O Hipertexto
Aproximar-se ao conceito de hipertexto representa um desafio complexo que requer, primeiramente, que sejam examinados os conceitos de linguagem e também de texto, já que o hipertexto está constituído e baseia-se em parte por elementos que provém destes conceitos.
O hipertexto constitui uma linguagem e sempre que se fala a seu respeito, torna-se inevitável relacionar um conjunto palavras associadas a ele, como por exemplo, conexão, não linearidade, interatividade, interface, nós, rede de associações, etc. Este campo semântico de palavras permite conhecer já a primeira vista que o hipertexto é uma estrutura sui generis, versátil, significativa e muito ampla de organização de informação, a qual pelo seu próprio dinamismo possue uma relação estreita com a maneira de como funciona nossa maneira de pensar. "Cuando pensamos -diz Claúdio Gutiérrez- activamos al mismo tiempo una serie de ideas o imágenes interconectadas; pero cuando decidimos expresar nuestro pensamiento, debemos emitirlas una después de la outra; y como lo mismo vale para su impresión en un papel es inevitable el carácter lineal que la literatura ha tenido hasta ahora. Pero la interconexión propia del pensamiento puede volver a existir cuando nos trasladamos del medio tradicional al medio electrónico, donde un texto puede conectarse con multitud de otros, y permitir una navegación (al estilo de Internet) de un documento a outro o de un párrafo al outro-, siguiendo todas las conexiones concebibles entre las ideas u otros medios expresivos como imágenes o sonido".
A invenção e uso do computador trouxe consigo uma nova maneira de agir, pensar e comportar-se frente às coisas, à sociedade e ao mundo. O homem foi influenciado por uma nova mentalidade que se fez presente neste fim do milênio: a cultura informática. Desde então, o computador e suas aplicações têm desempenhado um papel significativo nas atividades humanas como suporte e agente de múltiplos processos de transformação.
Inserida neste contexto e com uma história recente que começo a ser desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial, surgiu no cenário dos meios de comunicação a Internet. A Internet é a rede mundial de computadores interligados permanentemente e que funciona como um dos maiores arquivos de dados e informações do mundo. O aperfeiçoamento do sistema telefônico, base de sustentação tecnológica da Internet, possibilitou o desenvolvimento das redes digitais de informação, e desencadeou ao mesmo tempo, poderosas e globais redes do conhecimento. Por outra parte, este recurso trouxe consigo uma nova maneira de comunicar-se mediada por aquilo que denomina-se hipertexto, considerado como uma nova linguagem que veio modificar a maneira tradicional de transmitir e escrever, e também uma nova forma de expressar-se com as palavras que possibilitou que novas relações se estabeleceram entre informação, comunicação e linguagem.
O presente trabalho tem como objetivo fundamental apresentar uma reflexão sobre o hipertexto e as relações conceituais que podem estabelecer-se entre a linguagem, seus eixos e a noção de texto.
O homem é um ser da espécie animal que se diferencia dos outros por muitos aspectos. Entre eles, há um que o faz ser muito diferente: sua extraordinária capacidade de representar e nomear simbolicamente a realidade que o rodeia. Dos muitos conceitos de homines que têm surgido na terminologia científica para referir-se ao homem, como por exemplo homo sapiens ("o homem que sabe ou pensa"), homo faber ("o homem que faz "), homo ludens ("o homem que brinca"), etc., são o homo loquens ("o homem que fala") e o homo symbolicus ("o homem que cria signos ou símbolos") os conceitos que melhor caraterizam o homem como um ser-de-linguagem.
A linguagem representa um instrumento, estrutura ou faculdade excepcional que o homem desenvolveu para escrutar e apropriar-se do mundo sensível, físico e ininteligível. A linguagem permitiu que o homem se transformasse num ser simbólico. "Somos uma espécie animal -diz Lúcia Santaella- tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem". A linguagem permitiu ao homem comunicar seus pensamentos, emoções e sentimentos. A través da linguagem o homem -organismo vivo que possui atividade anímica, psíquica e sensitiva- nomeou as coisas e objetos do mundo atribuindo-lhes organização e sentido. Manipulando a linguagem o homem desenvolveu o conhecimento, a expressão e estabeleceu múltiplas relações inteligentes, sociais e afetivas. Segundo L. Hjelmslev, a linguagem é "uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. É inseparável do homem e segue-o em todos seus atos (...) É o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ela é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho".
