas e projetos escolares precisam ser compartilhadas entre as comunidades escolares, porque isso induz a troca de experiências e permite a maior eficiência para se avaliar a adequação de propostas inovadoras de ensino às diferentes realidades. Na medida em que as comunidades escolares possam aproximar-se por esse veículo de comunicação, seu isolamento será reduzido porque suas experiências encontrarão oportunidades de serem compartilhadas não somente pela rede, mas por meio de novos laços sociais que se estabelecem quando suas identidades também são compartilhadas. Nesse ponto, a implementação das redes de computadores deve avançar para estabelecer conexões entre escolas, que são os agentes preferenciais -mas não únicos- para um primeiro contato entre as redes locais de cada escola.

É fato que a ampliação da conectividade à rede mundial de computadores não permite isolar as comunidades escolares, e não deve ser essa a intenção, dos outros agentes da rede. Deve-se nesse momento de abertura das redes locais das escolas para o mundo, e aqui vivemos um segundo estágio de implementação que ainda está por ser feito, priorizar o auto-reconhecimento das comunidades escolares, por meio de acesso a bases comuns de informação e serviços. O papel do poder público nesse momento é decisivo, pois o atendimento das diferentes comunidades escolares pela rede de computadores tem quase nada em comum com a forma atual de organização da rede de ensino. O que se exige nesse estágio é menos paternalismo e mais cooperativismo dos gestores públicos, que podem e devem lançar procedimentos de avaliação e controle das unidades de ensino a partir desse novo espaço de relações, oferecendo no entanto uma base comum de informação as UEs, agilização dos procedimentos administrativos e fundamentalmente uma autêntica concepção de trabalho em rede. Para isso, as informações disponíveis nas páginas oficiais de secretarias de educação precisam ir além da mera propaganda sem conteúdo, elevando-se a alçada de servidores capazes de estruturar o compartilhamento das informações entre as diretorias de ensino, as comunidades escolares e a sociedade. Onde se prioriza a reunião das diversas identidades escolares, um centro completo de informações sobre cada uma delas e um desembaraçado e eficiente mecanismo de busca é um ótimo início.

Outras várias questões são igualmente importantes para se considerar nesse processo de enculturação. A própria noção de comunidade escolar deve ser efetivamente ampliada, e não apenas modulada pelo discurso oficial, na medida em que se implementam os serviços de CMC nas escolas. O entorno escolar deve tomar parte efetiva no que está se passando na escola, na medida em que as informações são disponibilizadas a partir da rede local, e esse novo canal de comunicação seja colocado a serviço das necessidades e interesses do que poderia sim, vir a ser chamada de uma autêntica comunidade escolar. Não basta que os serviços da rede local estejam disponíveis para o público através do ciberespaço; é preciso disponibilizar fisicamente o acesso à rede local de computadores. Esse procedimento encontrará muitas resistências dos administradores e professores, uma vez que se trata de um patrimônio público sob sua responsabilidade. No entanto, é a escola que pode constituir-se na possibilidade de acesso da população que se encontra excluída dos processos de participação nas tomadas de decisão, que ocorrem cada vez mais pela mediação das redes de computadores. Conforme já assinalamos numa crítica ao Programa Brasileiro para a Sociedade da Informação e suas bases educacionais (http://quimica.fe.usp.br/artigos/giordan/pbsi-educ.html), o aumento da capilaridade das redes de computadores é um elemento essencial para se combater a exclusão social, que uma vez conjugado com o acesso da comunidade do entorno escolar às redes locais de computadores das escolas permitiria um incremento substancial à popularização das novas tecnologias da informação e comunicação. A exclusão digital deve ser combatida no seio da escola e essa é a oportunidade para transformá-la segundo os desígnios de uma comunidade plural, muito além das influências da gestão pública e do conhecimento acadêmico.

Fortalecida pela ampliação dos canais de diálogo entre os agentes da escola, desses com os agentes do seu entorno, a comunidade escolar ampliada estará pronta para se tornar um nó da rede, capaz de estabelecer contato com outras comunidades escolares e com o próprio poder público. Nesse momento, as opções de conectividade voltam a ser importantes para se estabelecer novas relações. Antes de cair na tentação de procurar resolver imediatamente as tensões entre as tomadas de decisões de caráter técnico e as relações de poder que se estabelecem na apropriação da tecnologia pelas comunidades, convém tratar de uma outra importante questão em aberto para a formação das comunidades: a noção de identidade.

Para tratar essa questão de alta complexidade, é preciso estar atento para o fato de as interfaces de comunicação entre o usuário e o sistema operacional, bem como com os serviços de rede são elementos fortemente definidores de identidades, pois operam no mesmo nível de outras ferramentas culturais, propondo regras, convenções e protocolos que permitem modular os valores que se estabelecem durante a apropriação das ferramentas. Trata-se portanto de um condicionante técnico que opera no nível da formação de identidade dos sujeitos. Aqui, importa defender prioritariamente a adoção de interfaces de domínio público, tanto por exigirem baixos custos financeiros de investimentos, como por se apoiarem em preceitos de construção cooperativa. Aquilo que pode ser visto como um empecilho deve ser dialeticamente colocado para os usuários: a toda facilidade de interação com uma dada interface corresponde um esforço cumprido por aqueles que a desenvolveram. Nas comunidades de desenvolvedores de aplicativos de domínio público, a contrapartida ao esforço empregado vem na forma de reconhecimento público, o que as tornam parceiras preferenciais das escolas, pois há muito que se aprender com aqueles que trabalham com a lógica do compartilhamento e menos com a lógica da permuta.

Nos processos que se discutiram acima, a implantação das redes locais de computadores nas escolas, o redimensionamento das comunidades escolares, bem como o movimento de se estabelecer como um nó da rede mundial, as identidades dos sujeitos e dos coletivos atuantes nas escolas estarão passando por intensas e profundas transformações. Apesar de os condicionantes de tais transformações serem muitos e às vezes de difícil identificação, compete ao poder público organizar essa transição da rede escolar de ensino para exercer seu papel de liderança na sociedade, de modo a permitir que o ambiente para ensinar e aprender se fundamente na construção de identidades próprias de uma nova era.

Por Marcelo Giordan


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Atualizado em
18/09/2000

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Autor: Marcelo Giordan
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