A linguagem fez o homem expressar-se através de palavras. O homem é um ser que se comunica com as palavras. A palavra é um termo latino que vem de parabola cujo significado encerra o sentido de comparação, aproximação, alegoria: representação dos pensamentos sob forma figurada ou representação de uma coisa para dar a idéia de outra. Na palavra está contido o sentido de transposição e de mediação onde se estabelecem relações e planos de significação. "La palabra es nuestra morada: en ella nacimos y en ella moriremos -diz o poeta mexicano Octavio Paz-; ella nos reúne y nos da conciencia de lo que somos y de nuestra historia. Acorta las distancias que nos separan y atenúa las diferencias que nos oponen. Nos junta pero no nos asila: sus muros son transparentes y a través de esas paredes diáfanas vemos al mundo y conocemos a los hombres que hablan otras lenguas".
Pode-se afirmar que toda atividade sígnica ou simbólica humana é mediada pela linguagem, cabendo à palavra uma função chave no processo de codificação/decoficação de mensagens e da estruturação da significação.
2. OS EIXOS DA LINGUAGEM
Na sua dinâmica e configuração, a linguagem estabelece uma série de relações, combinações e associações que são vitais para o desenvolvimento da atividade mental, comunicação e funcionamento do aparelho cognitivo humano. São dos dois processos de associação ou organização das coisas, ou seja, os chamados eixos da linguagem: contigüidade (proximidade) e similaridade (semelhança).
Segundo Décio Pignatari "esses dois processos formam dois eixos: um é o eixo de seleção (por similaridade), chamado paradigma ou eixo paradigmático; outro é o eixo de combinação (por contigüidade), chamado sintagma ou eixo sintagmático". De maneira mais específica para referir-se aos eixos da linguagem, Teixeira Coelho Netto diz que "de um lado, o que se tem são as relações estabelecidas entre as palavras de um discurso, que se combinam umas com as outras e umas após as outras em virtude do caráter linear da língua a impedir a possibilidade de dois signos serem pronunciados ao mesmo tempo. Este primeiro eixo é o sintagma: uma seqüência de signos, linear e irreversível. Assim, a mensagem / O sistema de eleição será aperfeiçoado./ constitui um sistema que se define por uma extensão no espaço, formado por signos cuja presença, no ato de enunciar a mensagem, exclui outros signos. Nessa "cadeia falada", ao dizer "sistema" não posso dizer simultaneamente "processo", ao emitir "eleição" não posso transmitir "competição". Este eixo não existe isoladamente: vem relacionado e é validado por outro, o eixo das relações associativas ou paradigmático (de paradigma = modelo). Em outras palavras, ao preparar-me para formular uma dada mensagem escolho previamente um signo dentre um repertório de outros a ele associados. Por exemplo, devo referir-me a uma "bola de futebol". Na gíria desse esporte, além de "bola" há uma série de outros signos que podem ser utilizados, não importa se notativa ou conotativamente: "balão de couro", "esfera", "redonda", "menina", "pelota" e outros. O conjunto destes signos constitui um paradigma do qual me servirei para a construção do sintagma".
Os eixos sintagmático e paradigmático são imprescindíveis na configuração de uma linguagem assim como o significante e o significado o são para o signo lingüístico. Os eixos da linguagem representam suportes ou vectores chaves que ao interagirem na procura de sentido estabelecem complexas relações e associações que interligam-se por sua vez à idéia do conhecimento como rede. A noção de rede traz implícito o significado de entrelaçamento, armação, tela, conjunto ou sistema reticulado que aproxima-se ao conceito de hipertexto proposto por Arlindo Machado para quem o hipertexto, na sua forma mais avançada e limítrofe, seria algo assim como "um texto escrito no eixo do paradigma, ou seja, um texto que já traz dentro de si várias outras possibilidades de leitura e diante do qual se pode escolher dentre várias alternativas de atualização. Na verdade, não se trata mais de un texto, mas de uma imensa superposição de textos, que se pode ler na direção do paradigma, como alternativas virtuais da mesma escritura, ou na direção do sintagma, como textos que correm paralelamente ou que se tangenciam em determinados pontos, permitindo optar entre prosseguir na mesma linha ou enveredar por um caminho novo".
É indissociável à noção de texto, os vocábulos palavra, frase, escrita, manuscrito, obra, livro, impresso e também os termos produção ou composição estruturada. Etimologicamente, a palavra texto aproxima-se de textura, tecer e em latim tecido que provêm de textus. Nílson José Machado afirma que "a idéia de teia, de entrelaçamento, de entrançamento de palavras na composição de um texto está presente desde a origem através de associações por contigüidade, por metonímias, por extensões análogicas, estende-se naturalmente à linguagem como um todo, ao conhecimento, à ciência, ao universo".
Não obstante, a relação do texto com a escrita representou um paradoxo nos seus primórdios. "O ato de escrever -afirmam Roland Barthes e Eric Marty- tem origem no ato de ler, a partir do momento em que se apreende a escrita na sua etimologia originária, gravar, fazer uma marca (...) A escrita tem origem no reconhecimento visual da marca (...) A escrita pictográfica, em que a gestualidade e o visual parecem assumir um papel importante, designa uma apreensão absolutamente específica do real, diferente, em todo o caso, da escrita fonética: estas figuras, estranhas a qualquer notação oral fonetizada, deixam entrever uma extensibilidade que a escrita ignora: multidimensional no espaço, escapa a qualquer subordinação ao eixo da palavra cuja característica fundamental é estar centrada na temporalidade do próprio fluxo". Mas, se considerarmos o texto desde a perspectiva de textus, incluindo seu particípio passado texere, o texto deverá ser entendido como um enunciado, podendo-se chamar de texto a qualquer tipo de comunicação registrada num determinado sistema de signos, ou seja, o texto pode ser conceituado como o tecido lingüístico de um discurso, cuja realização concreta estará localizada nos textos escritos e na relação significante/significado.
Afirmar que o texto é metáfora quer dizer que ele possui o poder da linguagem, de significar, ou seja, de comparar, provocar semelhanças, relacionar identidades, produzir efeitos de sentido ou evocar analogias. Pierre Lévy, numa frase célebre, diz que nós somos o texto. Como não entendê-la senão através da metáfora? Assim, o texto pode ser concebido como signo, estrutura semântica ou semiológica. Para C. Segre o texto representa a metáfora do mundo. "O texto -ele diz- é uma virtualidade através da qual transparecem os aspectos do mundo, ou dos mundos possíveis, também pode ser atraente a idéia de sistematizar num grande texto (já não virtual mas imaginários) os nossos conhecimentos do mundo. Do mesmo modo, a nossa experiência do mundo, que, pelo menos em parte, se realiza através de textos escritos e orais, tende a transformar em texto todo o conhecimento, porque todo o conhecimento atinge racionalidade mediante a verbalização. Mas a racionalidade plena tem de saber medir e controlar este destino logocêntrico, e daí a diferença entre objetos ou condições de natureza verbal e objetos ou condições apenas verbalizáveis: de outro modo, escapar-nos-iam as verdadeiras forças que operam no real, na economia, na práxis, se considerássemos como texto ou como conjunto de textos o jogo sublime da palavra".
Com assombro e perplexidade, podem-se perceber e acompanhar as diversas mudanças que estão acontecendo na atualidade na área das denominadas novas tecnologias derivadas dos diversos avanços científicos na área da computação, telecomunicação e informática onde o uso do computador se constituiu por excelência numa ferramenta imprescindível e de extraordinária capacidade para promover a reflexão e o fazer do homem nas mais diversas áreas do conhecimento humano. "Ao conectar-se eletronicamente -disse McLuhan na década dos anos sessenta- o mundo tornou-se uma aldeia. Na era da eletrônica, nós usaremos nossas capacitações como nossa pele".
O que é hipertexto? Há muitas considerações a serem feitas ao formular-se esta pergunta chave, dado que o hipertexto é um conceito que vincula-se com nossa maneira de pensar, ler e escrever. Ele representa uma forma de organização textual da escrita e da leitura. É possível considerar que a própria história do hipertexto seja considerada como a história do texto. Um exemplo famoso de hipertexto são as anotações que Leonardo da Vinci (1452-1519) fez no seu caderno conhecido hoje como Codex Arundel. No obstante, na história da literatura encontram-se inúmeros outros exemplos de aquilo que poderia denominar-se de hipertextos - livros.
As primeiras manifestações daquilo que posteriormente seria chamado de hipertexto, encontra-se no artigo do matemático Vannevar Bush "As We May Think" de The Atlantic Monthly, uma revista dos Estados Unidos publicada em 1945. Bush partiu do fato que o homem não pensa originariamente por classificação hierárquica senão por associação. Então, ele propus a criação do Memex, um dispositivo -hoje algo semelhante ao computador pessoal- baseado numa rede de conexões entre diversas peças de informação, o qual permitiria evocar tudo que estivesse conectado a um item a partir de cada um deles. Com esse dispositivo, ele acreditava que conseguiria representar um esquema de classificação mais próximo do que imaginava ser o funcionamento da inteligência humana, ampliando os horizontes da indexação tradicional. Não obstante, a criação do termo hipertexto deve-se a Theodore Nelson que em 1965 o empregou para definir a idéia de escrita/leitura não linear num sistema informático, o que era já permitido como novo modo de produzir textos, graças aos avanços tecnológicos sintetizados na Telemática. Nelson também criou o projeto Xanadu que corresponderia a uma imensa biblioteca virtual ou rede acessível em tempo real, contendo todos os tesouros literários e científicos do mundo.
Segundo A. Mandel, I. Simon e J. L. de Lyra o hipertexto é: "um dos paradigmas básicos em que a teia mundial se baseia. Ele é uma espécie de texto multidimensional em que, numa página, trechos de texto se intercalam com referências a outras páginas. Clicando com o mouse numa referência dessas a página corrente é substituída pela página referenciada (...) O hipertexto é muito apropriado para a representação de informações no computador por dois motivos: permite subdividir um texto em trechos coerentes e relativamente curtos, facilitando a sua organização e compreensão, e permite também fácil referência a outras partes do texto ou a outros textos, totalmente independentes, muitas vezes armazenados em locais distantes. Isso cria uma característica própria de leitura da informação que, após um curto processo de adaptação, passa a ser intuitivo para o usuário, que se refere a essa leitura como navegação".
Atualmente, quem tem-se dedicado com profundidade ao estudo do hipertexto é Pierre Lévy que, em As Tecnologias da Inteligência, diz refletindo a respeito do hipertexto: "Devemos falar de multimídia interativa? De hipermídia? De hipertexto? Escolhemos aqui o termo hipertexto, deixando claro que ele não exclui de forma alguma a dimensão audiovisual. Ao entrar em um espaço interativo e reticular de manipulação, de associação e de leitura, a imagem e o som adquirem um estatuto de quase-textos (...) Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó pode, por sua vez,conter uma rede inteira".
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland e MARTY, Eric. Oral/Escrito - Argumentação. Portugal, Enciclopédia Einaudi, Vol. 11.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. São Paulo, Edusp, 1996.
MACHADO, Nílson J. Epistemologia e Didática: A Alegoria como Norma e o Conhecimento como Rede. Tese de Livre-Docência apresentada ao Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994.
PIGNATARI, Décio. O que é Comunicação Poética. São Paulo, Brasiliense, 1987.
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo, Brasiliense, 1986.
SEGRE, C. Literatura - Texto. Portugal, Enciclopédia Einaudi, Vol. 17.
TEIXEIRA COELHO NETTO, J. Semiótica, Informação e Comunicação. São Paulo, Perspectiva, 1983.
MANDEL, A. , SIMON I. e LYRA J. L. de. Informação: Computação e Comunicação. Dossiê Informática/Internet, Revista da USP.
Apresentação | Projeto | A Metáfora | Links |